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domingo, 12 de maio de 2024

Brasil: inimigo de si mesmo na politica internacional - Daniel Buarque

 Brasil é pior inimigo do Brasil na busca por liderança internacional

Problemas domésticos prejudicam ascensão na hierarquia global, aponta pesquisa

Folha de S. Paulo - UOL, 11/05/2024

[RESUMO] Autor apresenta conclusões de sua pesquisa de doutorado, em que realizou 94 entrevistas com membros da comunidade de política externa para mapear a imagem internacional do Brasil. Embora aspire a ser um líder global, o país é percebido como um peão no xadrez geopolítico, um ator periférico prestigiado pelas grandes potências só quando convém a elas. Falta de reconhecimento é reflexo de problemas internos do país, aponta estudo.

Desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, o Brasil se ofereceu para ser um mediador entre os dois países, tanto com Jair Bolsonaro (PL) quanto sob Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Quando começou o atual governo, a "doutrina Lula" tentou construir a ideia de que "o Brasil voltou" e quis melhorar a sua imagem internacional.

O Brasil começou a buscar protagonismo em questões ambientais, quis retomar uma liderança em temas regionais, procurou grandes acordos comerciais e até buscou conduzir uma votação pelo cessar-fogo na Faixa de Gaza. Além disso, retomou a aposta no multilateralismo e na busca pela reforma da governança global, reiterando o interesse em um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Lula até encontrou boa vontade internacional, a imagem do país melhorou e ele conseguiu liderar o Conselho de Segurança por um mês e presidir o G20, além de ganhar o direito de sediar a conferência do clima.

No entanto, a maioria das tentativas de ter um papel realmente significativo em questões internacionais importantes, motivadas em ampla medida pela ambição de ser um ator de peso na política global, continua esbarrando na falta de reconhecimento internacional de um alto status do país.

Mesmo com todo o esforço para aumentar o prestígio brasileiro, a percepção das nações mais poderosas do planeta é que o país não é suficientemente relevante para influenciar as grandes questões internacionais. Isso vale especialmente para quando elas envolvem discussões sobre segurança, guerra e paz. Para as grandes potências globais, o Brasil não passa de um peão no xadrez da geopolítica global.

Apesar do trabalho sério desenvolvido pelo Itamaraty ao longo de décadas, o problema não está necessariamente no que o Brasil faz em sua atuação internacional. A falta de reconhecimento para o prestígio é um reflexo, em ampla medida, de problemas internos do país, que precisam ser o foco antes de qualquer tentativa de projeção internacional.

Esses são alguns dos pontos centrais do livro "Brazil’s International Status and Recognition as an Emerging Power: Inconsistencies and Complexities", recém-publicado pela editora Palgrave Macmillan. A obra reúne os principais achados de uma pesquisa desenvolvida durante meu doutorado pelo King's College, de Londres. O estudo analisou a longa aspiração brasileira por alto status internacional em contraste com a percepção externa sobre o papel que o país pode desempenhar no mundo.

Para entender o lugar ocupado pelo Brasil na complexa geopolítica desde o fim da Guerra Fria, a pesquisa se baseou em 94 entrevistas com a comunidade de política externa dos países que já são reconhecidos como potências globais: EUA, China, Rússia, Reino Unido e França —os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.

UM ‘PEÃO COBIÇADO’

As grandes potências veem o Brasil como um país sem peso na política internacional. A percepção é que o Brasil não passa de um país médio que não tem legitimidade para atuar em questões importantes de segurança global.

Uma razão para essa avaliação é geográfica. O Brasil é percebido como periférico e pacífico, localizado em uma região longe das principais ameaças e disputas do mundo, e por isso não precisaria nem deveria se envolver nesses casos.

Outro ponto importante é que o país enfrenta limites em suas capacidades militares e econômicas, portanto não teria poder suficiente para ser preponderante em escala global.

Paradoxalmente, o Brasil é desejado como um aliado por essas mesmas potências, que buscam utilizá-lo como uma peça estratégica em suas rivalidades e seus interesses globais. Apesar de ser visto como um peão, seu apoio é cobiçado dentro do grande jogo da geopolítica.

Isso explica a frustração do Ocidente com a "equidistância" do país em relação à Guerra da Ucrânia e sobre as críticas de Lula a Israel. Ajuda a entender também a mobilização da China para manter o país envolvido nas ações do Brics e na tentativa de fortalecer outras moedas como alternativa ao dólar em negociações internacionais.

Na realpolitik, cada potência está interessada apenas em avançar seus próprios interesses geopolíticos. O Brasil recebe apoio e alguma forma de reconhecimento somente quando isso indica algum benefício para elas.

BRASIL CONTRA BRAZIL

Ser visto como um peão vai contra a histórica ambição de grandeza do país nas relações internacionais. Isso, contudo, ultrapassa as limitações geográficas e de poder econômico e militar. O Brasil é o maior inimigo do Brasil em sua busca por maior status internacional, avaliaram muitos dos entrevistados na pesquisa.

A percepção externa é que, embora o Brasil realmente tenha muito potencial e sua imagem internacional seja geralmente positiva, o país não alcançou um alto status por causa de seus próprios problemas domésticos, que prejudicam seu desenvolvimento e sua ascensão na hierarquia global. Uma situação doméstica —social, econômica e política— de desordem e incerteza mina a influência internacional mais que qualquer atuação no exterior.

Para essas nações poderosas, países com ambição de emergir entre os mais importantes do mundo devem "fazer sua lição de casa" e "arrumar as coisas internamente" antes de serem aceitos no clube de "alto status internacional".

Trata-se de uma visão meritocrática da ordem internacional —e uma interpretação do prestígio global que pode ser criticada—, mas que reflete a forma como a comunidade de política externa das nações mais poderosas pensa sobre a ordem global.

Ao observar o Brasil nas últimas décadas, há fortes evidências da importância da situação doméstica para seu prestígio. A estabilização e o crescimento da economia, a expansão da classe média, o fato de o país ter se tornado autossuficiente na produção de energia, a expansão das commodities e a consolidação da democracia no final dos anos 1990 levaram a uma narrativa sobre o aumento do status internacional do Brasil. Em 2009, a revista britânica The Economist estampava em sua capa a imagem do Cristo Redentor decolando.

Em 2013, contudo, uma série de crises sociais, políticas e econômicas mudou essa situação. Os anos seguintes foram de recessão, escândalos de corrupção, violência e violações de direitos humanos, autoritarismo, negacionismo científico e ameaça à democracia, tornando mais difícil para o Brasil alcançar reconhecimento externo.

Entender a importância do contexto doméstico pode servir como referência para repensar as estratégias do país na construção de um lugar para o Brasil no mundo.

O estudo apresentado aqui indica que focar questões internas (especialmente na economia) e corrigir problemas domésticos são percebidos como os meios mais eficientes para aumentar o status internacional de um país.

Ao buscar destaque em sua atuação internacional, o Brasil deveria dar mais atenção ao que acontece dentro do país, melhorando sua realidade antes de querer se projetar ao mundo.


quinta-feira, 4 de abril de 2024

Putin será um visitante inconveniente - Maria Hermínia Tavares Folha de S. Paulo


Putin será um visitante inconveniente 

Maria Hermínia Tavares 

Folha de S. Paulo,  quinta-feira, 4 de abril de 2024

Autocrata pode ser preso em qualquer dos 124 países signatários do Estatuto de Roma

O governo brasileiro parece buscar uma gambiarra jurídica que permita a entrada no país do chefe do governo russo, Vladimir Putin, para participar da cúpula do G20 no final do ano, em plena igualdade de condições com os seus 19 homólogos.

Condenado pelo TPI (Tribunal Penal Internacional) por crimes de guerra na Ucrânia, o autocrata do Kremlin pode ser preso em qualquer dos 124 países signatários do Estatuto de Roma, que deu origem àquela corte.

O Brasil, que bem fez ao incluir explicitamente a defesa dos direitos humanos entre os princípios de política externa arrolados na Constituição, assinou aquele texto civilizatório; logo, ao menos em tese, está obrigado a cumprir as decisões do TPI.

O compromisso com o acatamento daqueles direitos veio se somar a princípios mais antigos, a exemplo da adesão ao multilateralismo como valor e a participação ativa em organismos internacionais nele inspirados; a aposta na solução pacífica dos conflitos internacionais; o universalismo nas relações diplomáticas; e a não- ingerência em assuntos internos de outras nações. Em conjunto, norteiam a sua política externa.

Respeitáveis em si, tais princípios nem sempre caminham em harmonia, ao contrário do que imaginam aqueles que acreditam que todas as coisas boas andam juntas. A defesa dos direitos humanos, desrespeitados em determinado país, pode se chocar com interesses econômicos ou geopolíticos que recomendam a Brasília fechar os olhos a transgressões praticadas por parceiros. O cumprimento de normas internacionais definidas em âmbito multilateral pode demandar gestos incompatíveis com a disposição de manter boas relações com todos os países.

Não há fórmulas prontas para resolver conflitos dessa natureza. Cabe às autoridades de turno decidir quais princípios ficarão de molho, em face do que imaginem ser o melhor para o país.

Esse é o dilema do governo Lula. Sabe-se perfeitamente bem quem é Putin: um czar sem coroa que manda assassinar opositores, controla os meios de comunicação, conduz uma guerra de conquista na Ucrânia, tendo sido condenado pelo TPI por crimes contra a humanidade ali cometidos. Também resta claro como o dia que a Rússia de Putin joga água no moinho dos populismos de direita em ascensão nos quatro cantos do planeta.

Difícil imaginar que a fidelidade aos princípios da não- ingerência, os interesses econômicos que aproximam o Brasil da Rússia ou a vontade de desfilar autonomia perante as potências do Ocidente democrático consigam contrabalançar os prejuízos – internos e externos – de receber visitante tão inconveniente.


segunda-feira, 1 de abril de 2024

Os perigos da diplomacia personalista: Putin, TPI e G20 - Ricardo Della Coletta, José Marques (FSP), Paulo Roberto de Almeida

 Primeiro a noticia (ver a íntegra abaixo):

“ PUTIN

Governo produz parecer que embasa possível vinda de Putin para o G20. Texto oferece defesa para descumprir eventuais ordens de prisão do TPI contra chefes de Estado. A Folha de S. Paulo questionou o Itamaraty sobre o parecer apresentado na ONU e sua relação com a possível vinda de Putin ao Brasil. O ministério respondeu que não comentaria, uma vez que o documento faz observações iniciais de um tema que ainda será negociado.”

Agora o comentário:

O Estatuto de Roma está incorporado à Constituição do Brasil. Mas Lula nunca ligou para isso, assim como nunca ligou para as cláusulas de relações internacionsis contidas no art. 4. da mesma Carta, sobretudo o item da não interferência nos assuntos internos de outros Estados. Ele o fez sistematicamente a favor de seus amigos esquerdistas, com destaque para os comunistas cubanos, os chavistas (Chávez, Morales e outros), e todos os demais que estivessem na lista de alianças do PT. Mais ainda: isso ultrapassa o terreno da esquerda, como visto no caso de Putin, que é simplesmente o fato da aliança com tudo e todos que se contrapõem aos Estados Unidos.

Disso já sabemos. O que não sabíamos é que o Itamaraty confirma sua submissão caolha, míope, ao que deseja o chefe de Estado. Já o fez sob Bolsonaro, está fazendo novamente sob Lula.

Diplomacia presidencial pode ser um problema, dependendo da qualidade do chefe do Executivo. Vargas, Geisel e FHC conduziram pessoalmente a diplomacia do Brasil em seus respectivos mandatos. Com os demais presidentes, o Itamaraty teve certa latitude de ação, de aconselhamento e até de condução de determinados assuntos.

Diplomacia personalista sempre é um problema, pois que o chefe de Estado conduz as relações exteriores segundo critérios que podem não ser os mais adequados do ponto de vista dos interesses do Brasil, tal como refletidos na agenda do Itamaraty.

Lamento pelos meus colegas diplomatas, lamento pelo Brasil.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 1/04/2024

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Governo Lula produz parecer que embasa possível vinda de Putin ao Brasil no G20

Texto oferece defesa para descumprir eventuais ordens de prisão do TPI contra chefes de Estado


BRASÍLIA

O governo Lula (PT) produziu um parecer com argumentação jurídica que embasa eventual vinda ao Brasil do presidente da Rússia, Vladimir Putin, mesmo ele sendo alvo de um mandado internacional de prisão.

O documento foi submetido em novembro do ano passado à Comissão de Direito Internacional da ONU. O órgão atualmente trabalha na elaboração de uma normativa sobre imunidade de jurisdição a chefes de Estado. O status, que também pode ser conferido a outras altas autoridades, garante que esses líderes não sejam processados ou atingidos por ações judiciais vigentes nos países que os recebem em visitas internacionais.

O governo brasileiro não cita diretamente Putin no texto, mas faz referência a um cenário que se encaixa na situação atual do líder russo: ele é alvo de um mandado de prisão expedido pelo TPI (Tribunal Penal Internacional), acusado de ter permitido que ocorressem crimes de guerra no conflito com a Ucrânia.

Como o Brasil é signatário do Estatuto de Roma, que criou o TPI, o país em tese está obrigado a prender Putin caso ele desembarque em território nacional. Encarcerá-lo em solo brasileiro é, no entanto, um cenário considerado inimaginável devido às consequências geopolíticas e de segurança que a detenção do líder da segunda maior potência militar do planeta representaria.

Ainda assim, a hipótese de uma ordem de prisão tem potencial de criar, no mínimo, constrangimento diplomático para Brasil e Rússia em plena cúpula do G20 caso Putin venha para o encontro no Rio de Janeiro em novembro.

O texto submetido à Comissão de Direito Internacional não tem efeito prático e tampouco é garantia de que o Brasil estaria livre de censura do TPI caso ignore uma ordem do tribunal durante possível passagem de Putin pelo país, segundo especialistas ouvidos pela Folha.

Ele indica, porém, uma opinião oficial do governo Lula no sentido de que a imunidade de jurisdição de Putin deveria protegê-lo do alcance do TPI na hipótese de que essa viagem se concretize.

O principal argumento do documento é que acordos que criam tribunais internacionais (como é o caso do Estatuto de Roma) devem ter efeito apenas entre as partes que assinaram o tratado.

Por essa tese, um chefe de Estado de um país não signatário não poderia ter sua imunidade ignorada mesmo ao estar em um território que reconhece a autoridade dessa corte internacional. A Rússia retirou sua assinatura do Estatuto de Roma em 2016.

Em um dos parágrafos do parecer, o Brasil concorda que a imunidade de jurisdição para altas autoridades "não deve afetar os direitos e as obrigações dos Estados partes diante de acordos que estabeleceram cortes e tribunais penais internacionais". Mas em seguida destaca que isso deve ocorrer no âmbito das "relações entre as partes desses acordos".

"É norma básica da lei internacional geral, codificada no artigo 34 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que 'um tratado não cria obrigações ou direitos para um terceiro Estado sem o seu consentimento'", diz o texto.

"Dessa forma, enquanto os artigos [sobre imunidade] não afetam obrigações de tratados referentes a tribunais internacionais, esses acordos internacionais não afetam a imunidade de agentes de Estados não partes".

O Brasil afirma ainda que a imunidade de jurisdição para dirigentes é essencial "para promover entendimentos pacíficos de disputas internacionais e relações amigáveis entre os Estados, inclusive na medida em que permite que funcionários de Estados participem em conferências internacionais e missões em países estrangeiros".

E faz eco a uma crítica que já circulou entre representantes de países em desenvolvimento sobre o mandado do TPI contra Putin: a de que a corte está sendo usada politicamente. "[A imunidade de jurisdição] contribui para a estabilidade das relações internacionais, por prevenir o exercício abusivo, arbitrário e politicamente motivado da jurisdição criminal que pode ser usado contra agentes dos Estados".

Folha questionou o Itamaraty sobre o parecer apresentado na ONU e sua relação com a possível vinda de Putin ao Brasil. O ministério respondeu que não comentaria, uma vez que o documento faz observações iniciais de um tema que ainda será negociado longamente no âmbito da Comissão de Direito Internacional.

A reportagem também encaminhou o parecer a quatro especialistas em direito internacional. Três viram na argumentação uma tentativa de flexibilizar as obrigações do Brasil junto ao TPI e disseram que a hipótese descrita na redação se aplica à situação de Putin.

André de Carvalho Ramos, professor de Direito Internacional da USP (Universidade de São Paulo), diz que a argumentação feita pelo Brasil tem como base um dispositivo específico previsto no próprio Estatuto de Roma: o de que um pedido do TPI pode não ter efeito caso o Estado requerido seja obrigado a atuar de forma incompatível com o direito internacional "em matéria de imunidade dos Estados".

O problema, prossegue o professor, é que já existe precedente sobre esse tema.

"O TPI decidiu que a Jordânia violou o Estatuto de Roma ao não prender em 2017 o então presidente do Sudão Omar al-Bashir durante visita dele ao país. Pois bem, a Jordânia apelou e, em 2019, o TPI decidiu que a norma consuetudinária [invocada pelo Brasil] só se aplica a tribunais nacionais, inexistindo norma consuetudinária imunizante em face de tribunais internacionais, como o TPI", diz ele.

"No plano do TPI, mesmo que o Judiciário brasileiro dê razão ao governo federal, há fortíssima probabilidade do Brasil ter o mesmo destino que a Jordânia."

Wagner Menezes, presidente da Academia Brasileira de Direito Internacional, opina que a argumentação apresentada pelo Brasil "relativiza" o alcance do Estatuto de Roma e vai na contramão de um dos principais objetivos do TPI: o de constranger a movimentação internacional de pessoas acusadas de crimes de guerra e contra a humanidade.

"Não é relevante se a Rússia ratificou ou não o Estatuto. O Brasil não tem qualquer tipo de relação, nesse caso, com a Rússia. Trata-se de um tema da relação do Brasil com o tribunal", afirma.

Professor titular de Teoria e História do Direito Internacional, Arno Dal Ri Jr. vê na redação submetida pelo governo à ONU uma "cortina de fumaça". Ele também classifica a argumentação de "frágil".

"Os termos do documento são hipotéticos, em que se levanta vários quadros e hipóteses, dentre essas aquela de legitimação da vinda do Putin através da imunidade típica de chefes de Estado", diz.

"É um jogo muito dúbio que está sendo feito, no qual se sabe a realidade de que, em caso de pedido de entrega pelo TPI não cumprido pelo Brasil, existiria uma colisão [com o Estatuto de Roma] e o Brasil que seria responsabilizado por isso. Mas usa-se uma interpretação ampliada para retirar o foco do real problema jurídico que poderia advir."

Já o advogado e doutor em Direito Marcelo Peregrino Ferreira tem opinião diferente e não enxerga na hipótese tratada pelo parecer algo que beneficie o caso russo. "Acho que a investida do Brasil não é contra o Estatuto de Roma ou outra corte internacional, mas contra a suspensão da imunidade pela jurisdição criminal comum de países que não tem um tratado entre si. E a proposta brasileira não me parece beneficiar o caso russo", diz ele.

A possível vinda de Putin ao Brasil para a cúpula do G20 é um tema altamente sensível. Se confirmada, ela deve virar o fato político mais impactante da reunião.

Desde que ordenou a invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022, o líder russo virou alvo de uma operação que, orquestrada por Estados Unidos e Europa, busca isolá-lo nos diferentes fóruns internacionais. Ele não compareceu às duas últimas edições do G20, na Índia e na Indonésia —nenhum dos países é signatário do Estatuto de Roma.

A eventual vinda de Putin à cúpula no Rio de Janeiro motivou polêmica antes mesmo de o Brasil iniciar seu mandato na presidência do G20.

Em setembro de 2023, quando participava da cúpula do fórum em Nova Déli, Lula afirmou que seu homólogo russo não corria o risco de ser preso caso decidisse vir à edição seguinte do evento. "Se eu for presidente do Brasil, e se ele [Putin] vier para o Brasil, não tem como ele ser preso. Não, ele não será preso. Ninguém vai desrespeitar o Brasil", disse o petista na ocasião.

Dias depois, Lula voltou atrás e afirmou que a decisão sobre uma eventual prisão caberia ao Poder Judiciário. "Se o Putin decidir ir ao Brasil, quem toma a decisão de prendê-lo ou não é a Justiça, não o governo nem o Congresso Nacional."


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

A irresponsabilidade de Lula: Ele reciclou a usina de besteiras de Bolsonaro - Elio Gaspari (Folha de S. Paulo)

A irresponsabilidade de Lula


Ele reciclou a usina de besteiras de Bolsonaro

Elio Gaspari

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles 'A Ditadura Encurralada'

Folha de S. Paulo21 de fevereiro de 2024


Ao mandar Jair Bolsonaro para casa, o Brasil parecia ter se livrado de um encosto. Durante a pandemia, esse espírito duvidava da vacina, sugeria que o vírus da Covid havia sido fabricado na China e exaltava a cloroquina. Lula recolocou o Brasil nos eixos na questão ambiental e atravessou o mundo para resgatar o encosto, escorregando na casca de banana de Gaza.

No domingo passado, em Adis Abeba, ele disse que "o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino, não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus". Com isso, abriu uma crise e foi declarado persona non grata pelo governo de Israel.

Lula já havia costeado o alambrado dias antes, no Cairo, com duas frases: "O Brasil foi um país que condenou de forma veemente a posição do Hamas no ataque a Israel e o sequestro de centenas de pessoas. Nós condenamos e chamamos o ato de ato terrorista".

Falso. O ataque do Hamas aconteceu no dia 7 de outubro. Cinco dias depois, o Itamaraty informou que a classificação do Hamas como organização terrorista competia à ONU. Posteriormente é que a ONU o incluiu em terrorismo.

Lula acrescentou: "Não tem nenhuma explicação o comportamento de Israel, a pretexto de derrotar o Hamas, está matando mulheres e crianças - coisa jamais vista em qualquer guerra que eu tenha conhecimento."

Ressalvada a falta de conhecimento, essa afirmação foi um exercício de retórica amparada na ignorância.

A fala de Adis Abeba teve a ver com a classificação do comportamento de Israel em Gaza como "genocídio". Que as tropas de Binyamin Netanyahu cometeram crimes de guerra, é certo. Genocídio é outra coisa, é um ato deliberado de exterminar um povo, esteja ele onde estiver. Em junho de 1944, com a guerra perdida, os alemães capturaram os 400 judeus que viviam na ilha de Creta. Naquele mês, o brasileiro Benjamin Levy, a mulher e a filha foram amarrados em Milão e deportados para o campo de Bergen-Belsen.

Lula já disse que Napoleão foi à China e que os americanos derrubaram Dilma Rousseff de olho no petróleo do pré-sal: "É preciso que o petróleo esteja na mão dos americanos porque eles têm que ter o estoque para guerra. A Alemanha perdeu a guerra porque não chegou em Baku, na Rússia, para ter acesso à gasolina."

A batalha de Stalingrado terminou em fevereiro de 1943, quando os alemães já haviam sido contidos em Moscou, os Estados Unidos estavam na guerra e haviam quebrado a perna da Marinha japonesa. Se os alemães chegassem a Baku, pouca diferença faria. Eles perderam a guerra por falta de gasolina.

Vale lembrar que a Segunda Guerra também não acabou porque os americanos tinham mais gasolina. Ela acabou depois das explosões de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, que ficaram prontas em 1945.

De onde Lula tira essas ideias, não se sabe, mas no seu terceiro mandato ele se move na cena internacional com uma onipotência aplaudida por áulicos e venenosa para a diplomacia brasileira.

Durante seu primeiro ano deste mandato, firmou-se como um chefe de Estado excêntrico. A fala de Adis Abeba temperou a ignorância com irresponsabilidade.


sábado, 13 de janeiro de 2024

Viés na diplomacia: Brasil erra ao deixar equidistância na guerra - Opinião da Folha de S. Paulo

 Viés na diplomacia Brasil erra ao deixar equidistância na guerra; saída de Netanyahu seria melhor Relatório recente da Human Rights Watch aponta a oscilação de líderes mundiais quando se trata de condenar violações dos direitos humanos


Eles tendem a fazer vista grossa quando os perpetradores são governos aliados e a carregar nas tintas contra adversários. Um dos criticados pela organização global, o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) acaba de oferecer novo subsídio para a tese. Lula apoiou a denúncia da África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça da ONU por alegado genocídio. O documento em que o endosso foi anunciado não explica por que o Brasil considera estar havendo crime com essa caracterização na Faixa de Gaza. Genocídio é a ação deliberada para exterminar um grupo. Genocidas foram os nazistas contra judeus e outras minorias na 2ª Guerra Mundial, o Império Otomano contra armênios em 1915 e 1916 e hutus contra tutsis em Ruanda em 1994. A reação de Israel ao massacre, estupro e sequestro de civis cometido por terroristas do Hamas merece críticas, mas não justifica o abandono da equidistância tradicionalmente abraçada pelo Brasil. Guerrilheiros escondem-se por trás de alvos urbanos e nos tentaculares túneis do território. 

O exercício do direito de defesa por Israel nesse cenário causaria necessariamente danos a não combatentes. Uma avaliação isenta da contraofensiva israelense deveria dar-se à luz das leis de guerra e do objetivo da operação de derrotar o Hamas. Israel bloqueou a chegada de ajuda humanitária nos primeiros dias do contra-ataque. Agora, três meses depois, o grau e a extensão da destruição provocada pelos bombardeios e pela invasão israelense indicam que é hora de cessar fogo. Não é à toa que a opinião pública internacional, de início solidária à reação israelense, vai se tornando cada vez mais refratária à continuidade da operação militar. O premiê Binyamin Netanyahu talvez prefira adiar a decisão porque sabe que terá de prestar contas à sociedade israelense uma vez concluída a campanha militar. Além de ser o pivô da radicalização religiosa da política em seu país, ele chefia o gabinete humilhado pela penetração desimpedida de milhares de terroristas em Israel. 

 A condução da fase da política, que inevitavelmente sucederá a da guerra, será melhor sem Netanyahu no governo. Da mesma forma, os árabes terão de produzir uma alternativa de governança ao Hamas se quiserem construir uma saída promissora para a estabilização. A comunidade internacional e o Brasil ajudarão nessa transição se deixarem de lado a parcialidade e os termos e instrumentos impróprios para lidar com o problema. 


Opinião de um diplomata aposentado: 

Flavio Perri
Trata-se da falta de conhecimento do Presidente impondo posições sem fundamento seja no Direito Internacional seja em nossa história diplomática, em especial no Oriente Médio. Uma simples informação sobre a natureza jurídica da CIJ indicaria a Sua Excelência que os países NÃO são chamados a manifestar suas posições em causas a serem julgadas com base no Direito Internacional por 17 juízes independentes, eleitos para um mandato de 9 anos. O Presidente atirou sem conhecer o alvo, no vazio de sua influência, apenas para no final (ou desde logo) desgastar-se e desgastar o prestígio internacional do país que pretende governar.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Ouro brasileiro foi a maior catástrofe econômica e política de Portugal - João Pereira Coutinho (Folha de S. Paulo)

 Ouro brasileiro foi a maior catástrofe econômica e política de Portugal

João Pereira Coutinho

Folha de S. Paulo, 2/01/2024


Saberá Flávio Dino que a descoberta das minas na antiga colônia foi motivo de atraso para o desenvolvimento do país

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Amigos brasileiros, meio a sério, meio a brincar, costumam pedir de volta "o ouro do Brasil". De início, ficava pasmo. Ouro? Qual ouro? Não uso joias. Sempre achei que um homem com joias é um erro de casting.

Não, não são joias, Little Couto. Eles querem de volta o ouro que os portugueses levaram do país a partir de finais do século 17.

 

Tempos atrás, por causa de um lamentável episódio xenófobo com uma brasileira em Portugal, o ministro Flávio Dino até deu cobertura oficial à exigência. Se os portugueses não gostam de brasileiros, podem devolver também o ouro de Minas Gerais!

Calma, ministro. A estupidez de um patrício não define um povo inteiro. E, sobre o ouro, saberá o senhor que a descoberta das minas foi, provavelmente, a maior catástrofe econômica e política de Portugal? E que o atraso do país na era contemporânea se explica, precisamente, pelo ouro que o senhor reclama?

A tese está contida num dos melhores livros de 2023, que merecia uma edição brasileira, até para acalmar os ânimos. O autor é Nuno Palma, historiador português e professor da Universidade de Manchester, que analisa com rigor "As Causas do Atraso Português" (D. Quixote/Leya, 408 págs.).

 

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No século 19, esse atraso consumiu os melhores espíritos e ficou célebre a conferência de Antero de Quental sobre as "Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos".

O atraso dos ibéricos, segundo o filósofo e poeta, era explicado, entre outros fatores, pelo catolicismo obscurantista que impediu o progresso material, institucional e mental.

Nuno Palma não compra essa versão: países católicos, como a Bélgica ou a França, foram casos de sucesso na Europa oitocentista. Se queremos encontrar as raízes do atraso temos de viajar até ao século 18, quando o ouro começou a chegar em quantidades apreciáveis.

Sim, no curto prazo, Portugal enriqueceu. Mas a "maldição" desse recurso distorceu a economia de forma profunda, levando ao abandono das fábricas (a industrialização do país que era promissora no último quartel do século 17), ao favorecimento das importações e ao colapso da competitividade pátria.

Em meados do século 18, quando o ouro ainda chegava, a economia portuguesa estagnou e Portugal perdia o trem da Revolução Industrial. Estavam abertas as portas para o medonho século 19, feito de guerras civis e bancarrotas.

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Mas o ouro do Brasil não teve apenas um impacto econômico nocivo. Argumenta Nuno Palma que, politicamente falando, o atraso institucional foi comparável. Quem pensa que o absolutismo régio português emergiu na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, desconhece o papel das cortes na limitação do poder do rei para lá desse período.

Esse elemento "protoliberal", que em Inglaterra só se afirmou verdadeiramente com a Revolução Gloriosa de 1688-1689, sempre fez parte da cultura institucional portuguesa desde a fundação.

Se o rei queria cobrar impostos, por exemplo, tinha de ouvir os representantes municipais, eleitos pelos seus pares. Para usar um célebre bordão americano, "no taxation without representation". A convocação das cortes era a expressão institucional desse princípio.

No século 18, com o ouro brasileiro, as cortes não se reuniram uma única vez. Para quê? A liquidez de que a Coroa dispunha permitia-lhe atuar sem prestar contas a ninguém.

No fundo, permitia-lhe atuar sem freios e contrapesos, cultivando antes as suas clientelas parasitárias e venais. O Marquês de Pombal e seus sucessores representaram bem essa nova cultura despótica e "iluminada".

Moral da história?

O iliberalismo português, que obviamente contagiou o Brasil, não começa com Salazar e a ditadura do Estado Novo no século 20. Começa antes, muito antes, na experiência absolutista de 700, que se espraiou até aos nossos dias.

Devolver o ouro?

Ó, meus amigos, ó meus irmãos: pudesse eu viajar no tempo para influenciar as cabeças dos meus antepassados e o ouro ficaria escondido nas entranhas de Minas Gerais.

Pelo menos, até que portugueses ou brasileiros tivessem atingido um patamar de desenvolvimento político e econômico a partir do qual o ouro seria uma benesse, e não uma ruína.

 

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Perdeu Mané? As esquerdas e sua derrota nas comunicações - Uirá Machado (FSP)

 LULINHA , LULINHA   REQUISITA AS RUAS 

Direita domina redes sociais e deixa esquerda para trás na batalha digital

Uirá Machado

Folha de S. Paulo, 4/10/2023

Com um celular na mão e uma notícia (por vezes falsa) na cabeça, a direita dominou o universo digital nas últimas eleições e tem tudo para repetir a dose nas próximas.

Há diversas razões para explicar esse fenômeno. Entre elas estão o pioneirismo da direita nesse ambiente, a arquitetura das redes sociais, o acesso a financiamento, o tipo de conteúdo disseminado e o incentivo à monetização.

Segundo especialistas, se a esquerda –não só no Brasil— quiser virar esse jogo, precisará fugir das armadilhas lançadas pela direita e mudar sua forma de se relacionar com a tecnologia.

"A esquerda brasileira sempre teve dificuldades para lidar e compreender a comunicação. Isso continuou no cenário digital", diz o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC).

Como reflexo disso, existem, de acordo com o sociólogo, menos canais de esquerda na internet (veículos, youtubers, podcasters etc), com alcance menor que os de vários grupos da extrema direita.

"Boa parte da esquerda ainda pensa com a cabeça do mundo da comunicação de massas, mas vivemos o cenário da comunicação distribuída. Não existe bala mágica. É preciso pensar diversas estratégias para diversos segmentos da sociedade", afirma Silveira.

E, embora o custo tenha caído para a disseminação de conteúdos pela internet, dinheiro ainda faz diferença, seja para criar estruturas profissionais de disparos em massa no WhatsApp, seja para impulsionar postagens e vídeos nas diversas plataformas.

A direita gasta muito para dominar as redes sociais e cultuar seus valores, espalhar sua visão de mundo, afirma Silveira. "A esquerda rebaixou sua pauta e se limita a divulgar sua pauta política. Não há um grande empenho na disputa ideológica."

Não se trata só de um gasto centralizado. Para a cientista política Camila Rocha, um dos aspectos que complicam a equação é a capacidade da direita de monetizar suas próprias atividades.

"A direita ganhou produtores de conteúdos que se portam como ativistas, mas eles estão nessa para ganhar dinheiro", diz Rocha, que é pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e colunista da Folha.

Ou seja, além dos robôs e das centrais de difusão de fake news, o ecossistema da direita ainda conta com influencers que se passam por agentes espontâneos e ideológicos, mas que na verdade descobriram uma forma de explorar economicamente a inclinação política de parte da população.

Esse tipo de iniciativa tem muito mais dificuldade de prosperar na esquerda, tanto por uma questão de perfil social –falta de afinidade com o capitalismo, com o empreendedorismo— quanto por aspectos técnicos ou culturais, por assim dizer.

É que o campo da direita, segundo Rocha, foi vanguardista na ocupação das redes sociais e outros fóruns do mundo digital. Com isso, dominou várias técnicas muito antes da esquerda.

A linguagem dos memes, os cursos voltados ao aprimoramento pessoal e as explicações didáticas sobre temas da política são alguns dos formatos que a direita usa melhor que a esquerda, diz a pesquisadora.

Mas não se diga que o problema está apenas na forma. Para Rocha, é preciso olhar também para o conteúdo: enquanto a direita se aproxima de quem já alimenta um sentimento de revolta contra o sistema, a esquerda não consegue apresentar um tom acolhedor.

"A esquerda, nos últimos anos, passou a ter um discurso muito abstrato, muito acadêmico, por vezes muito arrogante. Isso também acaba distanciando as pessoas, que às vezes não conseguem entender metade dos termos que estão sendo mencionados", afirma Rocha.

Se servir de consolação para a esquerda, trata-se de dificuldade que ultrapassa fronteiras. Para a socióloga Carla Montuori Fernandes, existe uma crise da democracia liberal em escala global, que se associa à falta de confiança de parte da população nas instituições políticas.

Diversos países assistiram à ascensão de líderes populistas que baseiam suas campanhas nas redes sociais, onde disseminam desinformação, negacionismo e discurso de ódio.

Ela cita como exemplos os Estados Unidos (Donald Trump), El Salvador (Nayib Bukele), Argentina (onde o candidato Javier Milei surpreendeu nas primárias) e Itália (Matteo Salvini, Giorgia Meloni), entre outros.

"No Brasil, especificamente, a emergência da extrema direita ocorre em um contexto de crise democrática, marcada pelo desgaste da imagem dos partidos tradicionais e lideranças políticas", diz Fernandes, que é professora da Unip (Universidade Paulista).

Ela afirma que, sobretudo em 2018, a campanha de Jair Bolsonaro (PL) soube explorar uma suposta ameaça relacionada ao imaginário comunista e ao bolivarianismo venezuelano, bem como os escândalos de corrupção investigados pela Operação Lava Jato.

Em 2022, diz Fernandes, a campanha de Lula (PT) buscou uma reação com uma estratégia capitaneada pelo deputado federal André Janones (Avante-MG), conhecida como guerrilha digital ou janonismo cultural.

"Janones pregou o mesmo comportamento da direita na internet, com divulgação de montagens, vídeos descontextualizados, uso de fake news, enfim, tudo pra conquistar o engajamento na rede", afirma a socióloga.

Para ela, contudo, a esquerda não deveria cair na armadilha de repetir a extrema direita nas redes. Embora Fernandes considere difícil disputar com quem recorre a narrativas agressivas, despolitizadas e mentirosas, ela acredita ser possível para a esquerda avançar de outras formas.

"A esquerda brasileira parece ter ficado para trás do domínio da lógica comunicacional digital. Lula é um homem analógico. É preciso aproximar o presidente do público com uma comunicação mais direta, menos formal, mais humanizada e menos formatada."

A cientista política Sabrina Almeida, professora da FGV ECMI (Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getulio Vargas), também aponta uma mudança de atitude entre as eleições de 2018 e 2022.

"Nós identificamos uma assimilação dessas técnicas de otimizar a visibilidade, de em alguma medida manipular a lógica algorítmica. Isso passa a ser uma estratégia de campanha, uma ferramenta de disputar a atenção e engajar as bases de apoio", afirma.

"Mas o que a gente também identifica é que não necessariamente isso diz respeito a uma maior democratização ou melhores práticas para o debate público", diz Almeida.

Daí por que o pesquisador João Cezar de Castro Rocha sugere um caminho que ele chama de contraintuitivo: "O campo da esquerda democrática não deve procurar empatar esse jogo. Na verdade, do que se trata é de não jogá-lo".

Professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), ele diz que a extrema direita tem uma afinidade maior com a própria dinâmica das redes sociais, que tende a privilegiar conteúdos radicalizados ou que gerem reações como pânico ou medo.

"De um lado, uma visão binária e excludente do mundo. De outro, a utilização consciente de uma linguagem de grande violência simbólica como uma forma de obter visibilidade. Por fim, uma capacidade de monetização de todas as esferas do cotidiano, incluindo a política."

Além disso, diz o professor da Uerj, "a extrema direita consegue visibilidade no limite do cometimento de crimes, como calúnia, difamação, injúria".

Assim, para ele, é crucial usar instrumentos legais existentes para punir esses crimes e desmonetizar as redes de ódio.

"Jogar o jogo no modelo que a extrema direita criou será sempre uma derrota, mesmo em caso de vitórias ocasionais", afirma.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/10/direita-domina-redes-sociais-e-deixa-esquerda-para-tras-na-batalha-digital.shtml 

terça-feira, 3 de outubro de 2023

As primeiras relações diplomáticas entre a Rússia e o Brasil - Alexei Labetski, Embaixador da Rússia no Brasil (Folha de S. Paulo)

Pioneiros marcam relação Brasil-Rússia, que hoje faz 195 anos Esforços de Franz Borel e Georg Langsdorff continuam vivos para novos diplomatas  

Alexei Labetski, Embaixador da Rússia no Brasil 
Folha de S. Paulo, 3/10/2023

Neste 3 de outubro, celebramos o 195º aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas russo-brasileiras. Ao longo desses anos, nossos povos e Estados percorreram um grande caminho: épocas e formas de governo mudaram, grandes turbulências foram seguidas por períodos de prosperidade econômica e cultural, mas a aproximação foi praticamente ininterrupta e, no fim, levou à criação de aliança estratégica russo-brasileira, em 2000.  

Enquanto no mar as mudanças de tempo dependem de causas naturais, nas relações entre as potências o quadro é claro, luminoso e calmo somente quando os esforços dos diplomatas, que visam a estabelecer o diálogo e buscar pontos de contato mútuo, são coroados de êxito. Sabemos muito sobre diplomatas famosos e figuras políticas do presente e do passado recente, mas os nomes dos pioneiros que estiveram nas origens das relações russo-brasileiras não são ouvidos com frequência. Portanto, gostaria de lembrar o trabalho de Franz Borel, o primeiro enviado russo ao Brasil. 

 No início dos anos 2000, historiadores russos da Universidade Estatal de São Petersburgo realizaram um grande estudo sobre a vida dele. Como Franz Borel não deixou memórias, os historiadores se basearam em documentos de arquivo e em reminiscências escritas de seus contemporâneos. Franz Borel, de família francesa, nasceu em Turim em 1775. Sua juventude passou na Itália: Borel teve a oportunidade de viajar bastante pela Europa e receber uma educação decente no auge do Iluminismo, um período de rápido desenvolvimento do pensamento científico, filosófico e sociopolítico.

 Em 1799, em Nápoles, Franz Borel tornou-se assistente do representante comercial russo e, em 1804, visitou pela primeira vez São Petersburgo, onde conheceu um talentoso diplomata russo, o futuro ministro dos Negócios Estrangeiros do Império Russo, conde Nikolai Rumiantsev. A visão ampla e as qualidades de um negociador de Borel chamaram a atenção do conde Rumiantsev, que, em 1804, convidou o jovem para integrar o serviço diplomático russo. 

Borel prestou considerável assistência ao conde Rumiantsev na criação da expedição de assuntos consulares, escrevendo várias obras importantes sobre a organização e as peculiaridades do funcionamento das instituições consulares, nas quais apresentou propostas avançadas sobre a inseparabilidade dos lados político, diplomático e comercial de suas atividades. Em 1809 Franz Borel foi nomeado chefe do serviço consular russo. 

 Os sucessos de Napoleão na Península Ibérica forçaram a corte real portuguesa a deixar a metrópole rumo ao Brasil em novembro de 1807, estabelecendo assim um precedente único de governar o império a partir do Novo Mundo. Em janeiro de 1808, todos os portos brasileiros foram abertos para navios estrangeiros, e São Petersburgo viu isso como uma oportunidade única para intensificar e expandir o comércio bilateral. No limiar de novos confrontos com Napoleão (a paz de Tilsit de 1807 com a França era muito frágil, mesmo no momento de sua assinatura), o Tesouro russo precisava de reabastecimento regular e volumoso, assim a tarefa de estabelecer comércio com Portugal e explorar o Brasil, confiada a Franz Borel, tornou-se uma questão estratégica. 

 O diplomata visitou pessoalmente Portugal, a ilha da Madeira (onde trabalhou por três anos) e o Brasil, estudando cuidadosamente as peculiaridades do funcionamento das rotas comerciais e das cadeias logísticas. Como resultado de sua pesquisa, Franz Borel preparou várias notas sobre o país e um projeto de uma convenção adicional ao tratado comercial russo-português, que enfatizava o papel especial do Brasil e propunha o estabelecimento de casas comerciais russas no Rio de Janeiro e em Salvador. A preparação para a implementação das ideias propostas por Borel levou muito tempo, de modo que ele pôde chegar ao Brasil como enviado russo somente em 1828, após a vitória da Rússia sobre a França napoleônica (1814) e a proclamação da independência do Brasil em 7 de setembro de 1822. Borel expressou repetidamente a necessidade de reconhecer o novo Estado –o ato correspondente foi entregue de São Petersburgo à corte no Rio de Janeiro em dezembro de 1827. 

No mesmo mês, o diplomata recebeu uma nomeação oficial, tornando-se o primeiro enviado do Império Russo ao Brasil. De julho a outubro de 1828, Franz Borel elaborou a minuta do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre a Rússia e o Brasil. Um procedimento burocrático complicado atrasou a análise do projeto em São Petersburgo, mas o diplomata, continuando sua missão no Brasil, não perdeu tempo. Trabalhando sozinho na missão, Borel não apenas lidou com tarefas políticas, representativas e administrativas, mas também, sem se poupar, trabalhou na criação de estudos exclusivos sobre administração pública, política externa e interna, geografia, comércio e agricultura. Durante o mesmo período, o diplomata ajudou a concluir a primeira expedição científica russa ao Brasil, realizada em 1821-1829 sob a liderança do famoso etnógrafo e naturalista russo Georg Langsdorff. 

As descrições geográficas e etnológicas exclusivas, juntamente com a coleção botânica reunida durante a expedição, foram transportadas para São Petersburgo graças ao trabalho meticuloso de Borel. Franz Borel tinha um amor genuíno pelo Brasil e levava a sério as reviravoltas políticas. Como monarquista convicto, criticava as recém-criadas repúblicas da América Latina e não queria que o Brasil sofresse o "destino" delas. A crise política de março-abril de 1831, em decorrência da qual o imperador Pedro 1º do Brasil, sob pressão de oposição, foi forçado a assinar uma abdicação em favor de seu filho e ir para Portugal, causou um golpe irreparável em Borel, piorando a saúde já fragilizada do diplomata. Em 23 de dezembro de 1831, o diplomata teve um derrame e, em 1º de janeiro de 1832, Franz Borel faleceu. 

 Muitos anos se passaram, e os esforços de Borel e Langsdorff –pioneiros dedicados à ideia da cooperação russo-brasileira– continuam vivos, apoiados pelo trabalho de novas gerações de diplomatas. A vida e o trabalho de Franz Borel são um exemplo importante para nós, pois ele provou, por meio de sua própria experiência, que nem a distância geográfica nem o fato de pertencer a tradições culturais diferentes podem se tornar obstáculos para a aproximação de duas grandes nações –o colosso do norte e o gigante tropical.