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segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Mr. Dulles e o Brazil (Ensaio Bibliográfico): obras de história do Brasil de John W. F. Dulles - Paulo Roberto de Almeida

 Mr. Dulles e o Brazil

(Ensaio Bibliográfico)

 

John W. F. Dulles:

Diversas Obras

(Edições brasileiras e norte-americanas)


 

Hans Staden foi, provavelmente, o primeiro brazilianist de nossa história. Tendo sido capturado pelos índios tupinambás em meados do século XVI, o aventureiro alemão produziu, em seu retorno à Europa, um relato tão minucioso quanto fantástico de sua estada no Brasil: seus algozes chegaram, ao que parece, muito perto de degustar, como verdadeiras delicatessen, as partes mais saborosas de seu corpo. Mas, as práticas canibalescas, rituais ou gastronômicas, dos selvagens americanos estão sendo contestadas pela moderna pesquisa antropológica, o que converte nosso primeiro brazilianist mais em um contador de aventuras do que em um intérprete fiel da realidade brasileira de então. 

Seja como for, nas pegadas de Hans Staden muitos outros visitantes estrangeiros percorreram os caminhos do Brasil em busca do fantástico e do exótico. Nesses quatro séculos de história, a espécie se multiplicou e uma fauna variegada de pesquisadores estrangeiros passou a frequentar nossos arquivos e bibliotecas, a entrevistar autoridades civis e militares, a visitar fábricas e a palmilhar favelas e frentes de ocupação agrícola. Nem todos eles estariam dispostos a ver em Hans Staden o patrono da tribo dos brazilianists, mas certamente a maior parte deles concordaria em que John W. F. Dulles é, hoje, um de seus mais legítimos representantes.

Com efeito, desde os tempos em que Monteiro Lobato discutia os grandes problemas da nacionalidade com o circunspecto Mr. Slang, andávamos em falta de um anglo-saxão afeito como ele às idiossincrasias do povo brasileiro e de tão fina percepção no confronto de certos absurdos de nossa organização social e econômica e dos velhos problemas que angustiavam o jovem Lobato.

O historiador americano John W. F. Dulles – as iniciais do meio referem-se aos nomes Watson Foster, mas o professor de Estudos Latino-americanos da Universidade do Texas em Austin e de História da Universidade do Arizona prefere ver seu nome escrito como nos Estados Unidos – não é propriamente candidato a novo Mr. Slang, tanto porque ele não pretende discutir ou interpretar as querelas do Brasil, nem penetrar nos aspectos pitorescos de seu povo. Não há dúvida, contudo, que através de sua já importante obra de brazilianist experiente, Mr. Dulles tem apresentado a muitos brasileiros detalhes pouco conhecidos da história nacional, bem como novas facetas da velha questão social, como a confirmar que, desde os anos vinte, o país se debate nos mesmos problemas que retinham a atenção do inglês imaginário e do escritor de Taubaté. 

O velho Foster Dulles, que adquiriu indevidamente a fama de “falcão da Guerra Fria”, nunca conseguiu que seus dois filhos homens trilhassem o caminho dos estadistas da família. O mais jovem, Avery, converteu-se ao catolicismo romano e tornou-se um dos mais respeitados teólogos da Igreja católica norte-americana. O mais velho, John, preferiu ser engenheiro metalúrgico a enveredar pelo Direito e a diplomacia. Foi nessa condição que ele passou 16 anos trabalhando ao Sul do Rio Grande, de onde emergiu como mexicanist ao publicar, em 1961, Yesterday in Mexico, uma das melhores crônicas históricas sobre a revolução mexicana. Nessa época, o historiador amador resolveu aceitar um convite para vir trabalhar no Brasil, a serviço da Hanna Mining, onde se consolidou seu gosto pela história narrativa, especialmente aquela ligada aos eventos políticos contemporâneos.

Sua reputação de brasilianista competente foi inaugurada desde a aparição, em 1967, de Vargas of Brazil, uma sólida e equilibrada biografia política do grande líder brasileiro, que mereceria uma segunda edição nacional. Já definitivamente instalado no Texas, mas dividindo seu ano acadêmico entre as cadeiras de Estudos Latino-americanos na Universidade do Texas em Austin e de História na Universidade do Arizona em Tucson, Dulles deu prosseguimento a uma das mais consistentes carreiras acadêmicas ligadas ao estudo da história do Brasil contemporâneo nos Estados Unidos, junto com Thomas Skidmore, Robert Levine e Joseph Love, para citar apenas alguns no campo da história.

A partir dessa primeira biografia, ele publicou uma série de alentados livros de história política brasileira: Unrest in Brazil (1970), um precioso relato das crises político-militares dos anos 1955-1964, infelizmente ainda não editado em nosso país; Anarchists and Communists in Brazil (1973), que, tendo se tornado um clássico no campo dos estudos historiográficos sobre as rivalidades entre anarquistas e comunistas nas primeiras décadas deste século, já pode ser considerado como obra de consulta obrigatória para quem quiser reconstituir a história do movimento operário brasileiro nas primeiras quatro décadas deste século; e os dois volumes da minuciosa biografia do Presidente Castello Branco (1978 e 1980), estes três últimos publicados no Brasil.

Em 1983, a Editora da Universidade do Texas publicava o seu extremamente bem documentado Brazilian Communism, editado em 1985 no Brasil pela Nova Fronteira, tendo sido aqui precedido pelo substancioso relato histórico sobre A Faculdade de Direito de São Paulo e a Resistência Anti-Vargas (em 1984). O brasilianista americano trabalhou em seguida na monumental biografia do falecido líder político Carlos Lacerda, cujo primeiro volume já foi publicado em ambos os países. A apresentação meticulosa e objetiva, ainda que elogiosa, da atuação política e jornalística do mais famoso tribuno do regime de 1946, abre caminho a uma reavaliação crítica dessa figura controversa de nossa história contemporânea. Lacerda foi odiado ou exaltado, por adversários e admiradores, mas raramente examinado com isenção. A historiografia contemporânea produzida no Brasil, geralmente de orientação progressista quando não esquerdista, tem sido implacável com o “demolidor de Presidentes”, como era conhecida essa figura de proa da UDN. Indiferente a nossas paixões partidárias, o Professor Dulles pode contribuir para recuperar para a história um animal político que parecia irremediavelmente extinto no cenário nacional: o líder de massas e o insuflador de opiniões.

Espera-se também que ele dê continuidade à sua pesquisa sobre as correntes de esquerda na política brasileira. Anarquistas e Comunistas cobria os primeiros 35 anos deste século e O Comunismo no Brasil contava a história do PCB entre 1935 e 1945. A documentação já acumulada por Foster Dulles sobre o período do pós-guerra lhe permitiria, por exemplo, reconstituir a história do comunismo no Brasil em sua fase de ascensão e declínio, isto é, 1945-1964, e depois relatar a experiência dos movimentos de esquerda entre o golpe militar e a anistia de 1979. Cumprido este programa, o filho do ex-Secretário de Estado de Eisenhower terá deixado sua marca indelével na historiografia política brasileira, cobrindo a maior parte do período contemporâneo. Mais do que isso: sua história “narrativa” vai seguramente resistir à marca do tempo e fornecer a mais de uma geração de historiadores brasileiros a matéria-prima de muitas “interpretações” e outras tantas “revisões” da história política brasileira no século XX.

Em seus diversos livros, mas sobretudo em algumas biografias, Dulles revela os inegáveis méritos e as inevitáveis insuficiências da narrativa histórica tradicional: a apresentação de grande coleção de eventos, personagens e datas, a par do reduzido, ou quase nulo, esforço interpretativo. Na maior parte dos casos, a abundância de informações fatuais, rigorosamente precisas e alinhadas cronologicamente, conduz à submersão do processo histórico global, confirmando o velho dito de que uma árvore pode encobrir a floresta.

Essas características estão especialmente presentes no relato biográfico sobre o Presidente Castello Branco, mas são também evidentes nas pesquisas sobre o movimento comunista brasileiro. De abril de 1964, quando ascende ao “poder revolucionário”, a 18 de julho de 1967, data de sua morte em desastre aéreo, a vida oficial e privada do Marechal-presidente Castello Branco é minuciosamente escrutada pelo professor americano, por vezes em detalhes tão insignificantes que um historiador mais preocupado com a ação propriamente política do biografado deixaria irremediavelmente de lado. A coleção de fontes é sobremaneira impressionante (28 páginas) o que confirma o “costume” que tem os brazilianists de ler tudo, consultar todos os documentos disponíveis e entrevistar quase todos os agentes diretos da história em causa. Releve-se particularmente o uso extensivo da imprensa brasileira da época, a consulta aos arquivos da Biblioteca Lyndon Johnson, além, é claro, dos próprios papéis de Castello Branco, sendo apenas de se lamentar que nos depoimentos orais figurem tão poucos inimigos políticos do Marechal-presidente.

O modelo não é novo e o mesmo professor Dulles já nos tinha oferecido em Unrest in Brazil: Political-Military Crises, 1955-1964 um relato extremamente rico e detalhado do imenso caudal de episódios visíveis e invisíveis que desembocou no golpe militar que levou o mesmo Caslello Branco ao Governo. Não se veja, contudo, nesta apreciação, um desmerecimento do importantíssimo trabalho já levado a efeito pelo historiador americano: o factualismo à outrance, além de constituir-se em legítimo approach da obra historiográfica qualquer que seja ela (o acúmulo de monografias e os exercícios de histoire événementielle sendo mesmo apontados por certos mestres da escola histórica francesa como condição prévia e indispensável à visão global do processo), é na certa muito útil aos sociólogos e cientistas políticos brasileiros, que encontram nos livros do cronista e narrador a base indispensável a vários exercícios interpretativos e analíticos. 

O desfile incessante de milhares de informações fatuais nos confirma igualmente outra prática arraigada de muitos brazilianists: o processo histórico como tal, que deveria receber um suporte analítico-interpretativo, necessário numa obra historiográfica acabada, se vê submergido quase sempre pela matéria bruta dos fatos. Assim, é possível conhecer, por exemplo, o teor de um manifesto militar, os hábitos matinais do Marechal-presidente ou ainda as palavras trocadas entre ele e seu amigo Vernon Walters durante um jantar íntimo, mas pouco ou muito pouco ficaremos sabendo das motivações profundas do tipo de política social e econômica proposta ou adotada por aquele conjunto de personagens. Que o Presidente Castello Branco tenha sido um Brazilian reformer não há dúvida, ainda que alguns contestem a importância histórica de suas “reformas”; o que a abundância de informações não nos permite ver de modo claro é precisamente as condições políticas, sociais e econômicas em que foi empreendida a obra restauradora do Marechal e seu impacto na configuração do Brasil contemporâneo.

Na verdade, não há nada de errado na compulsão documentalista do método do Professor Dulles: os ensaios interpretativos nunca poderiam ser feitos sem a matéria-prima da chamada histoire événementielle. Na França, aliás, a pátria de eleição da história estrutural no estilo dos Annales, assiste-se hoje a uma saudável retomada da história tradicional, depois de algumas décadas de ditadura do processo sobre o evento. Em defesa do “narrador” Dulles deve ser dito que jornais antigos, documentos raros, protagonistas diretos e testemunhas privilegiadas não costumam frequentar voluntariamente os gabinetes dos historiadores “interpretativos”. É preciso um árduo esforço de leituras, disposição para realizar centenas de entrevistas pessoais e, muitas vezes, uma resistência comprovada a poeira, traças e diversos tipos de roedores “críticos” para que obras do quilate das de Dulles venham à luz. A já vasta produção historiográfica do brasilianista de Austin tornou-se assim um referencial obrigatório para os historiadores e cientistas sociais brasileiros, fornecendo substrato material a uma visão global de nosso processo de desenvolvimento político e social.

 

[Paris, 29.05.94]

[Relação de Trabalhos nº 431]

Compilação, exclusivamente para fins desta antologia, dos trabalhos n. 039 (Berna, maio 1981) e 066 (Brasília, 11.09.86), publicados respectivamente em LEIA LIVROS (São Paulo, Ano IV, n. 37, 15 julho a 14 agosto 1981, p. 18) e em D. O. LEITURA (São Paulo, vol. 5, n° 54, novembro 1986, p. 14).

Relação de Publicados n. 014 e 028.

 

431. “Mr. Dulles e o Brazil: Ensaio Bibliográfico”, Paris, 29 maio 1994, 5 pp. Recompilação, exclusivamente para fins de antologia de livros resenhados, dos trabalhos nºs 070 (Berna, maio 1981), sobre o livro de John W. F. Dulles, President Castello Branco: Brazilian Reformer (College Station: Texas A&M University Press, 1980, 557 pp), e 130 (Brasília: 11.09.86), sobre diversas obras do brazilianist norte-americano, publicados respectivamente em Leia Livros (São Paulo: Ano IV, nº 37, 15 julho a 14 agosto 1981, p. 18) e em D. O. Leitura (São Paulo: vol. 5, n. 54, novembro 1986, p. 14). Relação de Publicados n. 014 e 028.

 

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Getulio Vargas segundo John W. F. Dulles, resenhado por Voltaire Schilling


Getúlio Vargas: duas visões sobre a história do Brasil
Voltaire Schilling 01.05.14.
Vargas (centro) e apoiadores em Itararé, São Paulo, a caminho da Revolução de 30
Foto: Claro Jansson / Wikicommons / Wikimedia
Escrever a biografia política de Getulio Vargas é, guardadas as devidas proporções, descrever boa parte da história brasileira do período 1930/54.
A figura de Vargas vem fascinando há tempos os “brazilianists” cujas pesquisas se intensificaram nos últimos anos. A primeira obra sobre esta marcante figura data de 1942, realizada pelo muito citado Karl Lowenstein (Brazil under Vargas, N. York, Mcmillan) que terminou sendo uma obra isolada por mais de vinte anos. O jejum foi rompido, tendo aparecido ultimamente três obras de importância, as quais procuram lançar luzes sobre a Era de Vargas. O primeiro a ser editado, causando relativo impacto, foi o trabalho de Thomas Skidmore (Brasil: de Getúlio a Castelo) editado pela Saga em 1969. No ano que passou fomos brindados por duas traduções: a de John Wirth (A política de desenvolvimento na Era de Vargas, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas) e a de John W. F.Dulles, filho do falecido secretário de Estado do governo Eisenhower. FosterDulles (Getúlio Vargas: Biografia Política, Rio de Janeiro, Renes) editada com seis anos de atraso. Por sua vez a nossa historiografia não ficou marcando passo. Hélio Silva, como é de conhecimento geral, vem editando desde 1964 uma série de documentos referentes a Era de Vargas, os quais já atingiram o décimo segundo exemplar, muito deles já em segunda edição.
O que se segue é uma analise da obra de John Watson Foster Dulles sob dois aspectos: primeiramente de maneira como ela é apresentada ao leitor, seu arcabouço. Em segundo lugar, faremos uma crítica à visão histórica de Dulles, apontando as omissões intencionais ou ingênuas daí decorrentes.
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A obra é dividida em onze livros titulados de maneira inteligente, não se desviando nenhum do que realmente foi importante na Era de Vargas. É um impressionante painel narrativo. Cada livro por sua vez é dividido em capítulos numerados, cada um possuindo de duas a três páginas e meia de extensão. A bibliografia contida em dezenove páginas atinge quase quatrocentas obras, das quais trinta e uma são de autores americanos. As novidades estão nos memorandos e relatórios enviados pelos diplomatas americanos ao Departamento de Estado, material de difícil acesso ao historiador brasileiro.
O que nos impressiona são as entrevistas, todas elas realizadas no período de 1963 a 65. Um material de fazer inveja. Nada menos de oitenta e três personalidades do mundo brasileiro ou a ele ligadas, como no caso deembaixadores americanos que aqui serviram, são arrolados como testemunhas ou participantes dos principais acontecimentos da Era Vargas.
Em sua relação constam dois ex-presidentes da República: Dutra e Café Filho; quatro governadores ou interventores estaduais: Adhemar de Barros, Cordeiro de Farias, Juraci Magalhães e Benedito Valadares; ministros civis e militares, tais como Francisco Campos, Vasco Leitão da Cunha, Eduardo Gomes, Amauri Kruele Juarez Távora; o ex-chefe de polícia do Estado Novo, Filinto Muller; político como Clemente Mariani, Tancredo Neves, Raul Pilla; o dirigente integralista Plínio Salgado; o líder do PC brasileiro, Luís Carlos Prestes; entre a intelectualidade destacamos Pedro Calmon, Caio Prado Júnior, Hélio Silva, Gilberto Freyre, Austregésilo de Athayde e Tristão de Athayde, assim como Afonso Arinos e Mello Franco. É de se perguntar se falta alguém!
A Visão Histórica De Dulles
Quanto a esta, apresenta os tradicionais defeitos do neo-positivismo (ideologia dos scholars americanos). Aliás, os mesmos defeitos apresentados pelos seguidores da doutrina econômica neoclássica, exacerbadamente criticados por John Galbraith, isto é, de analisar de maneira particular, isoladamente, os fenômenos estruturais da sociedade, sem fazer a devida interação entre eles. John W. F. Dulles é um ortodoxo. Para ele, a política é uma atividade executada por um determinado número de elementos humanos para tal capacitados, fechados em gabinetes, assembléias, palácios governamentais ou em reuniões conspiratórias. Aparentemente estas figuras “eleitas” por algum desígnio não especificado pelo autor representam suas funções tais como os heróis da tragédia grega, isolados em suas dores e poucas alegrias, cabendo ao resto da Nação o papel passivo de um coro que lamenta e aplaude as decisões dos heróis. O sr.Dulles parece ignorar os últimos trabalhos da moderna historiografia em relação às biografias políticas. Não conta com os levantamentos sociais e econômicos que tanto enriqueceram a história nos tempos mais recentes, entre as quais o trabalho de Boris Fausto sobre a Revolução de 1930 serve de modelo.
Para J.W. F. Dulles, a política é entendida no seu sentido vulgar, como “arte de governar” ou, como propunha Maquiavel, de se “manter no poder”. Não aentende como uma atividade muito mais ampla, que transcende a limitação da palavra, isto é, uma atividade onde todos os elementos da sociedade se dizem presentes, e se encontram representados e materializados no político.
Uma biografia política adquire maior dimensão quando consegue revelar o biografado em toda sua amplitude histórica. Que forças representam? A que tendência obedece? Quais as que lhe opõem? Pois todo indivíduo representa uma “categoria” de interesses que atuam na sociedade. Categorias essas “sociais e econômicas” que agem através dele, sobre ele e muitas vezes, como no caso de Vargas, contra ele. O sr. Dulles simplesmente emudece e este respeito. Não sabe aliar, por exemplo, as manifestações do Tenentismo (a revolta do Forte de Copacabana, de 1922, a Revolta de Isidoro em São Paulo em 1924, A coluna Prestes - Miguel Costa no período de 1924/27, e a própria revolução de 1930) a crescente clima de insatisfação reinante entre a classe média brasileira, marginalizada em suas tentativas de escolher “legalmente” seus representantes, no seu desejo de modernizar um país cujas estruturas políticas pouco se haviam alterado desde a deposição de D. Pedro II. Não vê os interesses de uma burguesia nacional, ainda que fraca, mas em ritmo de franco progresso, lutando por protecionismo e mais atenção dos “donos do poder”, a oligarquia “café com leite”.
Podemos dizer que Dulles cria uma imagem simpática de Vargas (afinal, Vargas aliou-se aos EUA na IIGM e cedeu uma base aeronaval para os americanos em Natal, no RGN). O autor louva-lhe a habilidade política, a transigência, a profunda reflexão que antecede qualquer tomada de decisão, o caráter contemporizador, o humanitarismo. Por outro lado, reconhece uma ponta de “maquiavelismo” em seu trato com inimigos, mas principalmente com os amigos (Borges de Medeiros, Flores da Cunha, Lindolfo Collor, João Neves da Fontoura e outros). Associa Vargas ao processo de modernização do país a uma maneira digna e séria no trato da “coisa pública”, característica, aliás, que herdou da tradição castilhista fortemente implantada no Rio Grande do Sul.
Além da crítica a ser feita em sua visão de história, devemos destacar outras falhas ou omissões de ordem estrutural que suspeitamos serem naturais num professor norte-americano. No jogo de interesses, dos quais os Estados Unidos fazem parte de forma leonina, o autor recorre aos despachos e memorandos da Embaixada Americana, fazendo-nos crer ser ela a única representante dos interesses do seu país. Não revela quais outras “categorias” representavam esses interesses, “categorias” pertencentes à própria estrutura de classes da sociedade brasileira.
Para dar ideia dessa omissão no do que ocorre no terreno dos acontecimentos econômicos e sua ação política, dedica o autor duas linhas e meia à crise de 1929 – o crash.
Dulles publicou esta biografia em um tempo que os documentos dos arquivos nacionais estavam bloqueados aos pesquisadores brasileiros. Na época do regime militar (1964-1985) nossa história era mais fácil de ser escrita por um acadêmico estrangeiro do que por um graduado nas nossas universidades