Uma reflexão do momento, uma confirmação do compromisso com um projeto de vida.
Toda
a Gália está ocupada! Toda?
Não! Uma pequena aldeia resiste ainda...
Paulo Roberto de
Almeida
Nous sommes en 50 avant Jésus-Christ ; toute
la Gaule est occupée par les Romains… Toute ? Non ! Car un village
peuplé d’irréductibles Gaulois résiste encore et toujours à l’envahisseur. Et
la vie n’est pas facile pour les garnisons de légionnaires romains…
No Prefácio com o qual ele distinguiu
meu livro Nunca Antes na Diplomacia...: a
política externa brasileira em tempos não convencionais, o embaixador Rubens
Barbosa começa exatamente por essas palavras: “Estamos
no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não!
Uma pequena aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste bravamente
ao invasor. E a vida não é nada fácil para as guarnições de legionários
romanos...”. Ele continua dizendo que eu não sou exatamente um “asterisco” na
bibliografia brasileira de relações internacionais e de política externa, dado o acúmulo de obras
já produzidas nessas áreas, e que tampouco me pareço com Obelix, embora eu costume
arremessar menires intelectuais contra os acadêmicos ingênuos que interpretam o
mundo através de seus livros.
Com efeito, creio poder orgulhar-me de uma boa contribuição para a
literatura especializada nesses campos que constituem minha especialidade de
pesquisa e de produção de trabalhos acadêmicos, ademais de participar do debate
intelectual nessas e em outras áreas de relevante interesse público para o
Brasil. Mas o fato é que, nos últimos dois meses, pelo menos, eu tinha deixado
de lado essa produção voltada para estudos mais estruturais, ou de natureza
mais analítica, passando a ocupar-me de pequenos textos de intervenção na
realidade política do país, em compasso com a conjuntura eleitoral. Até cheguei
a inverter uma antiga resistência a certas ferramentas de comunicação social,
como o Facebook, por exemplo – que considero, acertadamente, como um grande
“perdedor de tempo”, o precioso e extremamente exíguo tempo de que disponho
para ler e escrever – para participar mais ativamente do debate político que
incendiou o país em torno de dois projetos de nação.
A questão agora não é tanto pessoal – embora eu tenha que confirmar um
novo retraimento nos estudos de maior profundidade, em lugar da dispersão em
textos curtos de intervenção no debate político – quanto ela é, justamente, de
natureza social, mais especificamente, no caso presente, de ordem intelectual
grupal. Aparentemente, o Brasil se encontra dividido em quase duas metades
simétricas, não exatamente opostas no plano das políticas públicas – uma vez
que ambos tendem a confirmar o papel bastante preponderante do Estado no
encaminhamento dos principais problemas nacionais – quanto elas o são no que
respeita as filosofias que subjazem aos programas de governo das duas
coligações que se digladiaram nas eleições presidenciais de 2014. As pessoas,
como eu, mais identificadas com a preeminência do indivíduo sobre o Estado, com
os terrenos das liberdades individuais e das iniciativas privadas, como forma
de superar os graves problemas de desenvolvimento econômico e social do país,
podem estar se sentido órfãs no momento presente, quando triunfam – não de
maneira acachapante, mas ainda assim de modo incisivo – os elementos mais
negativos da institucionalidade política e da mobilização social, o que pode
dar uma impressão de desesperança, ou de inutilidade, quanto à mensagem que
elas gostariam que fosse, finalmente, incorporada ao ideário brasileiro do
desenvolvimento nacional: o das liberdades econômicas, o da redução do papel do
Estado e da promoção concomitante do papel da iniciativa privada, da
concorrência sadia, da abertura econômica e da liberalização comercial, como as
formas mais adequadas para justamente fazer o país avançar.
Uma sombra de desesperança, quando não de desespero, perpassa as mentes
e as vontades mais engajadas nos combates dos dois ou três últimos meses:
alguma intenção de abandonar o combate intelectual, projetos de abandonar o
país, retraimento em áreas de exclusivo interesse pessoal, enfim, retirada do
campo de batalha e abandono do terreno de lutas que sempre foi o nosso: não
necessariamente a liça eleitoral, mas o esforço didático de educação política,
de esclarecimento econômico, de defesa da lógica e da promoção do raciocínio
inteligente na exposição, análise e divulgação de pontos de vista que se
identificam com uma visão liberal, libertária, em todo caso de democracia
avançada e de regimes de mercados como os mais consentâneos com a construção de
um país progressista, avançado no plano das liberdades individuais e
comprometido, tanto quanto outras correntes, com a redução de iniquidades
sociais e de falta de oportunidades para os menos contemplados com riqueza
pessoal ou familiar.
Não somos poucos, mas certamente somos minoria, pelos tempos que correm.
Mas, se tivermos certeza da validade de nossas ideias, do acertado de nossas
propostas, da adequação de nossos projetos aos ideais de um mundo livre e de um
Brasil mais próspero, não podemos recuar no combate intelectual. Constituímos,
no presente, uma espécie de quilombo de resistência intelectual contra ideias e
propostas aparentemente dominantes, mas que sabemos contraditórias ou mesmo
retrógradas em relação aos valores e princípios de organização social,
econômica e do trabalho produtivo, que caberia imprimir a setores mais vastos
da sociedade brasileira para retomar um curso mais virtuoso de desenvolvimento
com plena defesa das liberdades individuais e coletivas no Brasil
contemporâneo.
Não vamos nos desmobilizar: combateremos à sombra – no duplo sentido
analógico e metafórico – mas combateremos, reorganizando nossas forças,
examinando o panorama após a batalha, e traçando novas estratégias e novos
princípios táticos para melhor posicionar nossas ideias – como diria um
especialista em publicidade – com vistas a conquistar mais terreno nos espaços
que são os nossos: estes são, basicamente, de inteligência, de trabalho
analítico, de esforço didático e de continuidade no nosso próprio esforço de
aprofundamento do estudo das questões teóricas, dos problemas do Brasil e da
região, da discussão em torno de propostas factíveis de melhorias gradativas
num país que escolheu, temporariamente pelo menos, mais distribuir do que
produzir.
Esse esforço não é em vão, e não será inútil, pois ele corresponde
exatamente às nossas vantagens comparativas, às nossas qualidades de
pesquisadores, aos nossos projetos de vida e ao nosso engajamento no terreno do
debate de ideias em prol de um país mais avançado. Momentaneamente, estamos
submergidos pelas hordas de hunos e de visigodos, que destruirão um pouco mais
dos valores acadêmicos que tanto prezamos e que tanto procuramos defender,
contra o culto da ignorância e da crua prepotência antiliberal, mas a escuridão
não é completa, nem está ela destinada a durar para sempre. Persistiremos em
nosso quilombo, que aos poucos vai se alargar à medida em que consigamos
propagar nossas luzes, com base unicamente na razão prática e na lógica bem
fundamentada.
Este é justamente o momento de se fazer um balanço completo das razões e
das causas do triunfo das nulidades, e da nossa própria derrota, para traçar um
programa de trabalho, de estudos e de discussões, que focalize as questões mais
relevantes da atualidade brasileira e internacional. Dispomos de ferramentas
analíticas para tanto e de instrumentos operacionais para persistir nessa
missão intelectual. Vou me dedicar a estudos de maior profundidade, a trabalhos
de maior consistência empírica, mas não pretendo abandonar a arena do debate
público e da apresentação de propostas, sempre quando minhas vantagens
comparativas se revelarem úteis nesse tipo de trabalho. Não esmorecer é a
palavra do momento; redobrar os esforços é um projeto decidido.
Allons, enfants, a aldeia continua resistindo...
Hartford, 26 de outubro de 2014.
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