Em julho de 2003, o jornalista João Gabriel de Lima, então na revista Veja, procurou-me para que eu falasse um pouco do intelectual José Guilherme Merquior, já falecido. A intenção era comemorar os 35 anos da revista, e recuperar um pouco do que ela tinha publicado de maior destaque ao longo dos anos, com ênfase, para o intelectual, numa entrevista que ele tinha concedido às Páginas Amarelas da revista (eu também havia feito o mesmo pouco antes).
Eis o que ele me escreveu:
""
É que estamos fazendo uma edição especial sobre
os 35 anos da revista, baseada em Páginas Amarelas. Uma das escolhidas é a do
Merquior. Na verdade, eu estava pensando em apresentar o Merquior como um dos
precursores da atual agenda brasileira, assim como o Roberto Campos. Em 1988-89,
ambos falavam em privatizações, em diminuir o tamanho do Estado, em tirar o
Estado da economia para que ele pudesse se dedicar à capacitação dos cidadãos
via educação. O episódio do plágio para mim é insignificante. O interessante é
que o Merquior escreveu o discurso de posse do Collor, e ali estão muitas das
idéias que são quase unânimes no Brasil hoje -- o PT na presidência as adota --
mas que não o eram naquela época. (…) Se vc tiver algo a dizer sobre este
assunto sob este enfoque, suas observações serão bem-vindas. "
Eis o que respondi:
"
De: Paulo Roberto de Almeida
Enviada em: Quarta-feira, 2 de Julho de 2003 17:44
Para: Gabriel
Assunto: Re: merquior
Estou atualmente em Filadelfia, de ferias, na cidade
visitada pelo Hipolito da Costa dois seculos atras. Merquior é um diplomata com
quem tentei tercar armas, muito tempo atras. Conheco razoavelmente bem sua obra
e opinioes. Mas para poder opinar, em sua materia, eu precisaria ter uma ideia
do que voce exatamente gostaria de escrever sobre ele. Esse episodio de “ghost
writer” para o Collor é o que se presta mais a equivocos e
simplificacoes, nos quais eu nao gostaria de incorrer. Sei do episodio apenas
indiretamente, pois na epoca eu estava em Montevideu e quando voltei a Brasilia
ele ja tinha sido designado para a Unesco, seu ultimo e derradeiro posto.
Paulo Roberto de Almeida"
Em todo caso, acabei compondo um texto, na sequência imediata, e mandando para ele, e que transcrevo aqui, para registro, pois nunca foi divulgado.
Comentários
de Paulo Roberto de Almeida
a
questões colocadas pelo jornalista João Gabriel de Lima
Revista
Veja, número especial 35 anos
A carreira pública e a trajetória
intelectual de José Guilherme Merquior, brilhantes em seu mérito próprio e
dignas de elogios em qualquer país que valoriza o debate de ideias, foram por
um momento atacadas por certos setores de opinião e parecem ter sido atingidas
de uma certa censura pública em virtude de sua associação temporária com o
governo Fernando Collor de Mello, como antes com algumas figuras do espectro
político que serviram ao regime autoritário encerrado em 1985. Observador à
distância de algumas das polêmicas em que Merquior se envolveu contra algumas
das figuras intelectuais da então oposição, e funcionário público especializado
como ele nas lides diplomáticas, posso dar um testemunho que se pretende
imparcial sobre a figura pública e intelectual de Merquior e sobre os problemas
suscitados por essa pretendida associação com um governo e com uma figura
política hoje justamente caídos no opróbrio da consciência democrática
nacional.
Collor, como muitos outros políticos oportunistas e
falastrões, tinha um projeto de conquista de poder com base numa agenda
reformista, mas não sabia bem o que fazer ou o que falar, caso típico de um
político dotado de muita vontade de poder mas de poucas idéias consistentes.
Por isso, ele tinha necessidade de quem pensasse por ele, de quem lhe
fornecesse algumas boas idéias, se possível uma inteira doutrina social, ou
construção intelectual, que recheasse um pouco sua retórica transformista mas
totalmente incoerente e inconsistente. Deixemos de lado, por um instante, o
fato de que ele era um mentiroso contumaz, além de pessoalmente desonesto e na
prática um amoral, ou que ele se revelou, de fato, como um dos maiores embustes
políticos conhecidos na história do Brasil. Reconheçamos, por outro lado, que
se tratava de alguém disposto a mudar a face do País, a reinserir o Brasil no
mundo, como ele mesmo dizia, ainda que não soubesse bem como e o que fazer,
exatamente.
Nessa carência de ideias e de propósitos entra,
precisamente, José Guilherme Merquior, um intelectual brilhante, polemista
treinado, dotado de uma certa visão do mundo (mais em política, do que em
economia), mas que era também um funcionário federal, sujeito portanto a certas
normas da burocracia pública, especialmente marcadas na carreira diplomática
pelas regras da hierarquia e da disciplina. Merquior tinha muitas idéias, sobre
o Brasil e seus problemas, nem todas elas adequadas talvez às graves
dificuldades econômicas que o País enfrentava, mas todas elas inteligentes e
coerentes com um conjunto de princípios que ele classificou de “liberalismo
social” (apropriada como “doutrina governamental” por essa fraude moral e
política que foi Collor).
Merquior foi, assim, um participante ativo e quiçá um
formulador de alguns dos princípios e fundamentos conceituais do
“transformismo” brasileiro, muitos dos quais ele tinha absorvido com Roberto
Campos, quando ele serviu na Embaixada em Londres, em especial as noções de
política econômica que ele nunca manejou muito bem, voltado que era para o
combate de idéias, as lides filosóficas e a crítica literária. Merquior, por
exemplo, não foi um formulador da política externa brasileira nesse período. O
Itamaraty sempre ostentou formuladores razoáveis e operadores altamente
eficientes da diplomacia prática e Merquior não era um deles, pois que sempre
preferiu se concentrar no terreno da critica literária e dos debates
filosóficos (ainda que com altas implicações políticas, como revelado em sua
tese da London School of Economics sobre Rousseau e Weber e no trabalho
contestador sobre o marxismo ocidental), em lugar de se adentrar nos arcanos da
política externa brasileira.
Merquior exerceu algumas funções de gabinete no Brasil
do regime autoritário e depois durante a transição democrática, tendo servido
particularmente com Leitão de Abreu (governo Figueiredo). Era amigo do
presidente Sarney, colega da Academia Brasileira de Letras e amigo de tertúlias
literárias. Nessa fase, se distinguiu em alguns debates públicos, na verdade
menos debates do que demonstrações de sua inteligência ferina e certeira de um
lado, e de agressões verbais totalmente descabidas de outro, por aqueles que se
julgavam detentores de uma verdade superior com base num suposto “sentido da
história” e numa pretensa postura superior de luta democrática contra o regime
autoritário. O governo Collor, particularmente, concentrou muito do maniqueísmo
então reinante na academia e em certos meios políticos, ocupados ou dominados
por políticos derrotados e por ideólogos frustrados pela não aceitação da
agenda estatista e retrógrada que defendiam então.
Independentemente dos embustes políticos e éticos do
governo Collor, tratou-se, indubitavelmente, de uma administração radicalmente
reformista, com poucos sucessos reais, mas que deixou aberto o caminho para o
aprofundamento da agenda de abertura econômica, de liberalização comercial, de
desmonopolização e de desestatização de um imenso conjunto de setores
econômicos que se mostravam deficientes nas mãos de um Estado letárgico,
paquidérmico e incapaz de atender aos cidadãos enquanto simples consumidores de
serviços de utilidade pública.
Merquior não foi o promotor ou o iniciador desse
processo (pois devia muitas de suas ideias nesse terreno, como vimos, a homens
como Roberto Campos, José Oswaldo de Meira Penna, e outros brasileiros e
estrangeiros), mas ele pode ser identificado como um de seus formuladores ou
apresentadores mais consistentes, dada sua capacidade de escrever e apresentar
ideias. Sua função de “ghost writer” de Collor não pode ser tomada como
estranha ou excepcional, pois que esse tipo de função existe com extrema freqüência
no serviço público, em especial no Itamaraty. Eu mesmo, sem ter nenhuma glória
por isso, já redigi discursos para os presidentes Sarney e FHC (também como
chanceler) e pelo menos um artigo para Collor. Aliás, existe um dito popular no
Itamaraty que diz, com razão ou não, que “você só assina artigos quando não
mais os escreve”, o que denota uma certa cultura da pluma de empréstimo.
Merquior, em relação a Collor, foi certamente mais do
que uma pluma a serviço do poder; em alguns momentos pode ter sido também uma
espécie de conselheiro do príncipe e talvez tenha influenciado assim algumas
das ações, e certamente das ideias, ostentadas por esse governo que conseguiu
ser revolucionário e ao mesmo tempo bastante representativo da maneira
tradicional de fazer política no Brasil. As ideias de Merquior, que depois as
repassou, talvez por empréstimo involuntário, a Collor, foram talvez um pouco
avançadas para a época, ou quem sabe o Brasil estava bastante atrasado em
relação a idéias “capitalistas” e princípios de “boa governança” que já eram de
voga na socialdemocracia europeia e mesmo no social-liberalismo na prática em
vigor na maior parte das democracias avançadas.
Merquior expressava um certo consenso nos homens
públicos que depois viriam a governar o Brasil nos dez anos seguintes – vindos
da esquerda, da direita ou do centro – e, como tal, ele apenas antecipou
diretrizes e ensinamentos que depois seriam aceitos até mesmo pelos seus
adversários da época e que chegariam ao poder ao final desse período. Deve-se aliás
reconhecer que todas as idéias defendidas por Merquior – defendidas muito antes
dele por homens como Roberto Campos, cabe reafirmar – encontram-se hoje
incorporadas ao senso comum da boa administração pública. Que essas ideias
tenham sido apropriadas abertamente por Collor, entre 1990 e 1992, e depois,
clandestinamente, por alguns de seus adversários daquela época apenas serve de
homenagem a um homem que se distinguiu precisamente por suas ideias, assim como
oferece um testemunho direto sobre a consistência e persistência dessas mesmas
ideias.
Paulo Roberto de Almeida
Filadélfia, 3 de julho de 2003