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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Preeminência, hegemonia, dominação, exploração: realidades ou mitos? - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)


Este é o trabalho de número 16 (Preeminência, hegemonia, dominação, exploração: realidades ou mitos?), da série "Volta ao Mundo em 25 ensaios", publicado originalmente em 18/07/2010, no site de Ordem Livre (http://www.ordemlivre.org/textos/1058/ ), mas não mais disponível nessa base, razão pela qual eu o estou publicando aqui.


Volta ao mundo em 25 ensaios:
16. Preeminência, hegemonia, dominação, exploração: realidades ou mitos?
Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)
Ensaio preparado para o OrdemLivre.org

Admitamos desde o início e de modo incontroverso: preeminência, hegemonia, dominação, exploração são realidades concretas (com perdão pela redundância); todas essas situações e interações fazem parte do mundo como ele é, desde o início dos tempos até nossos dias. O ‘mundo como ele é’ foi e é justamente feito dessas realidades desagradáveis, até brutais, que não devem ser travestidas por qualquer visão ‘panglossiana’ da história das civilizações humanas. Os mitos, entretanto, começam quando se pretende explicar o mundo como ele é apenas por meio dessas realidades tangíveis, algumas até ‘intangíveis’, ou seja, existentes virtualmente, quase despercebidas materialmente.
‘Intelectuais’ assim proclamados acreditam que a dominação ‘ideológica’ dos países avançados sobre os periféricos é ainda mais insidiosa e totalitária do que a dominação econômica, tecnológica ou militar. Devem ser pessoas que não acreditam na força da cultura ou que superestimam a capacidade dos países ricos de moldar os ‘corações e mentes’ dos povos dos países ‘dominados’ à sua imagem e semelhança. Seria desdenhar muito da fraqueza destes últimos e sobrevalorizar à outrance o poder de sedução dos primeiros.
De um ponto de vista puramente histórico e sociológico – abstraindo, portanto, as implicações políticas, militares e até culturais daqueles fenômenos ou processos envolvidos nos conceitos expressos no título deste ensaio, todos eles envolvendo primazia, sujeição e até a dominação a mais brutal de alguns povos sobre outros –, deve-se reconhecer que essas situações foram e são muito comuns na história da humanidade. Não se deve esquecer, por exemplo, que nove décimos da história humana registrada foram transcorridos sob a marca de instituições tão brutais – e, no entanto, tão ‘normais’ no plano das realidades efetivas – quanto a escravidão, a eliminação (e mais frequentemente ainda a mutilação física) dos vencidos na guerra, a sujeição de mulheres e crianças ao poder dos conquistadores, a ocupação e apropriação violenta de espaços e recursos, enfim, toda sorte de exações e arbitrariedades que ainda permanecem conosco em grande medida, a despeito de todos os progressos humanitários e no plano do direito internacional realizados desde um século ou mais. Infelizmente, o mundo ainda não é o que gostaríamos que fosse.
Mas tampouco o mundo permanece aquele campo aberto de caça à disposição dos imperialistas, como ele se apresentava ainda cem anos atrás: os tempos de disputa pela África e de “grande jogo” na Ásia central já se encerraram há muito tempo, embora as fragilidades dessas regiões sejam persistentes e os centros atuais de poder estejam projetando seus novos interesses sobre velhos e novos provedores de recursos estratégicos. A China, por exemplo, tem exercido uma ofensiva em direção desses países dotados de matérias primas e recursos estratégicos que se parece muito com a antiga “diplomacia do dólar”, conduzida pelos EUA desde os tempos de William Taft e Theodore Roosevelt, no início da projeção imperial da grande República.
Por outro lado, a emergência do direito internacional, como matriz condutora – ainda que não a força decisiva – das relações internacionais desde a criação da ONU, tem atuado para refrear os impulsos imperiais e os projetos de dominação. Embora velhos e novos impérios continuem a existir – muitos deles virtuais, baseados no livre comércio e nos investimentos, como é o caso dos EUA, eventualmente garantidos por bases militares e por ameaças e pressões ocasionais – eles já não mais podem ditar soberana e exclusivamente as condições segundo as quais a comunidade internacional irá organizar sua estrutura institucional e sua agenda de trabalho: é preciso agora fazer um esforço mínimo de construção de consenso e de aprovação de resoluções, por mais que muitas delas sejam desrespeitadas no momento seguinte (como no caso da invasão do Iraque, que careceu da legitimidade tão buscada pela potência invasora). Não se pode esquecer, também, que o último resquício do velho colonialismo, a Comissão de Tutela da ONU – burocrática herdeira de algumas possessões coloniais vindas da Liga das Nações – já deixou de existir, por falta absoluta de “clientela”.
Nada disso diminui a força do poder e o poder da força nas relações internacionais, mas reduz consideravelmente a latitude de ação dos velhos poderes imperiais do passado. Alguns desses poderes, dos tempos presentes, são pelo menos obrigados a atuar dentro de alguns parâmetros que respeitam, ainda que formalmente, a soberania e a independência das novas nações independentes. Se não o fazem, eles são constrangidos em sua ação internacional pela ausência de legitimidade intrínseca conferida às suas iniciativas em várias outras áreas. Os países ‘vítimas’ da violência imperial já não são mais inermes, como no passado, na medida em que dispõem de instrumentos do direito internacional e instâncias de apelo que não existiam antes da criação da ONU, ou mesmo dos tribunais da Haia e outras cortes especializadas.
Em qualquer hipótese, os princípios westfalianos têm vigência absoluta, posto que estamos lidando com Estados constituídos, não com territórios indefinidos, estes na completa ausência de estruturas governamentais reconhecidas pela comunidade internacional. Mesmo a alegada capacidade das empresas multinacionais mais poderosas, em face da fragilidade de pequenos Estados, sempre aventada pelos mesmos ‘intelectuais’ como fator de pressão e mesmo de dependência em favor dessas empresas ou de seus Estados de origem não se sustenta levando em conta a capacidade normativa do mais modesto país da região mais pobre do mundo. Concretamente isso quer dizer que o país mais miserável da Terra, cujo PIB nacional representa, hipoteticamente, menos de 10% do faturamento da maior empresa multinacional – não importa o produto ou serviço – pode, se assim o desejar, proibir completamente as operações dessa empresa em seu território soberano, por meio de uma simples medida normativa ou até de caráter administrativo.
Independentemente, porém, dos progressos, mesmo relativos, do direito internacional e da arquitetura institucional em construção, a verdade é que os conceitos destacados no título se referem a uma realidade e, sobretudo, a uma filosofia em larga medida inadequadas ao mundo atual. Não que os fenômenos e processos neles contidos tenham desaparecido por completo do cenário internacional; mas é que eles estão largamente contidos pelos efeitos combinados da evolução da institucionalidade internacional, da construção de Estados e do desenvolvimento da interdependência contemporânea; a previsão é que eles se tornem cada vez mais raros.

Brasília, 7 de janeiro de 2010.
Revisão: Shanghai, 14.04.2010

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