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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sábado, 23 de novembro de 2024

Bestializado: os brasileiros e o G20 - Simon Schwartzman (Estadão)

 Bestializado

By Simon Schwartzman on Nov 22, 2024 07:19 am

(Versão modificada de artigo publicado em O Estado de São Paulo, 22 de novembro de 2024)

José Murilo de Carvalho, em “Os bestializados”, lembra como como o povo do Rio de Janeiro, sem saber do que se tratava,  assistiu à mobilização dos militares que implantaram a República em 1889. Foi assim que me senti ao acompanhar de perto, na Zona Sul do Rio de Janeiro, as grandes movimentações da reunião G20, só comparáveis às da Olimpíada e da Copa do Mundo em 2014 e 2016. Mais uma vez o Brasil, e especialmente o Rio de Janeiro,  se colocavam no centro do mundo, e eu, tão pertinho, não havia sido convidado…

Não é que o povo, desta vez, tivesse ficado totalmente de fora. A Cúpula Social do G20, alguns dias antes, contou com a presença de milhares de participantes de 271 entidades da sociedade civil, que em três dias aprovaram um documento que foi encaminhado ao Presidente Lula para ser incluído na pauta da reunião. Além disso, inúmeros grupos de trabalho e de engajamento foram mobilizados, e a declaração final foi um documento com 85 recomendações e compromissos assinados pelos chefes de estado das maiores economias do mundo, sob a coordenação do governo brasileiro. A proposta de taxação das grandes fortunas não foi aprovada, mas em compensação ficou registrada a criação da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza. Fala-se em mais de 40 bilhões de dólares a serem mobilizados até 2030, com recursos já existentes em agências como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e outros a serem levantados. Para gerenciar a aliança, o Brasil desde já vai financiar a instalação de um escritório em Brasília e outro em Roma. Um grande sucesso, e mais uma vez não só a Europa, como o mundo, se curvam diante do Brasil

Será? Criado 25 anos atrás como um fórum para lidar com as crises financeiras internacionais, reunindo ministros de finanças e presidentes de bancos centrais das grandes potências e países emergentes, o G20 evoluiu para uma reunião anual de chefes de Estado e de Governo, tendo como prioridade o fortalecimento da governança internacional da economia, mas ampliando a agenda para temas como crescimento sustentável, redução da pobreza e desigualdade e clima.  Na reunião do Rio de Janeiro predominou a ideia de que ela deveria contribuir para a instalação de uma nova ordem internacional, baseada no consenso e na participação ampla de países do “sul global” e da sociedade civil, que substituiria a ordem criada depois da Segunda Guerra, com as Nações Unidas, o FMI e o Banco Mundial. Nesta nova ordem países de porte médio, ou “emergentes”, como o Brasil, Índia, México, África do Sul e Indonésia, assumiriam posições de liderança em um sistema multipolar no qual os Estados Unidos e a Rússia teriam menos importância do que até agora. Com a Rússia isolada pela guerra da Ucrânia e a eleição de Trump apontando para um novo isolacionismo americano, esta nova ordem seria claramente liderada pela China. Não é à toa que a figura em destaque da reunião foi Xi Jinping, que vem liderando os esforços de criação de uma um novo sistema internacional multipolar e globalizado liderada por Pequim.

Sem Vladimir Putin e com John Biden em final de mandato, nada de novo surgiu em relação às guerras da Ucrânia e de Gaza, e as propostas de reformular as Nações Unidas, reforçando o peso da Assembléia Geral e a composição do Conselho de Segurança, simplesmente reiteram o que representantes do Brasil e de outros países vêm dizendo há anos, e não há nenhuma indicação de que elas serão implementadas desta vez. Neste como nos temas de mudança climática e as questões emergentes das novas tecnologias de informação e da inteligência artificial, a maioria das decisões e compromissos do documento final são recomendações gerais,  inexequíveis  ou já em andamento de alguma outra forma.

A pergunta que fica é se grandes mobilizações de pessoas e recursos como esta, que culminou com dois dias de caos na Zona Sul do Rio de Janeiro – com tropas e caminhões do exército nas esquinas, aeroporto fechado, motocicletas e sirenes abrindo caminho para as autoridades, sem falar no dinheiro gasto – produz resultados que justificam o esforço, ou não são simplesmente um grande exemplo de turismo diplomático. A resposta está em algum lugar entre os extemos do entusiasmo e do ceticismo total, e eu tendo a ficar mais próximo do segundo. Não há dúvida que juntar pessoas para discutir e elaborar propostas sobre temas importantes é sempre útil, e contatos entre representantes de governos e outras entidades públicas e privadas podem gerar novas modalidades de cooperação. As reuniões servem também para colocar em evidência alguns temas relevantes que algum dia podem gerar políticas e mecanismos específicos de cooperação.

O velho sistema bipolar do pós-guerra já não existe, mas a construção desta nova ordem é uma tarefa difícil, que passa entre outras coisas pela capacidade de a comunidade internacional administrar conflitos locais como as guerras da Ucrânia e Gaza e cooperar efetivamente em grandes temas de comércio, meio ambiente, pobreza e valores democráticos.  É uma construção complexa e incerta, que depende mais de negociações técnicas bi e multilaterais do que por conferências de grande visibilidade como as do G20.

Tomara que as recomendações da reunião do Rio de Janeiro se cumpram. Enquanto isto, se houver lugar, me candidato para trabalhar no novo escritório em Roma que o governo brasileiro vai abrir.


terça-feira, 25 de junho de 2024

O Brasil é um deserto de homens e ideias’- Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

 

Opinião |

‘O Brasil é um deserto de homens e ideias’

As reuniões do G-20, da COP-30 e do Brics talvez sejam as últimas oportunidades de o País firmar sua voz na defesa de seus interesses concretos


Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 25/06/2024 


O comentário sobre o Brasil de Oswaldo Aranha, feito há cem anos, continua atual. A falta de liderança no governo, no Congresso, no meio empresarial e na sociedade civil em geral torna difícil pensar um Brasil acima de interesses partidários, particulares e setoriais. A divisão política interna e a polarização de opiniões impedem que se discuta e, muito menos, que se forme consenso sobre um projeto nacional ou sobre a relevância do Brasil no mundo, suas prioridades e vulnerabilidades, com uma visão estratégica de médio e longo prazo.

A tarefa ainda é mais complicada não só pelas dificuldades internas, mas sobretudo porque o mundo passa por rápidas transformações com a emergência de uma nova ordem internacional. Na economia global, as regras são colocadas de lado e prevalecem o poder e interesses dos países individualmente considerados, com ênfase no protecionismo e em medidas restritivas unilaterais que desrespeitam as regras vigentes e chegam a ser utilizadas como armas na competição entre Estados.

Dentro desse quadro difícil, não se vê claramente a reação do Brasil. No discurso, o atual governo definiu corretamente suas prioridades: desenvolvimento econômico com redução da pobreza, estabilidade econômica com redução da taxa de juro e da inflação, além de uma nova política industrial. Externamente, voltar a ter uma voz no mundo e nas organizações multilaterais, dar prioridade ao meio ambiente, à mudança de clima e a liderar a América do Sul.

O problema é que, depois de um ano e meio de governo, tanto interna quanto externamente, as prioridades do governo não estão sendo concretizadas ou apenas parcialmente. A disfuncionalidade do governo e a falta de rumo e de objetivos claros fazem com que as reformas estruturais na economia, na área social e na educação e na saúde não estejam sendo alcançadas. A situação se complica ainda mais na política externa e de defesa e segurança nacional pela desorganização da ordem internacional com duas guerras (na Europa e em Gaza) e uma crescente competição e confrontação entre EUA e China, com efeitos políticos, econômicos e comerciais para todos os países. Apesar de ser uma potência média global, por não ter excedente de poder, não há espaço para o Brasil influir, com peso próprio, no curso das confrontações bélicas na Ucrânia e em Gaza.

Dada a atual configuração geopolítica e geoeconômica, o Brasil, país continental, com mais de 210 milhões de habitantes, oitava economia do mundo, não pode ficar refém de decisões ideológicas e de interesses partidários. Embora pertencendo ao Ocidente, por seus valores e princípios, o Brasil está cada vez mais dependente da Ásia, para onde vão 50% das exportações e 37% dos produtos agrícolas. Na defesa dos interesses nacionais, o governo atual não tem alternativa, a não ser adotar uma posição de equidistância na crescente confrontação entre o Ocidente e o antiocidente, liderado por China e Rússia e fortalecido com a ampliação do Brics. Neutralidade ativa, aliás, como a Índia está fazendo, ao jogar nos diversos tabuleiros com sua voz independente na defesa de seus interesses, mantendo boas relações com todos.

O Brasil precisa sair de uma posição defensiva, principista, e passar a defender explicitamente seus interesses. Voz poderosa nas questões ambientais, de segurança alimentar e de transição energética, o País já deveria ter questionado as restrições da União Europeia no tocante ao desmatamento e as exportações de produtos agrícolas, e às emissões de gás de efeito estufa quanto a produtos industriais (CBAM). A exemplo do que todos os países estão fazendo, devemos continuar a apoiar as medidas de defesa de meio ambiente e redução das emissões de gás carbônico, mas não devemos perder de vista a prioridade para o desenvolvimento econômico e a redução da pobreza, que virão com o aproveitamento de nossas riquezas na biodiversidade, de minerais críticos e raros, com valor agregado para favorecer a indústria, e da energia fóssil na Margem Equatorial, como estão fazendo a França, na Guiana Francesa, e a Guiana. A liderança da integração regional na América do Sul começa a ganhar forma na questão ambiental na Amazônia e nos programas de integração física no Norte (rodovias, ferrovias e hidrovias) e no Sul (rodovias), abrindo caminho para os produtos brasileiros chegarem à Ásia pelos portos do Pacífico.

As reuniões do G-20, da COP-30 e do Brics talvez sejam as últimas oportunidades de o Brasil firmar sua voz na defesa de seus interesses concretos e não entrar em um jogo político, sem ver suas propostas aceitas.

Recentemente, como contribuição a essa discussão, o Instituto Federalista e o Sagres divulgaram o documento Projeto de Nação – O Brasil em 2035. E atualmente encontra-se em fase final de elaboração, no Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen), documento sobre o lugar do Brasil no mundo, com o objetivo de promover uma ampla discussão sobre as perspectivas do Brasil, não limitada a apenas um pequeno grupo de economistas e acadêmicos. O Executivo, o Congresso e a sociedade civil têm uma grande responsabilidade de, por um momento, colocar interesses menores de lado e pensar nos rumos do País, hoje à deriva, com visão de médio e longo prazo.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Ainda o caso Putin no G20 - Felipe Krause

 Copio de @felipe_krause:

“ Governo tenta dar um jeitinho jurídico na ONU para permitir vinda de Putin ao G20 no Brasil.

Além de moral e politicamente repugnante, a medida é um erro estratégico. Por quê?

1) No Brasil, só vai agradar a esquerda nacionalista, que já tinha precificado a ausência do Putin. Com o resto do eleitorado, só vai comprar briga.

2) No exterior, dificilmente vai agradar algum parceiro em particular. Mas vai desagradar quase todos os demais convidados do G20.

3) É possível que algum outro convidado cancele sua vinda, em protesto (explicito ou implícito) à presença de Putin.

4) A medida tem poucas chances de prosperar. Portanto, a relação risco/beneficio é péssima.

5) O resultado final dessa tentativa, com a vinda efetiva de Putin ou não, só pode ser uma: tiro no pé, custo político, vergonha, e risco de contaminar agendas boas que o Brasil tenta emplacar no G20. 

Em resumo: a medida soa infantil, amadora e petulante. Um erro crasso.”

Minha questão (PRA):

Resta saber de onde veio esse parecer que remeteu o caso à CDI: se do próprio Itamaraty, se da PR.

Os perigos da diplomacia personalista: Putin, TPI e G20 - Ricardo Della Coletta, José Marques (FSP), Paulo Roberto de Almeida

 Primeiro a noticia (ver a íntegra abaixo):

“ PUTIN

Governo produz parecer que embasa possível vinda de Putin para o G20. Texto oferece defesa para descumprir eventuais ordens de prisão do TPI contra chefes de Estado. A Folha de S. Paulo questionou o Itamaraty sobre o parecer apresentado na ONU e sua relação com a possível vinda de Putin ao Brasil. O ministério respondeu que não comentaria, uma vez que o documento faz observações iniciais de um tema que ainda será negociado.”

Agora o comentário:

O Estatuto de Roma está incorporado à Constituição do Brasil. Mas Lula nunca ligou para isso, assim como nunca ligou para as cláusulas de relações internacionsis contidas no art. 4. da mesma Carta, sobretudo o item da não interferência nos assuntos internos de outros Estados. Ele o fez sistematicamente a favor de seus amigos esquerdistas, com destaque para os comunistas cubanos, os chavistas (Chávez, Morales e outros), e todos os demais que estivessem na lista de alianças do PT. Mais ainda: isso ultrapassa o terreno da esquerda, como visto no caso de Putin, que é simplesmente o fato da aliança com tudo e todos que se contrapõem aos Estados Unidos.

Disso já sabemos. O que não sabíamos é que o Itamaraty confirma sua submissão caolha, míope, ao que deseja o chefe de Estado. Já o fez sob Bolsonaro, está fazendo novamente sob Lula.

Diplomacia presidencial pode ser um problema, dependendo da qualidade do chefe do Executivo. Vargas, Geisel e FHC conduziram pessoalmente a diplomacia do Brasil em seus respectivos mandatos. Com os demais presidentes, o Itamaraty teve certa latitude de ação, de aconselhamento e até de condução de determinados assuntos.

Diplomacia personalista sempre é um problema, pois que o chefe de Estado conduz as relações exteriores segundo critérios que podem não ser os mais adequados do ponto de vista dos interesses do Brasil, tal como refletidos na agenda do Itamaraty.

Lamento pelos meus colegas diplomatas, lamento pelo Brasil.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 1/04/2024

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Governo Lula produz parecer que embasa possível vinda de Putin ao Brasil no G20

Texto oferece defesa para descumprir eventuais ordens de prisão do TPI contra chefes de Estado


BRASÍLIA

O governo Lula (PT) produziu um parecer com argumentação jurídica que embasa eventual vinda ao Brasil do presidente da Rússia, Vladimir Putin, mesmo ele sendo alvo de um mandado internacional de prisão.

O documento foi submetido em novembro do ano passado à Comissão de Direito Internacional da ONU. O órgão atualmente trabalha na elaboração de uma normativa sobre imunidade de jurisdição a chefes de Estado. O status, que também pode ser conferido a outras altas autoridades, garante que esses líderes não sejam processados ou atingidos por ações judiciais vigentes nos países que os recebem em visitas internacionais.

O governo brasileiro não cita diretamente Putin no texto, mas faz referência a um cenário que se encaixa na situação atual do líder russo: ele é alvo de um mandado de prisão expedido pelo TPI (Tribunal Penal Internacional), acusado de ter permitido que ocorressem crimes de guerra no conflito com a Ucrânia.

Como o Brasil é signatário do Estatuto de Roma, que criou o TPI, o país em tese está obrigado a prender Putin caso ele desembarque em território nacional. Encarcerá-lo em solo brasileiro é, no entanto, um cenário considerado inimaginável devido às consequências geopolíticas e de segurança que a detenção do líder da segunda maior potência militar do planeta representaria.

Ainda assim, a hipótese de uma ordem de prisão tem potencial de criar, no mínimo, constrangimento diplomático para Brasil e Rússia em plena cúpula do G20 caso Putin venha para o encontro no Rio de Janeiro em novembro.

O texto submetido à Comissão de Direito Internacional não tem efeito prático e tampouco é garantia de que o Brasil estaria livre de censura do TPI caso ignore uma ordem do tribunal durante possível passagem de Putin pelo país, segundo especialistas ouvidos pela Folha.

Ele indica, porém, uma opinião oficial do governo Lula no sentido de que a imunidade de jurisdição de Putin deveria protegê-lo do alcance do TPI na hipótese de que essa viagem se concretize.

O principal argumento do documento é que acordos que criam tribunais internacionais (como é o caso do Estatuto de Roma) devem ter efeito apenas entre as partes que assinaram o tratado.

Por essa tese, um chefe de Estado de um país não signatário não poderia ter sua imunidade ignorada mesmo ao estar em um território que reconhece a autoridade dessa corte internacional. A Rússia retirou sua assinatura do Estatuto de Roma em 2016.

Em um dos parágrafos do parecer, o Brasil concorda que a imunidade de jurisdição para altas autoridades "não deve afetar os direitos e as obrigações dos Estados partes diante de acordos que estabeleceram cortes e tribunais penais internacionais". Mas em seguida destaca que isso deve ocorrer no âmbito das "relações entre as partes desses acordos".

"É norma básica da lei internacional geral, codificada no artigo 34 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que 'um tratado não cria obrigações ou direitos para um terceiro Estado sem o seu consentimento'", diz o texto.

"Dessa forma, enquanto os artigos [sobre imunidade] não afetam obrigações de tratados referentes a tribunais internacionais, esses acordos internacionais não afetam a imunidade de agentes de Estados não partes".

O Brasil afirma ainda que a imunidade de jurisdição para dirigentes é essencial "para promover entendimentos pacíficos de disputas internacionais e relações amigáveis entre os Estados, inclusive na medida em que permite que funcionários de Estados participem em conferências internacionais e missões em países estrangeiros".

E faz eco a uma crítica que já circulou entre representantes de países em desenvolvimento sobre o mandado do TPI contra Putin: a de que a corte está sendo usada politicamente. "[A imunidade de jurisdição] contribui para a estabilidade das relações internacionais, por prevenir o exercício abusivo, arbitrário e politicamente motivado da jurisdição criminal que pode ser usado contra agentes dos Estados".

Folha questionou o Itamaraty sobre o parecer apresentado na ONU e sua relação com a possível vinda de Putin ao Brasil. O ministério respondeu que não comentaria, uma vez que o documento faz observações iniciais de um tema que ainda será negociado longamente no âmbito da Comissão de Direito Internacional.

A reportagem também encaminhou o parecer a quatro especialistas em direito internacional. Três viram na argumentação uma tentativa de flexibilizar as obrigações do Brasil junto ao TPI e disseram que a hipótese descrita na redação se aplica à situação de Putin.

André de Carvalho Ramos, professor de Direito Internacional da USP (Universidade de São Paulo), diz que a argumentação feita pelo Brasil tem como base um dispositivo específico previsto no próprio Estatuto de Roma: o de que um pedido do TPI pode não ter efeito caso o Estado requerido seja obrigado a atuar de forma incompatível com o direito internacional "em matéria de imunidade dos Estados".

O problema, prossegue o professor, é que já existe precedente sobre esse tema.

"O TPI decidiu que a Jordânia violou o Estatuto de Roma ao não prender em 2017 o então presidente do Sudão Omar al-Bashir durante visita dele ao país. Pois bem, a Jordânia apelou e, em 2019, o TPI decidiu que a norma consuetudinária [invocada pelo Brasil] só se aplica a tribunais nacionais, inexistindo norma consuetudinária imunizante em face de tribunais internacionais, como o TPI", diz ele.

"No plano do TPI, mesmo que o Judiciário brasileiro dê razão ao governo federal, há fortíssima probabilidade do Brasil ter o mesmo destino que a Jordânia."

Wagner Menezes, presidente da Academia Brasileira de Direito Internacional, opina que a argumentação apresentada pelo Brasil "relativiza" o alcance do Estatuto de Roma e vai na contramão de um dos principais objetivos do TPI: o de constranger a movimentação internacional de pessoas acusadas de crimes de guerra e contra a humanidade.

"Não é relevante se a Rússia ratificou ou não o Estatuto. O Brasil não tem qualquer tipo de relação, nesse caso, com a Rússia. Trata-se de um tema da relação do Brasil com o tribunal", afirma.

Professor titular de Teoria e História do Direito Internacional, Arno Dal Ri Jr. vê na redação submetida pelo governo à ONU uma "cortina de fumaça". Ele também classifica a argumentação de "frágil".

"Os termos do documento são hipotéticos, em que se levanta vários quadros e hipóteses, dentre essas aquela de legitimação da vinda do Putin através da imunidade típica de chefes de Estado", diz.

"É um jogo muito dúbio que está sendo feito, no qual se sabe a realidade de que, em caso de pedido de entrega pelo TPI não cumprido pelo Brasil, existiria uma colisão [com o Estatuto de Roma] e o Brasil que seria responsabilizado por isso. Mas usa-se uma interpretação ampliada para retirar o foco do real problema jurídico que poderia advir."

Já o advogado e doutor em Direito Marcelo Peregrino Ferreira tem opinião diferente e não enxerga na hipótese tratada pelo parecer algo que beneficie o caso russo. "Acho que a investida do Brasil não é contra o Estatuto de Roma ou outra corte internacional, mas contra a suspensão da imunidade pela jurisdição criminal comum de países que não tem um tratado entre si. E a proposta brasileira não me parece beneficiar o caso russo", diz ele.

A possível vinda de Putin ao Brasil para a cúpula do G20 é um tema altamente sensível. Se confirmada, ela deve virar o fato político mais impactante da reunião.

Desde que ordenou a invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022, o líder russo virou alvo de uma operação que, orquestrada por Estados Unidos e Europa, busca isolá-lo nos diferentes fóruns internacionais. Ele não compareceu às duas últimas edições do G20, na Índia e na Indonésia —nenhum dos países é signatário do Estatuto de Roma.

A eventual vinda de Putin à cúpula no Rio de Janeiro motivou polêmica antes mesmo de o Brasil iniciar seu mandato na presidência do G20.

Em setembro de 2023, quando participava da cúpula do fórum em Nova Déli, Lula afirmou que seu homólogo russo não corria o risco de ser preso caso decidisse vir à edição seguinte do evento. "Se eu for presidente do Brasil, e se ele [Putin] vier para o Brasil, não tem como ele ser preso. Não, ele não será preso. Ninguém vai desrespeitar o Brasil", disse o petista na ocasião.

Dias depois, Lula voltou atrás e afirmou que a decisão sobre uma eventual prisão caberia ao Poder Judiciário. "Se o Putin decidir ir ao Brasil, quem toma a decisão de prendê-lo ou não é a Justiça, não o governo nem o Congresso Nacional."


segunda-feira, 11 de março de 2024

Falas disparatadas de Lula ameaçam esvaziar G20 (Diário do Poder)

Falas disparatadas de Lula ameaçam esvaziar G20
Diário do Poder, 11 de março de 2024 


O comportamento do presidente Lula (PT) comprometido com ditadores condenados em todo o mundo e até com o terrorismo do Hamas, acionou o alerta para diplomatas que participam da organização do encontro dos países do G-20, previsto para novembro, no Rio de Janeiro. Chefes de Estado e de Governo, que em geral participam dessas reuniões, dão sinais de que podem designar prepostos para que os representem, sejam vice-presidentes, ministros das relações exteriores ou diplomatas.

Fugindo da foto

O temor é que a presença dos dignitários não se confunda com apoio ao discurso inaceitável de Lula, na contramão do mundo democrático.

Passando pano em Putin

Lula tem enfiado o pé na jaca, em suas declarações, começando por ofender os europeus ao relativizar a invasão russa na guerra da Ucrânia.

Passando pano no Hamas

O petista também envergonhou o Brasil deixando de condenar as atrocidades do Hamas em Israel e até recebendo elogios dos terroristas.

Passando ano em ditadores

Lula provocou onda de protestos indignados ao avalizar amigos ditadores como Nicolás Maduro (Venezuela) e Daniel Ortega (Nicarágua).

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Lula mira no G20 após entraves na América Latina - Eliane Oliveira (O Globo)

 Lula mira no G20 após entraves na América Latina 

Eliane Oliveira
O Globo, 8/01/2024

No primeiro ano do terceiro mandato, presidente resgata imagem do Brasil no exterior, mas sofre revés na integração da América do Sul; atuação na presidência do grupo de maiores economias do mundo será prioridade em 2024, dizem analistas.

Em 2023, afirmam especialistas ouvidos pelo GLOBO, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu tirar o Brasil da condição de pária internacional e levar o país de volta aos grandes debates da agenda mundial, como prometido durante a campanha. A diplomacia voltada para a América Latina, no entanto, não saiu como esperado. 

Sem sucesso em seu projeto de integração sul-americana, Lula terá agora que intensificar seus esforços em uma região cada vez mais dividida em 2024, ano em que o governo estará concentrado na presidência do G20, grupo formado pelas maiores economias do planeta. Ainda no começo de 2023, Lula tentou ressuscitar a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), abolida no governo do então presidente Jair Bolsonaro. Promoveu, em maio, uma reunião de líderes da região em Brasília, mas, sem receptividade nem entre os governantes de esquerda, teve de desistir da ideia.

 Durante a cúpula, Lula dedicou tratamento diferenciado ao presidente venezuelano, Nicolás Maduro — aposta que também não deu certo. O chefe de Estado brasileiro causou polêmica à época ao declarar que as denúncias de desrespeito aos direitos humanos na Venezuela eram uma questão de “narrativa”. Atraiu críticas até mesmo de governos de esquerda na região, como o do chileno Gabriel Boric. Fator Milei Meses depois, foi apanhado de surpresa pela ameaça de Maduro de invadir a região do Essequibo, na Guiana, rica em petróleo — confronto que, caso saia da retórica, atinge diretamente o Brasil.  
Para dificultar ainda mais seu empenho na América do Sul, o economista ultradireitista Javier Milei, amigo da família Bolsonaro e que atacou duramente o presidente brasileiro durante a campanha, foi eleito na Argentina. Lula e Milei não se falam, mas a diplomacia dos países trabalha por uma boa relação. — Como se fosse pouco, a vitória de Milei e sua anunciada aproximação com os Estados Unidos subtrai de Lula seu principal trunfo diplomático no continente como interlocutor privilegiado e partícipe da mesma visão de mundo — afirma o ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente Rubens Ricupero, que chefiou as embaixadas do Brasil na Itália e nos EUA. 

 Ricupero cita, ainda, como fatores complicadores, o fato de o 
Chile não ter conseguido adotar uma nova Constituição, após dois referendos; o Peru seguir mergulhado em aguda instabilidade política; e a Colômbia, parceiro incontornável na Amazônia, ter-se convertido em promotora da tese de proibição da prospecção petrolífera na região, posição oposta à brasileira. — Parece natural, assim, que o eixo de prioridades da política exterior de Lula se desloque da América do Sul e dos problemas intratáveis da guerra da Ucrânia e da Faixa de Gaza [foco do conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas] para a ênfase no desafio de presidir o G20 e preparar sua grande reunião de cúpula no Rio em novembro de 2024. O diplomata reconhece, no entanto, que as prioridades de política externa definidas por Lula dominaram boa parte deste primeiro ano de governo. Segundo ele, pode-se dizer que algumas “foram finalizadas”, entre elas a de se garantir em pouco tempo que o Brasil estivesse de volta ao cenário mundial “como ator de primeira linha”. 

 — A expressão visível do atendimento dessas prioridades consistiu na rápida sucessão de viagens ao exterior: Buenos Aires, Montevidéu, Washington, Pequim, Lisboa, Bruxelas, além de visitas expressivas ao Brasil de personalidades como o chanceler alemão [Olaf Scholz], a presidente da União Europeia [Ursula von der Leyen] e altos funcionários americanos. A precondição para viabilizar tudo isso foram as profundas medidas internas de combate ao desmatamento e ao garimpo ilegal na Amazônia, a decisão de realizar em Belém a COP30 [Conferência Mundial sobre o Clima, em 2025], e a política em relação aos povos indígenas e aos direitos humanos. Creio que toda essa parte do programa foi concluída. Reposicionamento Marcos Caramuru, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e ex-embaixador na China e na Malásia, concorda que é preciso melhorar a coordenação dos países da América do Sul, num contexto de governos com diferentes orientações ideológicas e baixa capacidade de diálogo. 

Mas avalia que, em cenário em que as lideranças mundiais reconhecidas estão perdendo espaço e diversos países se posicionando de forma independente no quadro internacional, novas oportunidades se abrem. — O Brasil, que parecia haver desistido de ocupar um espaço próprio no cenário mundial, soube se reposicionar como ator visível e atuante. Em alguns momentos, a política externa alimentou a ambição de interferir em questões que não podemos resolver, o que não obscurece os acertos. Para Dawisson Lopes, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais, Lula cumpriu objetivos estabelecidos na transição: o Brasil retornou ao cenário internacional, participou de mesas negociadoras na América Latina e ao redor do mundo, e tem sido um articulador em temas como a governança ambiental. Lopes também cita o pagamento das dívidas com organismos internacionais e a volta do Brasil à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). E afirma que o mais importante está por vir: a atuação brasileira na presidência do G20. Nesse quesito, Lula busca agenda consensual: a luta contra a fome e a desigualdade; o combate ao aquecimento global e a reforma do sistema internacional.

 — O primeiro ano foi um ensaio para o que virá na política externa. É natural que alguns objetivos ainda não tenham sido atingidos, como a normalização democrática na Venezuela — diz o acadêmico. Principal formulador da diplomacia presidencial, o assessor para Assuntos Internacionais de Lula, Celso Amorim, confirma que o esforço de integração da América do Sul é prioridade. E destaca a presidência do G20 — o mandato do Brasil vai até novembro —, a preparação para a COP30, a aproximação com a África e a administração de impactos causados por crises. — O papel do Brasil em ajudar a resolver conflitos é reconhecido internacionalmente — afirma Amorim.  


quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Se Putin vier ao Brasil, ficaremos muito contentes, diz Mauro Vieira - Entrevista BBC NEWS

 Se Putin vier ao Brasil, ficaremos muito contentes, diz Mauro Vieira


Mauro Vieira comanda, pela segunda vez, Ministério das Relações Exteriores

Author: Leandro Prazeres

BBC News em Brasília, 
27/12/2023

O Ministro das Relações ExterioresMauro Vieira, disse em entrevista exclusiva à BBC News Brasil que o governo brasileiro ficará "contente" se o presidente da Rússia, Vladimir Putin, vier ao Brasil durante a cúpula do G20, em novembro de 2024, apesar de o russo ser alvo de um mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por supostos crimes de guerra cometidos na Ucrânia.

"Se ele (Putin) quiser vir, nós estaremos muito contentes que esteja presente e nas reuniões do Brasil", disse Vieira.

A possível vinda de Putin ao Brasil vem causando polêmica porque o Brasil é signatário do TPI desde 2000 e ratificou o tratado que criou o tribunal dois anos depois.

O tribunal é um órgão vinculado à Organização das Nações Unidas e que julga crimes de guerra. Como é signatário do tratado, especialistas afirmam que o Brasil poderia ser obrigado a executar a prisão de Putin caso ele pise em território nacional.

Em março deste ano, o tribunal expediu um mandado de prisão contra Putin e outros agentes do governo russo por conta de supostos crimes cometidos durante as ações militares russas em território ucraniano.

Segundo a decisão, Putin teria participação na deportação de milhares de crianças ucranianas para a Rússia após o início da guerra entre os dois países, em fevereiro de 2022.

O governo russo vem, reiteradamente, rejeitando as acusações de crimes de guerra. Além disso, o país não é signatário do tribunal (assim como países como Estados Unidos, Índia e Israel).

Apesar disso, o receio de uma eventual prisão foi apontado, em agosto deste ano, como um dos motivos pelos quais Putin não compareceu pessoalmente à Cúpula dos BRICS, em Joanesburgo, na África do Sul. Os sul-africanos também são signatários do TPI.

Ainda sobre este caso, Mauro Vieira disse que caso o presidente russo venha ao Brasil no ano que vem, o governo brasileiro não tomará medidas para que Putin seja preso.

"Nós não tomaremos nenhuma iniciativa para que isso aconteça", disse Vieira.

A fala de Vieira está alinhada à posição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que, em setembro deste ano, disse que Putin não seria preso.

"O que eu posso dizer é que, se eu for presidente do Brasil e se ele for para o Brasil, não há porque ele ser preso", declarou Lula a uma TV indiana.

Dias depois, porém, Lula mudou o tom da resposta, afirmando que uma decisão sobre uma eventual prisão de Putin caberia à Justiça e não ao governo.

Balanço e foco africano

Mauro Vieira é um considerado por diversos de seus pares como um dos quadros mais experimentados da história recente do Itamaraty, nome pelo qual o Ministério das Relações Exteriores do Brasil é conhecido.

Esta é a segunda vez que ele assume o comando da pasta. A primeira foi entre 2015 e 2016, durante o último ano do mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

Além disso, ele ocupou três dos postos de maior prestígio da diplomacia brasileira: as embaixadas do Brasil na Argentina e nos Estados Unidos e o cargo de representante permanente do país na Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York.

Visto como um nome próximo às gestões petistas, Mauro Vieira foi enviado à embaixada do Brasil na Croácia durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).

Após a vitória de Lula nas eleições de 2022, seu nome ganhou força e foi confirmado como futuro chanceler.

Em entrevista à BBC News Brasil, Mauro Vieira defendeu a quantidade de viagens internacionais feitas por Lula durante o primeiro ano de seu novo mandato.

Entre janeiro e dezembro deste ano, o petista saiu do Brasil 15 vezes, visitou 24 países e passou mais de 60 dias no exterior.

Segundo Mauro Vieira, havia um "vácuo total" e o Brasil precisava fazer um movimento de "reinserção" na ordem internacional.

Vieira também defendeu a retomada do financiamento brasileiro de projetos tocados por empresas brasileiras no exterior como forma de aumentar a presença do país em regiões como a África.

O chanceler também disse que ainda haveria tempo hábil para que a conclusão do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, mas admitiu que, após fevereiro do ano que vem, essa janela de oportunidade tende a ficar menor por conta das eleições para o Parlamento Europeu.

Confira os principais trechos da entrevista, que foi editada para fins de clareza e concisão.

BBC News Brasil - Neste ano, o presidente Lula e o senhor viajaram bastante e houve críticas sobre o que seria uma falta de foco da política externa brasileira, uma vez que ela teria aberto muitas frentes. O senhor concorda com essa crítica e qual vai ser o foco da política externa do Brasil em 2024?

Mauro Vieira - Em primeiro lugar, eu não concordo.

Acho que ele (Lula) tinha de viajar até mais do que viajou. O presidente não viajou mais porque ele é muito requisitado aqui no Brasil. Dentro das circunstâncias, ele fez ótimos circuitos.

Em segundo lugar, havia um vácuo total. Não havia Brasil no mundo. Não se falava do Brasil e nem se chamava o Brasil para nada. O Brasil não participava de nenhuma concertação (internacional), não era consultado para nada nas Nações Unidas. Diante desse vácuo, ele (Lula) tinha que fazer o que fez [...] Este foi um movimento de reinserção.

No ano que vem, ele vai começar por uma coisa que nós estamos estrategicamente planejando para ser uma volta à África. Ele vai começar por uma visita à sede da União Africana, que fica em Adis Abeba (capital da Etiópia), onde ele vai fazer para a assembleia anual da União Africana. Depois, deve visitar outros dois países africanos.

BBC News Brasil - Sobre a África, nos últimos anos, diversos projetos que anteriormente poderiam ser tocados por empresas brasileiras passaram a ser executados por empresas de outros países, em especial as chinesas. Na sua avaliação, o Brasil perdeu o "bonde" da África?

Mauro Vieira - Não acho, não. Nós temos, inclusive, similaridades enormes com os países africanos. O que acontece lá é o seguinte: a China, com a economia que eles têm, participa não só do começo (dos projetos), mas com grandes financiamentos. Eles financiam obras públicas, fazem doações, uma série de coisas. Não podemos e nem queremos competir. Não estamos competindo com a China. Temos capacidades próprias e faremos coisas por lá. Um exemplo: há um grande interesse pelas ações de cooperação técnica. A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) é um grande ativo brasileiro. Todo mundo pede parcerias.

BBC News Brasil - O senhor mencionou que o Brasil não quer e nem vai competir com a China. No passado, o Brasil, por meio do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico), tinha instrumentos para financiar projetos de infraestrutura em outros países. Desde a Operação Lava Jato, esses instrumentos foram extintos. Hoje, o tema voltou a ser discutido no Brasil. Na sua avaliação, o Brasil deveria voltar a financiar projetos no exterior?

Mauro Vieira - Eu não tenho dúvidas de que sim. Se dependesse de mim, sim, mas não depende. É um instrumento importantíssimo e valeria a pena porque são financiamentos de produtos ou serviços brasileiros. Houve um momento em que havia um projeto de cooperação técnica em que a gente (o Brasil) dava cursos nos países e vendia tratores de pequeno porte para a agricultura. Era um negócio fantástico. Esses financiamentos sempre foram feitos a empresas e prestadoras de serviços brasileiras [...] Eu sei que (o financiamento a projetos no exterior) era muito criticado, mas isso nunca foi caridade, nunca foi doação. Ao contrário, era financiamento. A exportação de produtos que criava empregos e gerava impostos no Brasil.


BBC News Brasil - Gostaria de abordar o Mercosul. O Brasil e a Bolívia são os únicos países do Mercosul governados por presidentes de esquerda ou de centro-esquerda. Qual o impacto disso para o futuro do bloco? Fica mais difícil negociar com presidentes ideologicamente diferentes?

Mauro Vieira - Não. O Mercosul é tão importante para todos os países que tudo se supera. O presidente do Paraguai (Santiago Peña) tem uma proximidade e uma admiração muito grande pelo presidente Lula e ele vem de uma linha política diferente. No Uruguai é a mesma coisa. O presidente Luis Alberto Lacalle Pou tem orientação política diferente (à de Lula) e fez grandes elogios dizendo que tudo o que acertou com o presidente brasileiro foi cumprido [...] Para você ter uma ideia, nos últimos quatro anos, o Uruguai não tinha aderido às declarações finais do Mercosul. Neste ano, no Brasil, com o presidente Lula, ele aderiu.

BBC News Brasil - Sobre o Mercosul, havia uma expectativa de que o acordo comercial com a União Europeia fosse fechado até o final da cúpula do bloco. No início de dezembro. O acordo não foi fechado. A informação que circulou é de que o governo argentino do ex-presidente Alberto Fernández, recuou na última hora. Foi isso mesmo o que ocorreu e quão surpreendente foi esse movimento?

Mauro Vieira - Não foi surpreendente.

BBC News Brasil - Mas foi isso que aconteceu?

Mauro Vieira - Um pouco foi isso (o que aconteceu) [...] O governo argentino do Alberto Fernández não quis tomar uma decisão sobre um acordo que ia ser totalmente concluído e executado no mandato seguinte. Ele preferiu esperar e deixar essa decisão para o próximo presidente. Coisa que em nada impede a conclusão do acordo. Nós temos ainda até final de fevereiro para aplainar as últimas diferenças e fechar o acordo. Ele (Alberto Fernández) não quis assumir, dois ou três dias antes de deixar o governo, responsabilidades e compromissos que cairiam sobre o próximo governo.

BBC News Brasil - Depois de fevereiro, a janela de oportunidade para o fechamento do acordo fica menor?

Mauro Vieira - Acho que sim porque, na União Europeia, eles vão entrar em eleições para o Parlamento Europeu, para a Comissão (Europeia) e para a Presidência do Conselho (Europeu). Haverá circunstâncias eleitorais próprias deles. Mas acho que o tempo que temos até lá é mais que suficiente.

BBC News Brasil - O presidente argentino, Javier Milei, fez movimentos distintos na campanha e após vencer as eleições. Na campanha, usou palavras de baixo calão para se referir ao presidente Lula. Após a vitória, no entanto, enviou sua chanceler (Diana Mondino) ao Brasil e convidou o presidente Lula para sua posse. Mas também posou com o principal adversário do presidente Lula, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Como o senhor avalia esses movimentos e quão confiável é o governo de Javier Milei sob a perspectiva brasileira?

Mauro Vieira - É confiável pelas declarações feitas a mim pessoalmente, nas duas ocasiões que eu estive com a chanceler Diana Mondino.

Ela veio ao Brasil 15 dias antes da posse e conversamos por uma hora. Depois disso, conversamos na véspera da posse, em Buenos Aires. E ela disse que quer trabalhar com o Brasil.

E quando eu estive com o presidente Milei, em duas oportunidades, [...] ele também disse a mesma coisa. Mandou um recado muito claro de que quer trabalhar com o Brasil e de que os interesses entre os dois países são muito grandes e de que há abertura.

Nós também fizemos gestos em relação a eles [...] Apoiamos um pedido de financiamento deles junto à CAF (Cooperação Andina de Fomento), que foi a prova importante de que trabalharemos juntos porque o interesse nacional está acima de qualquer ideologia.

BBC News Brasil - Ainda sobre a América do Sul, gostaria de falar da recente crise na região de Essequibo, entre a Guiana e a Venezuela. Considerando que o Brasil tem uma relação próxima com o regime venezuelano, o Brasil demorou a agir em relação aos movimentos feitos por Nicolás Maduro, que realizou um referendo sobre a criação de um estado venezuelano sobre o território em disputa?

Mauro Vieira - O Brasil tem boas relações com todo mundo, não apenas com a Venezuela. Em primeiro lugar, a gente sempre falou desse tema. Nem toda a diplomacia pública você anuncia, mas nós sempre falamos desse assunto com os dois lados. Não demoramos, nada. Quando as notícias começaram a subir de intensidade, o presidente Lula mandou imediatamente um emissário, o embaixador Celso Amorim, para levar à Venezuela a nossa posição sobre o assunto que é a posição de que apoiamos a solução pacífica de controvérsias.

BBC News Brasil - O presidente da Guiana, Irfaan Ali, disse à BBC News Brasil que não descarta autorizar uma base militar americana no território do seu país. Em que medida uma base militar americana compromete a posição do Brasil na região?

Mauro Vieira - Eles (Guiana) nunca nos disseram isso [...] Oficialmente, não tenho essa notícia. Agora, em relação a bases de países estranhos à região, no nosso continente, nós não queremos. A América Latina e a América do Sul são uma zona de paz. Nós não queremos bases estrangeiras. É um toma sobre o qual não temos notificações oficiais, mas é tema sobre o qual poderemos conversar com os nossos vizinhos.

BBC News Brasil - Integrantes do próprio governo afirma em caráter reservado que Maduro fez esse movimento em torno de Essequibo para aglutinar sua militância com vistas às eleições de 2024. O Brasil teme que Maduro faça outras investidas do tipo até as eleições e que elas possam gerar tensão na região?

Mauro Vieira - Investidas em que sentido?

BBC News Brasil - Como a ocorrida em torno da região de Essequibo.

Mauro Vieira - Eu não posso interpretar as projeções futuras ou mesmo fazer projeções futuras ou interpretar atitudes de chefes de estado. O que eu posso dizer é que mantemos um ótimo diálogo com a Venezuela. Reabriremos formalmente a nossa embaixada em Caracas, no dia 4 de janeiro. Indicamos uma embaixadora experiente (Glivânia Maria de Oliveira) e vamos retomar o diálogo que nos interessa. Temos mais de 2 mil quilômetros de fronteira com a Venezuela há mais de 20 mil brasileiros morando lá. Queremos e devemos ter diálogo com a Venezuela, como também com a Guiana e com todos os demais países.

BBC News Brasil - As pesquisas mais recentes mostram o ex-presidente Donald Trump a frente do presidente Joe Biden na corrida eleitoral dos Estados Unidos. Considerando que já sabemos como foi o seu mandato, o que uma eventual eleição de Trump alteraria nas relações entre Brasil e Estados Unidos?

Mauro Vieira - Essa será uma decisão tomada pelos eleitores norte-americanos. No mais, há interesses de cada lado. É preciso continuar procurando o seu interesse na relação que é muito grande e muito forte [...] Quem assumir vai manter uma relação com o Brasil no nível que eles acharem que é importante para o Brasil e para eles. Temos um comércio importante e eles ainda são, e continuarão a ser por algum tempo, os maiores investidores no Brasil. Eu acho que não dá para não ter relações só porque as orientações políticas de cada um são diferentes.

BBC News Brasil - No ano que vem, haverá a cúpula do G20 no Brasil. O presidente Lula já disse que provavelmente vai convidar o presidente da Rússia, Vladimir Putin, ao Brasil. Considerando que existe um mandado de prisão contra ele pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), qual seria o tamanho do constrangimento da vinda do presidente Putin para o Brasil nesse contexto?

Mauro Vieira - Olha... ele (Lula) não vai convidar... (Putin) está convidado porque é membro nato, fundador do BRICS e todos os países, inclusive os novos, estão convidados. Isso a gente tem que ver a cada caso. Há sempre, mesmo nas normas do TPI, tratamentos para os chefes-de-Estado que a gente tem que examinar. Se ele (Putin) quiser vir, nós estaremos muito contentes que esteja presente e nas reuniões do Brasil.

BBC News Brasil - Mas há a possibilidade de ele vir a ser preso aqui no Brasil?

Mauro Vieira - Não sei. Acho que não. Espero também que não. Não sei. Nós não tomaremos nenhuma iniciativa para que isso aconteça.

BBC News Brasil - Mesmo o Brasil sendo signatário do TPI?

Mauro Vieira - Há tantos países que são...

BBC News Brasil - Mas por ser signatário do TPI, o Brasil não estaria obrigado a cumprir uma decisão do tribunal?

Mauro Vieira - Obrigado a cumprir? Não. Tem que haver a ordem. Senão seria como o TNP (Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares) que é sobre não proliferação e desarmamento e só se pensa no desarmamento, na proliferação ninguém dá importância. Enfim... não é assim. Cada circunstância é uma circunstância.

Crédito, Reuters

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