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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Ouro brasileiro foi a maior catástrofe econômica e política de Portugal - João Pereira Coutinho (Folha de S. Paulo)

 Ouro brasileiro foi a maior catástrofe econômica e política de Portugal

João Pereira Coutinho

Folha de S. Paulo, 2/01/2024


Saberá Flávio Dino que a descoberta das minas na antiga colônia foi motivo de atraso para o desenvolvimento do país

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Amigos brasileiros, meio a sério, meio a brincar, costumam pedir de volta "o ouro do Brasil". De início, ficava pasmo. Ouro? Qual ouro? Não uso joias. Sempre achei que um homem com joias é um erro de casting.

Não, não são joias, Little Couto. Eles querem de volta o ouro que os portugueses levaram do país a partir de finais do século 17.

 

Tempos atrás, por causa de um lamentável episódio xenófobo com uma brasileira em Portugal, o ministro Flávio Dino até deu cobertura oficial à exigência. Se os portugueses não gostam de brasileiros, podem devolver também o ouro de Minas Gerais!

Calma, ministro. A estupidez de um patrício não define um povo inteiro. E, sobre o ouro, saberá o senhor que a descoberta das minas foi, provavelmente, a maior catástrofe econômica e política de Portugal? E que o atraso do país na era contemporânea se explica, precisamente, pelo ouro que o senhor reclama?

A tese está contida num dos melhores livros de 2023, que merecia uma edição brasileira, até para acalmar os ânimos. O autor é Nuno Palma, historiador português e professor da Universidade de Manchester, que analisa com rigor "As Causas do Atraso Português" (D. Quixote/Leya, 408 págs.).

 

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No século 19, esse atraso consumiu os melhores espíritos e ficou célebre a conferência de Antero de Quental sobre as "Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos".

O atraso dos ibéricos, segundo o filósofo e poeta, era explicado, entre outros fatores, pelo catolicismo obscurantista que impediu o progresso material, institucional e mental.

Nuno Palma não compra essa versão: países católicos, como a Bélgica ou a França, foram casos de sucesso na Europa oitocentista. Se queremos encontrar as raízes do atraso temos de viajar até ao século 18, quando o ouro começou a chegar em quantidades apreciáveis.

Sim, no curto prazo, Portugal enriqueceu. Mas a "maldição" desse recurso distorceu a economia de forma profunda, levando ao abandono das fábricas (a industrialização do país que era promissora no último quartel do século 17), ao favorecimento das importações e ao colapso da competitividade pátria.

Em meados do século 18, quando o ouro ainda chegava, a economia portuguesa estagnou e Portugal perdia o trem da Revolução Industrial. Estavam abertas as portas para o medonho século 19, feito de guerras civis e bancarrotas.

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Mas o ouro do Brasil não teve apenas um impacto econômico nocivo. Argumenta Nuno Palma que, politicamente falando, o atraso institucional foi comparável. Quem pensa que o absolutismo régio português emergiu na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, desconhece o papel das cortes na limitação do poder do rei para lá desse período.

Esse elemento "protoliberal", que em Inglaterra só se afirmou verdadeiramente com a Revolução Gloriosa de 1688-1689, sempre fez parte da cultura institucional portuguesa desde a fundação.

Se o rei queria cobrar impostos, por exemplo, tinha de ouvir os representantes municipais, eleitos pelos seus pares. Para usar um célebre bordão americano, "no taxation without representation". A convocação das cortes era a expressão institucional desse princípio.

No século 18, com o ouro brasileiro, as cortes não se reuniram uma única vez. Para quê? A liquidez de que a Coroa dispunha permitia-lhe atuar sem prestar contas a ninguém.

No fundo, permitia-lhe atuar sem freios e contrapesos, cultivando antes as suas clientelas parasitárias e venais. O Marquês de Pombal e seus sucessores representaram bem essa nova cultura despótica e "iluminada".

Moral da história?

O iliberalismo português, que obviamente contagiou o Brasil, não começa com Salazar e a ditadura do Estado Novo no século 20. Começa antes, muito antes, na experiência absolutista de 700, que se espraiou até aos nossos dias.

Devolver o ouro?

Ó, meus amigos, ó meus irmãos: pudesse eu viajar no tempo para influenciar as cabeças dos meus antepassados e o ouro ficaria escondido nas entranhas de Minas Gerais.

Pelo menos, até que portugueses ou brasileiros tivessem atingido um patamar de desenvolvimento político e econômico a partir do qual o ouro seria uma benesse, e não uma ruína.

 

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

A vertigem da democracia: livro de David Stasavage: The Decline and Rise of Democracy: A Global History from Antiquity to Today - João Pereira Coutinho (FSP)

Um livro que cabe ler com a curiosidade que sempre temos por esse "pior regime político, com a exceção de todos os demais"...

Paulo Roberto de Almeida

João Pereira Coutinho* - A vertigem da democracia

- Folha de S. Paulo (13/10/2020)

O combustível do populismo é real, mesmo que as soluções populistas sejam ilusórias

Existem duas formas de falar em democracia. A primeira é lembrar os poetas que deixaram páginas belíssimas sobre o governo do povo, para o povo e pelo povo.

A segunda é optar pelos realistas, que nos dão uma visão mais desencantada sobre o fenômeno. O cientista político David Stasavage pertence ao segundo grupo, e o seu mais recente livro, The Decline and Rise of Democracy: A Global History from Antiquity to Today (Princeton, 406 págs.), é um dos livros do ano.

Li a obra de um fôlego só, assombrado pela inteligência do homem. Tese: se você pensa que a democracia nasceu na Grécia, foi refinada em Roma, desapareceu na Idade Média, reemergiu na Itália renascentista e foi reinventada pelos “pais fundadores” dos Estados Unidos, você está enganado.

Formas de “democracia primordial” (“early democracy”) encontram-se em variadas regiões, em variadas civilizações, e sempre pelo mesmo motivo: quem governa precisa de ajuda para governar. Precisa de dinheiro —e não é possível cobrar impostos sem o consentimento daqueles que estão dispostos a contribuir. Precisa de soldados —e não é possível ter exércitos sem o consentimento daqueles que estão dispostos a lutar.

A história da democracia é a história de uma troca: se o líder quer o meu dinheiro ou a minha coragem, eu tenho uma palavra a dizer sobre os destinos da comunidade.

Isso foi válido na Atenas do século 5 a.C.. Mas também nas 13 colônias americanas do século 18 ou nos países europeus durante e depois da Primeira Guerra Mundial.

Mesmo o voto feminino se explica por um estado de necessidade: se os homens lutavam no front, era preciso que as mulheres ocupassem os postos de trabalho dos machos para salvar a economia. Com essa emancipação econômica, chegou a emancipação política.

Claro que nem todas as civilizações optaram pela via democrática. Muitas optaram pela via autocrática —e pelos motivos inversos: o poder central não precisava do consentimento dos súditos para nada. Com aparelhos burocráticos e repressivos mais avançados, era possível governar sem perder tempo com consultas ou negociações. O Big Brother observava e sabia tudo.

Essa, aliás, é a grande diferença entre a China e a Europa: a primeira, tecnologicamente mais refinada, conseguiu mapear os solos e as populações com assinalável precocidade histórica; a segunda, pelo menos até a era moderna, sempre se caracterizou por Estados fracos ou insuficientemente burocratizados, obrigando os seus líderes à negociação.

Como afirma David Stasavage com deliciosa ironia, foi o relativo atraso da Europa medieval que deu uma chance à democracia no Ocidente. Primeiro, ao permitir que ela sobrevivesse na sua forma primordial, feita de consulta e consentimento permanentes.

E, depois, ao permitir também a evolução da democracia primordial para a democracia moderna, nascida nos Estados Unidos. Qual a diferença?

Na democracia moderna, a consulta e a deliberação diretas foram substituidas pela representação política, até por motivos de extensão geográfica: votamos, elegemos os nossos representantes e são eles que decidem em nosso nome.

De certa forma, é nesse estágio que ainda nos encontramos. E se hoje sentimos que a democracia está em crise, isso se explica pelos dois elementos divergentes da democracia moderna: por um lado, a participação política é mais ampla do que na democracia primordial; por outro, essa participação é também mais episódica e pouco convincente. Alguém acredita mesmo que o seu voto é assim tão decisivo?

Sentimos que o poder está mais distante. Mas não só: sentimos também que o poder está mais poderoso —como se o líder, agora auxiliado pela mais avançada burocracia e tecnologia, já não precisasse de nós para nada. Exatamente como se fosse um autocrata.

O que isso gera é desconfiança e ressentimento —a mistura explosiva que o populismo explora. Curioso: o combustível do populismo político é real, e não ilusório, mesmo que as soluções populistas sejam ilusórias, e não reais.

Como resolver o impasse?

Concordo com David Stasavage: temperando as virtudes da democracia moderna com as virtudes da democracia antiga. Descentralizando, devolvendo poder aos cidadãos, limitando o poder de quem governa.

Se isso não acontecer, a história da democracia terá o mesmo fim que a história da autocracia. A única diferença é que demoramos mais tempo para lá chegar.

*João Pereira Coutinho, escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Artistas brasileiros nao tem vergonha de apoiar ditaduras assassinas, mas condenam Israel...

Seria interessante conhecer os nomes dos 55 "artistas" que assinaram a carta.
Devem ser medíocres, mas pelo menos, divulgando seus nomes, os verdadeiros amigos das liberdades democráticas e dos direitos humanos não correriam o risco de comprar alguma obra desses energúmenos algum dia...
Paulo Roberto de Almeida

Colunistas
A arte da fuga
 João Pereira Coutinho
Folha de S.Paulo, 2/09/2014

Quem leva a sério a opinião política dos artistas? Eu não. Deixei de o fazer com a ruína dos regimes totalitários.

Nas pinturas de Isaak Brodsky (sobre Lênin); nos filmes de Leni Riefenstahl (sobre Hitler); e nas telas de Alessandro Bruschetti (sobre Mussolini), a "arte política" deixou um testamento vergonhoso, que passou pela legitimação –melhor: pela exaltação das virtudes de psicopatas.

Exceções, sempre houve. Mas o casamento entre arte e política normalmente deu maus resultados. A "arte pela arte" não é apenas um bordão do século 19. É um conselho prudente para quem tem pretensões de se dedicar a ela.

Por isso ri alto com a carta aberta que 55 artistas enviaram à Fundação Bienal de São Paulo.

Ponto prévio: nenhuma pessoa adulta escreve cartas abertas em manada; quando falamos de artistas, ou pretensos artistas, a coisa ainda soa pior. Ou a arte vive da autonomia individual, ou não vive. Só covardes assinam em manada.

Mas os 55 revoltaram-se com o apoio financeiro que Israel concedeu à Bienal. Não querem dinheiro judeu porque acreditam que esse dinheiro, depois da guerra em Gaza, conspurca as suas integridades estéticas.

Se o dinheiro fosse da Autoridade Palestina, ou até do Hamas, talvez a conversa fosse outra. Não é. É de Israel.

Não vou regressar ao conflito entre Israel e o Hamas, que vive agora a sua trégua clássica antes do próximo confronto. Enquanto o mundo não entender direito a natureza islamita e jihadista do Hamas, não vale a pena gastar latim com o assunto.

Mas talvez não seja inútil fazer uma pergunta meramente teórica: de que vive a arte, afinal?

Arrisco uma resposta: a arte vive da liberdade. Um clichê sem grande importância?

Errado. Parafraseando Saul Bellow, eu gostaria de conhecer o Balzac dos zulus. Não conheço. Se Nova York, Londres ou Berlim são centros de excelência estética, isso deve-se à estabilidade política e à riqueza material de tais cidades.

E mesmo que a arte seja "engajada", o que já me parece uma corruptela da sua vocação, convém que o "engajamento" seja direcionado para os alvos certos.

Os 55 artistas da Bienal falham nos dois planos.

Começando pela liberdade, basta consultar os rankings da ONG Freedom House para 2014. Não vou cansar o leitor com números e mais números. Resumindo, digo apenas: Israel é o único país do Oriente Médio e do norte de África considerado "livre". O resto oscila entre "parcialmente livres" (Tunísia, Líbia, Kuait) e "não livres" (Iraque, Irã, Arábia Saudita).

E, para ficarmos na vizinhança de Israel, é a desgraça: Jordânia, Egito ou Síria continuam antros de repressão. Os 55 artistas, que deveriam defender a liberdade de expressão como quem defende o oxigênio, assinam uma carta contra o único país que respeita essa liberdade em todo o Oriente Médio.

E sobre os direitos humanos? Fato: Israel merece várias linhas de condenação nos relatórios anuais da Human Rights Watch, outra ONG independente. Mas nada que se compare ao comportamento dos mesmos países do Oriente Médio, para não falar da vizinhança em volta.

Um bom indicador do respeito pelos direitos humanos está no tema clássico da pena de morte. Israel aboliu-a para crimes civis. Do Egito à Jordânia, do Líbano à Autoridade Palestina, a execução judicial continua a verificar-se.

Digo "judicial" porque o Hamas, todos o sabemos, prefere fazer as coisas de forma "extrajudicial", fuzilando traidores no meio da rua.

De resto, será preciso dissertar sobre a diferença entre os "direitos" das mulheres ou dos homossexuais em Israel e nos países em volta? Será preciso recordar o histórico de amputações de membros e lapidações de adúlteras que existe por aquelas bandas?

E será preciso acrescentar alguma coisa à selvageria do Estado Islâmico do Iraque e do Levante, que pelo visto não incomoda os 55 artistas da Bienal de São Paulo?

Criticar Israel é legítimo. Nenhum governo está acima da crítica. Transformar Israel em pária internacional é uma forma de cegueira antissemita.

Eu só respeitarei a "coragem" dos 55 artistas no dia em que eles viajarem para Bagdá, Riad ou Gaza e escreverem uma carta contra os governos locais. Em defesa da liberdade e dos "direitos humanos".

Isso, claro, se ainda tiverem mãos para escrever.

João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro 'Avenida Paulista' (Record) e é também autor do ensaio 'As Ideias Conservadoras Explicadas a Revolucionários e Reacionários' (3 Estrelas). Escreve às terças na versão impressa e a cada duas semanas, às segundas, no sit