Volta ao mundo em 25 ensaios:
16.
Preeminência, hegemonia, dominação, exploração: realidades ou mitos?
Admitamos desde o início e de modo incontroverso: preeminência, hegemonia,
dominação, exploração são
realidades concretas (com perdão pela redundância); todas essas situações e
interações fazem parte do mundo como ele é, desde o início dos tempos até
nossos dias. O ‘mundo como ele é’ foi e é justamente feito dessas realidades
desagradáveis, até brutais, que não devem ser travestidas por qualquer visão ‘panglossiana’
da história das civilizações humanas. Os mitos, entretanto, começam quando se
pretende explicar o mundo como ele é apenas por meio dessas realidades
tangíveis, algumas até ‘intangíveis’, ou seja, existentes virtualmente, quase
despercebidas materialmente.
‘Intelectuais’ assim proclamados acreditam que a
dominação ‘ideológica’ dos países avançados sobre os periféricos é ainda mais
insidiosa e totalitária do que a dominação econômica, tecnológica ou militar.
Devem ser pessoas que não acreditam na força da cultura ou que superestimam a
capacidade dos países ricos de moldar os ‘corações e mentes’ dos povos dos
países ‘dominados’ à sua imagem e semelhança. Seria desdenhar muito da fraqueza
destes últimos e sobrevalorizar à
outrance o poder de sedução dos primeiros.
De um ponto de vista puramente
histórico e sociológico – abstraindo, portanto, as implicações políticas,
militares e até culturais daqueles fenômenos ou processos envolvidos nos
conceitos expressos no título deste ensaio, todos eles envolvendo primazia,
sujeição e até a dominação a mais brutal de alguns povos sobre outros –,
deve-se reconhecer que essas situações foram e são muito comuns na história da
humanidade. Não se deve esquecer, por exemplo, que nove décimos da história
humana registrada foram transcorridos sob a marca de instituições tão brutais –
e, no entanto, tão ‘normais’ no plano das realidades efetivas – quanto a escravidão,
a eliminação (e mais frequentemente ainda a mutilação física) dos vencidos na
guerra, a sujeição de mulheres e crianças ao poder dos conquistadores, a
ocupação e apropriação violenta de espaços e recursos, enfim, toda sorte de
exações e arbitrariedades que ainda permanecem conosco em grande medida, a
despeito de todos os progressos humanitários e no plano do direito
internacional realizados desde um século ou mais. Infelizmente, o mundo ainda
não é o que gostaríamos que fosse.
Mas tampouco o mundo permanece
aquele campo aberto de caça à disposição dos imperialistas, como ele se
apresentava ainda cem anos atrás: os tempos de disputa pela África e de “grande
jogo” na Ásia central já se encerraram há muito tempo, embora as fragilidades
dessas regiões sejam persistentes e os centros atuais de poder estejam
projetando seus novos interesses sobre velhos e novos provedores de recursos
estratégicos. A China, por exemplo, tem exercido uma ofensiva em direção desses
países dotados de matérias primas e recursos estratégicos que se parece muito
com a antiga “diplomacia do dólar”, conduzida pelos EUA desde os tempos de William
Taft e Theodore Roosevelt, no início da projeção imperial da grande República.
Por outro lado, a emergência
do direito internacional, como matriz condutora – ainda que não a força
decisiva – das relações internacionais desde a criação da ONU, tem atuado para
refrear os impulsos imperiais e os projetos de dominação. Embora velhos e novos
impérios continuem a existir – muitos deles virtuais, baseados no livre
comércio e nos investimentos, como é o caso dos EUA, eventualmente garantidos
por bases militares e por ameaças e pressões ocasionais – eles já não mais
podem ditar soberana e exclusivamente as condições segundo as quais a
comunidade internacional irá organizar sua estrutura institucional e sua agenda
de trabalho: é preciso agora fazer um esforço mínimo de construção de consenso
e de aprovação de resoluções, por mais que muitas delas sejam desrespeitadas no
momento seguinte (como no caso da invasão do Iraque, que careceu da
legitimidade tão buscada pela potência invasora). Não se pode esquecer, também,
que o último resquício do velho colonialismo, a Comissão de Tutela da ONU –
burocrática herdeira de algumas possessões coloniais vindas da Liga das Nações
– já deixou de existir, por falta absoluta de “clientela”.
Nada disso diminui a força do
poder e o poder da força nas relações internacionais, mas reduz
consideravelmente a latitude de ação dos velhos poderes imperiais do passado.
Alguns desses poderes, dos tempos presentes, são pelo menos obrigados a atuar
dentro de alguns parâmetros que respeitam, ainda que formalmente, a soberania e
a independência das novas nações independentes. Se não o fazem, eles são
constrangidos em sua ação internacional pela ausência de legitimidade
intrínseca conferida às suas iniciativas em várias outras áreas. Os países ‘vítimas’
da violência imperial já não são mais inermes, como no passado, na medida em
que dispõem de instrumentos do direito internacional e instâncias de apelo que
não existiam antes da criação da ONU, ou mesmo dos tribunais da Haia e outras
cortes especializadas.
Em qualquer hipótese, os
princípios westfalianos têm vigência absoluta, posto que estamos lidando com
Estados constituídos, não com territórios indefinidos, estes na completa
ausência de estruturas governamentais reconhecidas pela comunidade internacional.
Mesmo a alegada capacidade das empresas multinacionais mais poderosas, em face
da fragilidade de pequenos Estados, sempre aventada pelos mesmos ‘intelectuais’
como fator de pressão e mesmo de dependência em favor dessas empresas ou de
seus Estados de origem não se sustenta levando em conta a capacidade normativa
do mais modesto país da região mais pobre do mundo. Concretamente isso quer
dizer que o país mais miserável da Terra, cujo PIB nacional representa,
hipoteticamente, menos de 10% do faturamento da maior empresa multinacional –
não importa o produto ou serviço – pode, se assim o desejar, proibir
completamente as operações dessa empresa em seu território soberano, por meio
de uma simples medida normativa ou até de caráter administrativo.
Independentemente,
porém, dos progressos, mesmo relativos, do direito internacional e da
arquitetura institucional em construção, a verdade é que os conceitos
destacados no título se referem a uma realidade e, sobretudo, a uma filosofia
em larga medida inadequadas ao mundo atual. Não que os fenômenos e processos
neles contidos tenham desaparecido por completo do cenário internacional; mas é
que eles estão largamente contidos pelos efeitos combinados da evolução da
institucionalidade internacional, da construção de Estados e do desenvolvimento
da interdependência contemporânea; a previsão é que eles se tornem cada vez
mais raros.
Brasília, 7 de janeiro de 2010.
Revisão: Shanghai, 14.04.2010
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