Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
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segunda-feira, 20 de outubro de 2014
Preeminência, hegemonia, dominação, exploração: realidades ou mitos? - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)
Volta ao mundo em 25 Ensaios (2010) - a lista dos publicados por Ordem Livre
Individualismo e interesses coletivos: qual a balança exata? - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)
Individualismo e interesses coletivos: qual a balança exata?
Autor Paulo Roberto de Almeida
A topografia política tem observado desde essa época exatamente essa divisão fundamental, que resume todo o debate político dos séculos XIX e XX e que parece destinado a perdurar indefinidamente. Esse é, provavelmente, o ponto central dos dilemas políticos modernos, o grande divisor de águas entre as duas grandes filosofias de nossa época, o elemento definidor por excelência das políticas públicas contemporâneas. Todos os Estados organizados da atualidade, pelo menos os que podem ser caracterizados como minimamente democráticos, se debatem com essa contradição fundamental, provavelmente duradoura em qualquer sociedade: a de definir e aplicar políticas macroeconômicas e setoriais que levem em conta, de um lado, a defesa legítima da privacidade e dos direitos individuais, e que possam implementar, de outro lado, serviços coletivos e bens públicos que contemplem outros direitos legítimos da comunidade (segurança, transportes, escolas, hospitais, além de garantia de emprego e boas perspectivas na aposentadoria).
As populações dos Estados modernos não se inquietam tanto com os dilemas conceituais envolvidos na dicotomia do problema em causa, quanto com seus aspectos práticos, inclusive porque elas estão sempre demandando novos serviços e novas garantias – de emprego, de residência, de seguridade social, até de lazer – que antigamente eram providenciados pelos próprios indivíduos ou famílias. Governos, de seu lado, não discutem posturas filosóficas, apenas implementam políticas, embora os governantes possam ser influenciados – mas isto parece óbvio – por determinadas concepções que orientam essas políticas, que podem se aproximar, ou se afastar, de um dos dois polos, geralmente mais constrangidos pelos orçamentos do que motivados pelas concepções subjacentes.
A realidade dos Estados contemporâneos, pelo menos os do arco capitalista democrático, é feita de escolhas contínuas entre maiores ou menores medidas intrusivas na vida dos cidadãos, ou contribuintes. A política nesses países é feita de uma balança que se move regularmente entre políticas de cunho social-democrata – e, portanto, mais intrusivamente pendentes para o lado dos direitos coletivos – e políticas liberais, tendentes a reduzir impostos e promover os interesses privados. As eleições na Europa ocidental e nos EUA, desde várias décadas, tem confirmado essa indecisão constante dos eleitores entre governos de “direita” – supostamente identificados com políticas liberais – e governos de “esquerda”, que implementavam ativamente políticas de cunho social-democrático. Na prática, seja por inércia dos cidadãos, seja por populismo dos políticos, que gostam de prometer serviços públicos em cada vez mais áreas de interesse privado, todos os governos acabam avançando sobre os direitos individuais, de que é prova o crescimento constante da carga fiscal nos Estados membros da OCDE.
Essa realidade é de certo modo surpreendente quando estudos empíricos feitos pelos melhores institutos independentes tem demonstrado que os países caracterizados por maior grau de liberdade – promotores, portanto, dos direitos individuais – são também os de maior crescimento, maior igualdade, menor corrupção, maior eficiência geral nos serviços públicos e, portanto, de maior prosperidade (ou seja, de maior renda per capita) e de maiores possibilidades de escolha para os cidadãos. De fato, relatórios produzidos pelo Cato Institute – cuja metodologia e notas explicativas podem ser vistos aqui – confirmam as interações sugeridas acima: na média, os países mais livres são dez vezes mais ricos e crescem quase duas vezes mais rapidamente do que os menos livres (ou seja, aqueles com excesso de intervenção governamental e planejamento estatal). O primeiro capítulo do estudo organizado por James Gwartney e Robert Lawson,Economic Freedom of the World: 2009 Annual Report (Washington, DC.: Cato Institute, 2009; disponível em: http://www.cato.org/pubs/efw/), traz gráficos eloquentes a esse respeito.
Os céticos, ou aqueles comprometidos com uma filosofia coletivista, poderão argumentar com o exemplo da China, como uma suposta prova que nem sempre a liberdade produz maior crescimento e prosperidade, tentando “demonstrar” que as políticas econômicas do governo autoritário do grande país asiático conseguem conciliar planejamento e rápido crescimento. Mas a China constitui exatamente a prova viva de que maior liberdade consegue produzir maior crescimento econômico, como o próprio relatório do Cato demonstra. O índice global da liberdade econômica no mundo coloca a China à frente do Brasil: no ranking internacional, ela ocupa o lugar de número 82 (com uma pontuação global de 6,54 sobre 10 possíveis), contra 111 para o Brasil (6 pontos redondos).
Mais surpreendente ainda, a China apresenta melhor desempenho no que se refere ao sistema legal e direitos de propriedade (6,3 pontos na escala do Cato, em 49o. lugar, contra apenas 5,3 para o Brasil, em 81o. lugar), no tocante à liberdade de comerciar internacionalmente (bem à frente do Brasil, em 36o. lugar, para o centésimo no caso brasileiro), à disponibilidade de uma moeda sólida (30o. lugar para o renminbi chinês, enquanto o real brasileiro ocupa apenas o 92o. posto) e também no que se refere ao ambiente de negócios (aspecto no qual ela ocupa o ranking 117, para 134 no caso do Brasil). Segundo o mesmo relatório, a China foi também o país que mais avançou na escala de liberdade econômica no período em exame, ganhando dois pontos inteiros desde os anos 1980, contra apenas 1,57 no caso do Brasil. No caso do indicador relativo à liberdade de comerciar internacionalmente, a China surpreende, mais uma vez: tendo partido, em 1980, de uma posição praticamente similar à do Brasil (3,65, em 78o. lugar, para 3,56 no Brasil, em 79o. lugar), ela conseguiu galgar muitas posições até o ano de 2007, passando a ocupar o 39o. posto nesse quesito (com 7,50 pontos), ao passo que o Brasil continuava bem atrás (90o. no ranking mundial, com 5,90 pontos apenas).
Hoje, na China, os trabalhadores tem de ir ao mercado para comprar seus próprios serviços de saúde e pagar pela sua educação, ao contrário do Brasil, onde o Estado supostamente garante esses “direitos coletivos”. Num certo sentido, a China é hoje, pela liberdade econômica e a forte concorrência entre empresas e indivíduos, bem mais capitalista do que o Brasil. Contrariamente ao que muitos pensam, a China caminha no sentido da maior liberdade econômica e do individualismo: este é, na verdade, o segredo de seu sucesso econômico.
* Publicado originalmente em 10/04/2010.
Direitos humanos: o quanto se fez, o quanto ainda resta por fazer - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)
Direitos humanos: o quanto se fez, o quanto ainda resta por fazer
Autor Paulo Roberto de Almeida
Muitos outros instrumentos de promoção e de proteção dos direitos humanos, individuais ou coletivos, ou até avançando para direitos econômicos, sociais e culturais, foram sendo propostos, negociados e implementados desde então, numa proliferação de iniciativas humanitárias que só perde para a disseminação e extensão das violações aos mesmos direitos; isso geralmente ocorre, ao longo da história, em situações de guerra, de graves conflitos políticos ou a mando de ditadores, quase tão comuns quanto as tentativas, em grande parte frustradas, de prevenir ou coibir esses atentados aos direitos humanos. Uma consulta aos sites da ONU, assim como aos de ONGs especializadas, poderá ilustrar a riqueza dos mecanismos e instrumentos já aprovados ou em curso de implementação nesse campo; não haveria espaço, neste ensaio, para uma relação completa dessa imensa coleção, infelizmente ainda mais virtual do que real, no contexto do mundo real de iniquidades que é o nosso.
Embora se possa traçar uma linha evolutiva quanto à definição, defesa e promoção ativa dos direitos humanos ao longo do processo civilizatório, desde a antiga mutilação punitiva ou a eliminação pura e simples dos vencidos nas batalhas, até o respeito à integridade física dos prisioneiros de guerra, e desde os despotismos mais absolutos até a afirmação plena das liberdades políticas e individuais na atualidade, não existe uma correlação unívoca entre progressos materiais e culturais das sociedades humanas e o respeito a todos esses direitos. Não por outra razão, a nação alemã, pátria de Kant, Goethe e tantos outros intelectuais humanistas, permitiu, também, num momento de grande desenvolvimento educacional, tecnológico e científico, a ascensão e o pleno ativismo criminoso de um Hitler, provavelmente o exemplo mais escabroso e desprezível do violador absoluto dos direitos humanos em pleno século XX. Embora os sistemas controlados por Stalin e Mao Tsé-Tung superem em número absoluto de mortos a máquina do holocausto nazista, Hitler foi diretamente responsável pela eliminação física de milhões de pessoas, antes de tudo judeus inocentes, mas também prisioneiros de guerra soviéticos.
Filosoficamente, a afirmação dos direitos humanos deita raízes em tempos imemoriais, começando com o povo judeu, passando pela Grécia antiga e pelos ensinamentos de Buda, Jesus Cristo e dos filósofos medievais, até alcançar os humanistas da era moderna, em especial os iluministas e constitucionalistas. Na era contemporânea, os direitos humanos foram formalizados em instrumentos mandatórios ou recomendatórios, em todo caso dotados de força de lei quando incorporados à legislação interna dos Estados democráticos consolidados. No plano da ação prática, as primeiras iniciativas em defesa dos direitos humanos se referem à luta pela abolição da tortura e dos castigos cruéis, no contexto da reforma religiosa e do combate à Inquisição, e à campanha pela abolição do tráfico e do trabalho escravo, na Inglaterra oitocentista. A luta contra a mão-de-obra servil constituiu, igualmente, a primeira afirmação da sociedade civil no contexto da transição do Brasil para a modernidade, combate ao qual está associado o nome de Joaquim Nabuco, dentre vários outros que pugnaram pela extinção da mais longa e mais perniciosa instituição jamais existente no Brasil.
É justamente nessa área que existe a mais antiga, ainda efetiva, entidade de defesa dos direitos humanos: a Anti-Slavery Society, de cujos relatórios periódicos o Brasil é, infelizmente, um frequentador reincidente e regular. A despeito desse combate mais do que secular, a escravidão direta – ou seja, a posse individual de um escravo – e diversas outras formas de servidão involuntárias são ainda ocorrências muito comuns em diversos países tropicais. As violações mais disseminadas dos direitos humanos, contudo, são aquelas relativas aos direitos políticos e religiosos de milhões de pessoas nos mais diversos países, sem mencionar os graves atentados existentes em situações de guerra (com maior incidência no continente africano).
Novas formas de violações dos direitos humanos continuam a ser criadas por governos autoritários, herdeiros ou não dos terríveis experimentos dos fascismos e comunismos existentes no século XX, cuja contabilidade macabra se cifra em milhões de mortos, sobretudo nos gulags soviético e chinês. No caso da China, embora os campos de reeducação dos tempos do maoísmo delirante não sejam mais comuns, a repressão aos dissidentes do regime e a censura absoluta aos meios de comunicação de massa – com destaque para a internet – continuam a ser exercidos de forma ampla e disseminada. Ao fim e ao cabo, a defesa e afirmação dos direitos humanos ainda estão em sua infância, no Brasil e no mundo, cabendo aos espíritos humanistas um trabalho constante de vigilância e de promoção desses direitos.
* Publicado originalmente em 15/02/2010.
Brasil: o que poderíamos ter feito melhor, como sociedade, e não fizemos? - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)
Brasil: o que poderíamos ter feito melhor, como sociedade, e não fizemos?
Autor Paulo Roberto de Almeida
Mas a questão pode também ser vista pelo lado objetivo, ou seja, examinar, no conjunto de possibilidades factíveis, comparativamente aferíveis com base nas experiências de outras sociedades, o que, exatamente, o Brasil poderia ter alcançado de melhor, como sociedade e como nação, e que não alcançamos por deficiências nossas, por obstáculos herdados de nossa formação histórica, por dificuldades da natureza ou do meio ambiente externo, enfim, tudo aquilo que poderíamos ter sido e que não conseguimos ser ou fazer. Isso não é difícil: basta coletar indicadores homogêneos e fiáveis de “felicidade” humana, ou seja, nível de renda, educação e disponibilidade de bens e serviços básicos (água potável, saneamento, transportes, comunicações, habitação salubre, segurança alimentar, segurança pessoal, emprego e seguro contra certas coisas desagradáveis – menos a morte e os impostos, claro).
Comparando a situação do Brasil com a de outros países, poderíamos, assim, constatar nosso ‘estado de felicidade relativa’, ou seja, quão mais próximos, ou mais distantes, estamos de países mais ‘felizes’, que são supostamente aqueles países que desfrutam desses serviços básicos em condições normais, onde a longevidade é maior e os riscos inerentes à existência humana foram diminuídos, ao máximo das possibilidades dadas pelo uso das tecnologias atuais (médicas, securitárias etc.). Ainda que se possa dizer, de modo até banal, que dinheiro não traz felicidade, é óbvio que sociedades de renda mais elevada conseguem, sim, satisfazer as necessidades elementares de seus cidadãos, e até provê-los de alguns “supérfluos necessários”.
Esse tipo de exercício comparativo é possível de ser feito, dada a abundância atual de dados. Mas não vou fazê-lo aqui, tanto por limitações de espaço como por ser aborrecidamente repetitivo com vários indicadores existentes no âmbito das Nações Unidas (IDH-PNUD, entre outros). O que eu poderia fazer seria uma exposição eminentemente pessoal sobre o que eu acredito que o Brasil poderia ser, e que ele ainda não é ou não consegue ser, por uma série de fatores “limitativos”. Mas eu sou relativamente otimista ao considerar que poderemos chegar nos objetivos fixados em uma ou duas gerações mais (dependendo do grau de dificuldade do objetivo em questão). O que segue, portanto, é a minha regra de "felicidade nacional", com todas as falhas que podem existir numa seleção subjetiva como a que agora faço.
Pois bem, poderíamos começar sendo um país, não de renda média, mas de alta renda, o que parece difícil no contexto latino-americano; mas já foi obtido no cenário asiático, pela Coreia do Sul, por exemplo, um país duas vezes mais pobre do que o Brasil em 1960, e que tinha sido colônia japonesa de 1905 a 1945 (considerada quase como nação escrava do então expansionismo militarista nipônico). O que os coreanos fizeram que não fizemos? Bem, antes deles, os próprios japoneses já tinham mostrado o caminho: educar a população, o que me parece básico, essencial mesmo. Este foi o nosso maior erro histórico, aliás um “pecado original”, posto que Portugal continuava a exibir muitos analfabetos até bem entrado o século XX.
Calculo que nosso atraso, do ponto de vista puramente quantitativo (ou seja, nossa taxa de escolarização) equivalia, vinte anos atrás, a algo como 150 anos em relação aos países precocemente educados (Alemanha e EUA, por exemplo). Concordo que ‘fechamos’ muito dessa lacuna quantitativa; mas se formos considerar a qualidade da educação, minhas conclusões teriam de ir do ruim ao catastrófico. Infelizmente, vai demorar uma ou duas gerações para consertar, mas apenas se corrigirmos os métodos, que continuam errados, o que está longe de ser garantido atualmente. Acredito, aliás, que continuaremos patinando nesse particular. Isso é complicado, pois da boa educação depende tanto uma distribuição de renda mais equânime, como o crescimento da produtividade do trabalho, base do desenvolvimento social. Ponto negativo neste quesito, portanto.
Se a despeito disso tudo conseguirmos, ainda assim, aumentar a renda nacional (e distribuí-la, vale lembrar), teríamos ipso facto resolvido várias das necessidades básicas apontadas acima, o que envolve, mais do que dinheiro, organização (pois recursos sempre existem, no Brasil ou no exterior). Aumentar a renda implica em crescer mais rapidamente, o que já fizemos no passado (com base em investimentos nacionais e estrangeiros e em uma razoável organização estatal); não conseguimos fazer isso agora, justamente pela ausência de investimentos e pela má organização do estado (que está exatamente na origem da falta de recursos para investimentos produtivos: o estado gasta demais, e consigo mesmo). Outro ponto negativo, infelizmente.
Poderíamos, talvez, ter um estado menos gastador e mais investidor. Isso depende, basicamente, das lideranças políticas e das organizações partidárias. Nesse aspecto, tenho de ser novamente pessimista, pois não acredito que consigamos ter, em prazos razoáveis, uma melhor qualidade da administração, conhecendo-se a atual composição da classe política e seus reflexos no Congresso e no Executivo (mas o Judiciário não se apresenta de modo muito melhor). Melhorar a classe política depende basicamente de educação da população, que acredito continuará rudimentar no futuro previsível (basta assistir, por exemplo, aos canais abertos de televisão).
Esse problema está associado à corrupção na máquina pública, e fora dela, posto que a sociedade procura se defender das disfuncionalidades do setor público (em matéria "extrativa", por exemplo), criando um "universo paralelo", qual seja, a economia informal e a cultura do "jeitinho". Essas duas “peculiaridades” brasileiras tornam especialmente difícil alcançar aquele requisito da boa governança que os economistas reputam importante para fins de redução de custos de transação e para permitir uma maior taxa de crescimento. Não gostaria de ser novamente pessimista, mas tenho de consignar mais esse ponto negativo.
Finalmente, poderíamos ter feito melhor em direitos humanos e em cidadania, dois aspectos cruciais de um quadro social notoriamente lamentável no Brasil. Não vamos dourar a pílula: conseguimos fazer (quase) tudo errado, desde o início. José Bonifácio, por exemplo, foi derrotado em seu projeto constituinte de extinguir o tráfico imediatamente e a escravidão em médio prazo, substituindo-os pela imigração em massa de camponeses europeus; Joaquim Nabuco foi outro derrotado, em seu projeto de abolição imediata, e sem indenização, seguida de ampla reforma agrária e da educação dos libertos (elementar e técnica). Os reformadores educacionais dos anos 1930 não conseguiram, de fato, universalizar o ensino como seria desejável, aliás necessário, para o Brasil tornar-se uma república digna do nome; registre-se, por pertinente, que até hoje a educação padece de um excesso de pedagogas “freireanas” e de sindicalistas “isonômicos”, e de carência de administradores sensatos e racionais, buscando resultados pelo mérito, não pela ideologia. Não um, mas vários pontos negativos aqui...
Tivemos, também, outras derrotas monumentais, em outras áreas: Mauá não conseguiu mobilizar para o empreendedorismo e a meritocracia uma sociedade renitentemente escravocrata, prebendalista e cartorial; Monteiro Lobato lutou, mas falhou em implantar aqui o tipo de industrialismo fordista, que ele reputava ser a chave do sucesso americano; os empresários urbanos se acostumaram (mal) aos favores e finanças do estado (ou seja, o seu próprio dinheiro), concordando com um dirigismo persistente que cobra o seu preço na extorsão tributária generalizada; os atuais capitalistas do campo têm a maior dificuldade em expandir o agronegócio, num ambiente político dominado pela hostilidade ao setor, feito de invasões não reprimidas pelo estado, que aliás, se mostra propenso a gastar os recursos da sociedade numa “reforma agrária” tão inútil quanto regressista.
Não é preciso lembrar, ademais, que construímos a inviabilidade matemática da Previdência pública, ao praticar uma generosidade com certas categorias de aposentados – todas no setor público – que é desconhecida em qualquer pais razoável. Também teimamos em satisfazer necessidades privadas – a tal de “inclusão digital”, por exemplo – por meio de programas públicos, que desviam recursos da própria sociedade, que saberia dar melhor destino ao seu dinheiro (inclusive comprando computadores e assinando provedores de internet, se eles fossem justamente mais baratos, sem a carga impositiva que o governo impõe) se ele não fosse canalizado compulsoriamente para um estado famélico e ineficiente. Enfim, temos vários, inúmeros problemas nacionais e, curiosamente, nenhum deles se relaciona com a exploração estrangeira e a dominação "imperialista", como gostam de apregoar certos espíritos ingênuos ou mal informados. Todos eles, sem exceção, são problemas made in Brazil, e é aqui que teremos de resolvê-los, se quisermos, justamente, responder à questão colocada no título deste ensaio. Acredito que conseguiremos, no médio prazo; apenas não me perguntem o que considero médio prazo...
* Publicado originalmente em 04/10/2010.
Distribuição de renda: melhor fazer pelo mercado ou pela ação do Estado? - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)
Distribuição de renda: melhor fazer pelo mercado ou pela ação do Estado?
Autor Paulo Roberto de Almeida
Aquilo que aos olhos de um liberal puro pareceria uma iconoclastia, qual seja, o ato de distribuir renda ou riqueza que só podem ser frutos do trabalho individual, assume, na perspectiva de um socialista ou de um social-democrata, o caráter de uma ação não apenas desejável, como necessária; ela o seria para equilibrar "tendências" inerentemente concentradoras de renda na economia capitalista, requerendo, portanto, a intervenção corretora dos estados para criar um pouco mais de "igualdade".
O mais grave problema do maniqueísmo existente em torno dessas duas concepções aparentemente antinômicas é que elas dificultam um diálogo racional sobre como combinar, ao melhor das possibilidades próprias a cada uma delas, as virtudes dessas duas posições, que estão presentes na sociedade moderna e que se combatem como se fossem duas políticas excludentes. Na prática, as modernas democracias de mercado atendem aos requisitos da criação de riqueza, com base num espírito classicamente individualista, e ainda assim se propõem distribuir a renda gerada e a riqueza acumulada por meio de mecanismos legalmente formalizados.
O que o pensamento liberal argumenta, corretamente, é que não se pode distribuir renda sem antes produzi-la; e que se a distribuição é feita de forma compulsória sobre o estoque existente, e não sobre os fluxos que vão sendo criados pela economia de mercado, os limites são logo atingidos e os estímulos para a criação e a acumulação de riqueza desaparecem. O que a doutrina social-democrata proclama é que a economia de mercados livres tende a concentrar riqueza muito além do necessário para sua "reprodução ampliada" (seja lá o que isso queira dizer) e que a coletividade tem o direito de redistribuir o "excedente" com a finalidade de "justiça social". O liberal pretende que o estado garanta a sua propriedade, sua renda e seu patrimônio, ao passo que o socialista quer ver o mesmo estado taxando pesadamente os ricos para tornar a sociedade um pouco mais igualitária, ainda que não totalmente uniforme.
Esse é o estado da questão existente nas democracias modernas, sendo as duas tendências representadas, de um lado, pelos partidos conservadores ou liberais e, de outro, pelos socialistas, social-democratas e várias tribos de ‘progressistas’. Esses dois pólos costumam se alternar nos governos das economias contemporâneas de mercado, ora fazendo a balança pender do lado do individualismo liberal, ora do distributivismo socialista, com todas as nuances possíveis entre eles, dada a existência de burocracias consolidadas (e aparentemente distributivistas) em todos esses estados.
Pois bem, como poderiam, a partir daí, serem considerados os problemas dos mecanismos de acumulação e de distribuição de renda e riqueza, e quais efeitos provocados pelas diferentes formas de criar e de distribuir ambas? Comecemos por esclarecer que renda não é a mesma coisa que riqueza, embora os dois termos sejam utilizados de forma intercambiável no discurso político para exemplificar alternativas de políticas que podem ser (como são) usualmente confundidas. Simplificando muito, apenas para fins deste breve ensaio, digamos que renda seja o fluxo de valor criado numa economia de mercado, e riqueza são ativos acumulados sob diversas formas como resultado da concentração dessa renda. Esclareça-se, ainda, que numa economia avançada a maior parte dos ativos aparece, de fato, sob a forma de intangíveis.
Os mecanismos de distribuição no liberalismo clássico se dão pelo pagamento dos fatores: lucros e juros para o capital, salários para o trabalho, aluguéis para as propriedades, royalties ou direitos de autor para a propriedade intelectual, e assim por diante. A democratização social e os avanços da representação política, com o alargamento das franquias democráticas e a ampliação das obrigações do estado desde o início do século XX, redundaram na introdução de novos mecanismos fiscais – tributos diretos e indiretos, taxas sobre o patrimônio, etc. – que todos caminharam no sentido da progressividade (ainda que alguns países sejam conhecidos pela nítida regressividade dos impostos, como o próprio Brasil, por exemplo). O welfare state aprofundaria essas tendências e as legitimaria, alegando que políticas sociais são importantes inclusive por razões de eficiência econômica, já que a redistribuição de renda aumenta o consumo e, portanto, pode contribuir para o crescimento do PIB.
Fabianos e outros socialistas se converteram nos campeões do distributivismo à outrance, o que se, por um lado, diminuiu as disparidades mais gritantes nessas sociedades (especialmente nórdicas e da Europa ocidental, inclusive os EUA), também atuou, por outro lado, no sentido de favorecer a deslocalização de empresas e a busca de novas residências fiscais, menos intrusivas e pesadas (o que já constitui um dos efeitos negativos da "justiça social" via carga impositiva). Governos liberais, por sua vez, procuravam reduzir os desincentivos ao investimento produtivo pela via da redução de impostos, como fizeram vários governos republicanos nos EUA. Outros mecanismos foram sendo concebidos para redistribuir renda, inclusive alocações diretas, seguro desemprego, reconversão laboral, subsídios habitacionais, políticas regionais com incentivos fiscais e uma infinidade de programas que surgiram da iniciativa de políticos e da imaginação criadora de tecnocratas bem intencionados.
A verdade é que a parafernália de programas sociais criados pelo Estado de bem-estar agrava a crise fiscal; os governos aumentam a punção fiscal, não mais para fins de redistribuição, mas para seu próprio equilíbrio orçamentário. Países com maior carga fiscal, notadamente sobre o trabalho e sobre os lucros, são os que menos crescem e apresentam as menores taxas de empregabilidade (cf. James Gwartney et alii, “The Scope of Government and the Wealth of Nations”, Cato Journal, vol. 18, n. 2, 1998, p. 163-190). Essa evidência não impede aqueles que ignoram princípios elementares de economia e que desconhecem, por exemplo, a "curva de Laffer" (que prevê queda na arrecadação com o aumento dos impostos), de continuar propondo extorsão tributária – como o imposto sobre as grandes fortunas –, cujas consequências mais evidentes são o aumento da elisão fiscal e a fuga de capitais, entre outros efeitos.
A experiência prática e algumas equações econômicas ensinam que a melhor forma de se obter redistribuição de renda é através dos mercados – eventualmente por meio de alguma indução estatal, mas de preferência não diretamente pelo estado – e que é sempre melhor atuar sobre os fluxos de renda do que sobre os estoques de riqueza. Governos muito empreendedores na área fiscal acabam gerando efeitos inversos aos esperados, quando não uma diminuição significativa das oportunidades futuras de crescimento. Em todo caso, o mito da redistribuição de renda parece irremediavelmente entranhado nas democracias modernas, mesmo ao preço da diminuição da eficiência econômica. O debate não vai parar por aqui...
* Publicado originalmente em 27/09/2010.
Por que o mundo é como é (e como ele poderia ser melhor...) - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)
A republicação pelo site Ordem Livre está sendo feito de maneira aleatória, sem atender ao ordenamento e encadeamento dos textos que eu havia organizado originalmente. Ao final, colocarei os textos em sua sequência lógica, na ordem original, por meio de uma listagem cronológica e temática. Isso é importante, pois o raciocício histórico, teórico e substantivo foi sendo construído gradativamente, até chegar nas conclusões.
Paulo Roberto de Almeida
Por que o mundo é como é (e como ele poderia ser melhor...)
Autor Paulo Roberto de Almeida
Chegando mais perto, ele veria que algumas dessas explorações rurais exibem um quadriculado perfeito, correspondendo ao que chamamos de agronegócio, enquanto outras estão dispersas em vastas zonas de ocupações irregulares, com muita destruição dos recursos naturais em volta e alguma degradação ambiental: são as unidades de exploração familiar, de subsistência e de baixa produtividade, geralmente nas regiões tropicais. Quanto às zonas urbanas, nosso viajante extraterrestre teria todos os tipos de paisagens: enormes cidades modernas, repletas de grandes edifícios modernos, cortadas por vias expressas; pequenas cidades do interior, de arquitetura mais tradicional; e uma variedade de grandes ou pequenas cidades com todos os tipos de habitações: condomínios de luxo, mansões espetaculares, mas também favelas urbanas e ajuntamentos periféricos, revelando a imensa desigualdade da condição humana nas sociedades que se distribuem por todas essas regiões e continentes.
Planando, agora, a baixa altura sobre essas cidades, nosso visitante exterior teria todas as combinações possíveis à sua disposição: pessoas de alta renda se deslocando em carros de luxo ou em helicópteros pessoais, cidadãos de classe média fazendo compras em shoppings multicoloridos pelos neons atrativos, trabalhadores especializados concentrados em fábricas ou escritórios, empregados informais em situação de exploração abjeta em negócios não registrados, capitalistas do campo aqui, agricultores miseráveis e trabalhadores volantes ali, em regiões de agricultura primitiva e de baixa produtividade. Nas ruas e semáforos, ele se depararia com carros fechados, passantes apressados, vendedores de ocasião e uma quantidade variável de pedintes andrajosos, dependendo do país ou região que estivesse sobrevoando. Nas zonas tropicais os contrastes seriam certamente mais fortes do que nas temperadas, embora as migrações humanas, legais e clandestinas, venham colorindo todo o planeta de todas as gradações possíveis no imenso leque de riquezas e misérias humanas.
Este é o nosso mundo, rico e miserável ao mesmo tempo, contraditório nas situações econômicas e nos regimes políticos, variado pelas línguas e religiões, mas unificado pelos mesmos desejos humanos de algumas coisas muito simples: comida, segurança, bem-estar material, boa saúde, disponibilidade de bens úteis à existência e alguma perspectiva de melhora no curso da própria geração. Todos aspiram a essas mesmas coisas, em graus variáveis de necessidade ou ambição, assim como todos desejam um bem intangível, um pouco mais difícil de ser "entregue": a felicidade humana; isto é, a realização de outros sentimentos ainda mais subjetivos: o amor, o afeto, a satisfação pessoal no convívio com entes queridos.
Se ao nosso viajante do exterior fosse facultado pesquisar livremente entre os terráqueos as fontes e as razões daquela sensação que os anglo-saxões chamam de fulfilling (e que os franceses designam por accomplissement), ele constataria que a condição básica para sua realização é simplesmente esta: a liberdade de escolha. Poder escolher onde morar, definir uma profissão, realizar-se como ser social, dispor de uma renda suficiente para fazer suas próprias opções em termos daqueles bens materiais e ofertas culturais que melhor atendam sua personalidade, deslocar-se livremente pelo planeta para visitar templos, museus, florestas e praias, comer em bons restaurantes, comprar roupas vistosas e confortáveis, ser atendido nos melhores hospitais e poder conversar livremente e relacionar-se com quem encontrar pela frente, ou simplesmente ficar sentado em frente da televisão, sem outras preocupações do que a certeza de que se dispõe de seres amados em volta de si, que lhe dão a segurança de uma vida tranquila, sem os sobressaltos de guerras, violência, delinquência ou catástrofes de qualquer tipo.
Esse talvez seja o conjunto de requisitos materiais e imateriais que poderiam definir aquilo que chamamos de felicidade humana, algo ainda raro em nossos tempos. Ela não está diretamente correlacionada ao PIB per capita ou ao IDH dos países, embora não se possa descartar a imensa interface que existe entre, de um lado, um nível satisfatório de renda e de serviços públicos (como a assistência à saúde, por exemplo), bem como um provimento adequado de educação de base para o enfrentamento dos problemas mais comezinhos da vida humana; e, de outro, essa sensação d’accomplissement, que se aproxima, em parte, da felicidade. A felicidade é a liberdade de você poder escolher o que lhe faz ser feliz, e para isso é preciso dispor de um mínimo (ou provavelmente mais do que isso) de meios materiais.
O fato é que a imensa maioria dos seres humanos, talvez dois terços de um planeta com mais de seis bilhões de habitantes, não dispõe da simples liberdade de escolher onde trabalhar, onde morar, como garantir sua segurança alimentar, física ou até a satisfação de necessidades as mais simples: água potável, saneamento básico, transporte acessível, escolas e hospitais de qualidade, sem mencionar a liberdade de escolher quem definirá as regras que impactarão a sua vida no trabalho, na disponibilidade da renda pessoal, na habitação e na segurança, justamente. Uma das explicações aventadas para essas imensas desigualdades distributivas e de acesso aos bens materiais e intangíveis é a de que os ricos são ricos porque extraíram sua riqueza dos pobres, povos ou países pobres dominados e explorados pelos cidadãos ricos dos países ricos, cabendo, portanto, liquidar com a dominação e com essa exploração para corrigir imediatamente as iniquidades existentes.
Esse simplismo e esse maniqueísmo já não são mais aceitáveis hoje em dia (se algum dia o foram), bastando, aliás, que o nosso extraterrestre examine a situação do Haiti, tanto a partir da estratosfera – de onde ele veria a mesma ilha, Hispaniola, perfeitamente dividida numa porção verde, à direita, e numa mancha ocre e desolada do lado esquerdo, que corresponde exatamente ao Haiti –, quanto no plano histórico-político, posto que o Haiti foi a primeira colônia da América Latina a se libertar da dominação européia, ainda no final do século 18. Pois bem, o Haiti nunca foi explorado diretamente por potências estrangeiras desde então, constituindo uma nação independente que escolheu o seu próprio caminho para o subdesenvolvimento e para a degradação ambiental. Uma mistura de elites insensíveis e população miserável, jamais educada para explorar os recursos naturais de forma sustentável, representou a “receita” terrível que levou o Haiti à situação que ele exibe hoje: não só um Estado falido, mas uma sociedade arrasada pela degradação ambiental e pela desestruturação social. Em uma palavra: uma população sem qualquer liberdade de escolha, a não ser (embora precariamente) a de emigrar e de tentar refazer a vida em outros países.
O Haiti não é o que é hoje por excesso de “exploração capitalista”, como querem alguns, mas provavelmente pela insuficiência de “exploração” capitalista, pela incapacidade de suas elites de inserir o país nos amplos circuitos da economia mundial, de onde poderiam vir a tecnologia, os capitais, a inovação e, sobretudo, as idéias que permitiriam ao país um pouco de progresso, de prosperidade, enfim, um pouquinho de felicidade humana. O erro fatal do Haiti foi ter se isolado da comunidade internacional, da economia mundial, e preservado estruturas defasadas, feitas de má educação, de escassos valores cívicos, baixa integração social. Tudo isso deixou o Haiti num patamar de baixa produtividade do trabalho humano, com reduzidas possibilidades de crescimento econômico e, atualmente, com poucas saídas para sua inserção internacional. Povos atrasados são feitos, antes de mais nada, de países isolados. A geografia e a história confirmam essa verdade elementar.
Olhando o mundo de maneira desprevenida, nosso extraterrestre veria que os países mais abertos à inovação, ao comércio, aos intercâmbios ilimitados com todos os demais povos são também as sociedades e nações mais avançadas e progressistas, de maior nível de renda e com um grau de ‘felicidade humana’ um pouco maior. Isso só se alcança com liberdade de escolha, e esta depende fundamentalmente de quão aberto é o país ao exterior. Nosso viajante exterior, mesmo sem ser especialmente educado em economia ou sem dispor de estatísticas completas, não teria muita dificuldade em concluir que a liberdade individual, a liberdade de dispor de seus bens sem que alguém (ou o próprio Estado) ameace tomá-los de maneira arbitrária, a liberdade de poder transacionar esses bens (ou a sua própria força de trabalho) sem muitas restrições impostas por governos intrusivos, essas qualidades são as que criam povos ricos, sociedades prósperas e amantes da paz.
Falaremos em maior detalhe sobre tudo isso mais adiante...
* Publicado originalmente em 18/01/2010.
Competição e monopólios (naturais ou não): como definir e decidir? - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)
Competição e monopólios (naturais ou não): como definir e decidir?
Autor Paulo Roberto de Almeida
Já o monopólio consagra uma imagem negativa, geralmente associada a um ofertante único, que dispõe assim da faculdade de impor o seu produto ou serviço aos clientes pelo valor que quiser, sem atentar a critérios de qualidade, posto que estes não disporão de alternativas no mercado. Em determinadas circunstâncias, porém, alguns monopólios aparecem como inevitáveis: como oferecer serviços concorrentes de fornecimento de água potável e de saneamento básico numa cidade, senão por um regime de monopólio regulado? Seria impossível, ou extremamente cara, a oferta concorrente em serviços de custos fixos e de condições logísticas muito especiais; daí a necessidade de alguma regulação estatal para o exercício do monopólio admissível.
De maneira geral, sistemas mais competitivos funcionam melhor, são mais eficientes e fornecem maior volume de produtos e serviços, de melhor qualidade, do que sistemas monopolísticos ou cartelizados. Alguns idealistas acreditam que a economia capitalista pura seja eminentemente concorrencial, ou competitiva – os dois termos não se equivalem, mas podem ser equiparados para os nossos propósitos –, o que não é exatamente verdade, segundo se pode depreender de uma leitura histórica braudeliana (isto é, baseada na obra do grande historiador francês Fernand Braudel). Como ele demonstrou em sua monumental trilogia Economia, Civilização Material e Capitalismo, este último, na verdade, só triunfou quando ele se aliou ao Estado, quando ele mesmo se converteu em Estado, o que deu margem e abertura a inúmeros monopólios e regimes fechados, que fizeram a fortuna dos poucos capitalistas assim premiados por algum príncipe corrupto (que retirava suas vantagens materiais das concessões feitas aos amigos da corte).
Embora esse tipo de comportamento não represente a chave explicativa para o triunfo do capitalismo no Ocidente, nem explique totalmente a mecânica do sistema, ele ajuda a compreender porque monopólios e cartéis se mantêm e até se expandem sob o capitalismo, contrariamente ao que se poderia esperar de sua lógica elementar de funcionamento – que supostamente seria a de mercados perfeitamente abertos operando em regime de concorrência quase perfeita, entre competidores ofertando os mesmos produtos para clientes racionais, que buscam a maximização do seu bem-estar. Esse tipo de colusão tampouco se sustenta nas doutrinas construídas em torno das alegadas virtudes “morais” do capitalismo, que são, basicamente, duas: a chamada “mão invisível” de Adam Smith e o “equilíbrio natural” dos mercados da Escola Austríaca, geralmente identificada aos ensinamentos de Alfred Hayek. Ou seja, a despeito de sempre se afirmarem as vantagens da concorrência aberta e da competição desimpedida entre os agentes de mercado, para a melhor eficiência possível do sistema, comportamentos restritivos, de tipo monopolístico ou como cartéis, sempre acabam encontrando algum espaço político para seu estabelecimento e expansão.
Essa tensão entre monopólio e concorrência sempre existirá, portanto; e ela tanto pode ter origem nessas colusões obscuras entre um capitalista e o príncipe do momento, como derivar desses monopólios “naturais” a que nos referimos acima. É evidente, no entanto, que um príncipe esclarecido, voltado unicamente para o maior bem-estar do seu povo, procure, logicamente, introduzir o maior grau de concorrência possível no seu sistema econômico, posto que esta seria a atitude mais correta, aquela economicamente desejável para o sucesso econômico do seu principado, e até para o seu próprio sucesso político. Racionalmente falando, um regime de maior competição é aquele que produz a maior prosperidade possível para os súditos do príncipe – os nossos agentes produtores e consumidores – e para o próprio estado, que terá, assim, um maior volume de receitas advindas da multiplicação ampliada dos negócios.
A solução mais racional não é, contudo, aquela que se impõe naturalmente em todas as circunstâncias, já que o regime de monopólio tem o “poder mágico” de beneficiar agentes e autoridades que dispõem de um poder regulatório exclusivo. Quando um estado se vê na situação de dispensador único de favores e concessões, seus controladores podem ter interesse em estabelecer monopólios setoriais, posto que eles lucrarão com o regime de concessão e os privilégios exclusivos daí advindos. Um capitalista mais “empreendedor” – entenda-se como bem relacionado com o poder – pode também desejar afastar seus concorrentes confabulando com o príncipe normas regulatórias que o beneficiem preferencialmente, em detrimento dos demais ofertantes; ou os próprios capitalistas se organizam num cartel clandestino, para espoliar os clientes através de arranjos de preços e “normas voluntárias” ditadas pelos seus interesses de afastar concorrentes nacionais ou estrangeiros (uma tarifa também serve para tal).
Em última instância, porém, o elemento decisivo na conformação alternativa de um sistema mais aberto à competição – inclusive em áreas de notória competência governamental, mas que nada impede sejam operadas em regime de concorrência entre empresários do setor privado – ou de um outro, dominado por monopólios e cartéis, é a mentalidade do príncipe, ou, nos sistemas modernos, a postura dos líderes e partidos que assumem os encargos governamentais a intervalos regulares. Pessoas e movimentos mais comprometidos com a racionalidade econômica stricto sensu vão provavelmente preferir um sistema operando em bases concorrenciais amplas, o que sempre trará maior riqueza e prosperidade em condições de sociedade aberta. Se, ao contrário, essas pessoas e partidos acreditarem no poder normativo do Estado, como o dispensador “natural” de justiça econômica, podemos ter certeza de que os mercados funcionarão com restrições e limites a um regime de competição ampliada, e próximo dos monopólios e cartéis. Tanto pior para os consumidores e cidadãos, que terão de pagar um preço acrescido ao que ocorreria em condições de concorrência natural.
Talvez a regra elementar dos governantes deva ser esta: tudo o que não requerer um monopólio exclusivo – como podem ser serviços coletivos “não fracionáveis”, como, por exemplo, defesa nacional e justiça condenatória, tomados restritamente –, deveria ser organizado em bases concorrenciais, para melhor benefício dos contribuintes, inclusive aqueles serviços que normalmente são associados ao Estado, como saúde e educação, entre outros. Até mesmo serviços penitenciários poderiam funcionar melhor em regime de concorrência aberta.
Acredito que qualquer pessoa racional concordaria com este argumento...
* Publicado originalmente em 05/07/2010.
domingo, 19 de outubro de 2014
Duas tradições no campo da filosofia social: liberalismo e marxismo - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)
Duas tradições no campo da filosofia social: liberalismo e marxismo
Autor Paulo Roberto de Almeida