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sábado, 17 de dezembro de 2022

Lima Barreto torceria pela Argentina? - Maria Salete Magnoni (Outras Palavras)

 

Lima Barreto torceria pela Argentina?

Parte da torcida argentina chama nossos jogadores de macaquitos, ofensa racista que remonta a 1920 – e fator apontado para sempre agourar los hermanos. Mas o escritor negro desconstrói o insulto – e ajuda a destravar o grito: vai Argentina!

Imagem: Arte Revista CULT

Assim que ficou definido que as seleções da Argentina e França disputarão a final da Copa do Mundo 2022, no próximo domingo, teve início, principalmente nas redes sociais, um acalorado debate sobre para qual país os brasileiros devem torcer. Arquirrivais no futebol torcedores brasileiros e argentinos não economizam nas ofensas e insultos mútuos, por isso muitos entre nós vão torcer pela França. Todavia há os que argumentam que torcer pelo país vizinho, nosso parceiro comercial e aliado político, é um gesto de reconhecimento da necessária integração sul-americana, e também de pertencimento à América Latina.

Do outro lado, além da dor de cotovelo de ver a Argentina novamente em uma final de Copa do Mundo, conquista que o Brasil não vive há 20 anos, uma das alegações para que não torçamos pela vitória do time argentino é de que eles são racistas e nos chamam de macaquitos. Sem minorar o comportamento de parte da torcida argentina, temos que nos lembrar que o racismo no futebol, infelizmente, ainda é uma constante, tanto no mundo, como no Brasil e que “incidentes de discriminação racial ainda são comuns nos estádios, assim como restrita presença de negros fora das quatro linhas, nos cargos de treinadores ou nas direções dos principais clubes do Brasil.”[1]

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O insulto, do qual os brasileiros se ressentem, e com razão, teve origem a partir de uma charge, que representava os nossos jogadores como macacos, publicada em 1920, pelo jornal sensacionalista argentino La crítica, quando o time brasileiro voltando do 4º Campeonato sul-americano de futebol, realizado no Chile, passou pela Argentina para jogar um amistoso com a sua seleção. Os ecos do incidente se fizeram sentir em 1921, pois o torneio que daria origem à Copa América seria realizado no país vizinho; o jornal carioca Correio da Manhã publicou, em setembro daquele ano, que a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) estaria discutindo não enviar jogadores negros ao certame. O impasse foi levado ao então presidente da República, Epitácio Pessoa, que decidiu pela exclusão dos atletas negros, o que fez com que craques como Arthur Friendenreich que foi o autor do gol que deu o primeiro título internacional à seleção brasileira, em 1919, ao derrotar o Uruguai no 3º Campeonato sul-americano de futebol, ficasse de fora.

Charge no jornal argentino La Crítica, em 1920.

O escritor Lima Barreto, arguto observador do cotidiano político e social do Brasil do seu tempo, e que muito combateu o racismo, do qual também era alvo, comentou de maneira ácida e irônica o veto de Epitácio Pessoa na crônica Bendito footbal, publicada na Revista Careta em 01/10/1921:

“Foi sua resolução de que gente tão ordinária e comprometedora não deveria figurar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, acrescentou, não se precisava saber que tínhamos no Brasil semelhante esterco humano […]. A providência, conquanto perspicazmente eugênica e científica, traz no seu bojo ofensa a uma fração muito importante, quase a metade, da população do Brasil […]. P.S – A nossa vingança é que os argentinos não distinguem, em nós, as cores; todos nós, para eles, somos macaquitos.”

Entretanto outra foi sua atitude ao tomar conhecimento, em 1920, da charge publicada no  jornal La crítica, utilizando-se do recurso do humor escreveu a crônica Macaquitos, que pode ser lida como uma refinada provocação aos discursos de superioridade racial vigentes à época, pois ao considerar o macaco, devido à sua inteligência e esperteza, superior aos demais animais, descontruiu a intenção desumanizadora do periódico argentino, combateu a discriminação racial, imprimiu leveza a um tema denso e de quebra, ainda hoje, nos faz rir. Que seja esse o espírito a presidir as torcidas no domingo. E da parte da autora deste breve comentário: #VamosArgentina!

Macaquitos, por Lima Barreto

Um jornal ou semanário de Buenos Aires, quando uma équipe brasileira de football, de volta do Chile, onde fora disputar um campeonato internacional, por lá passou, pintou-a como macacos. A cousa passou desapercebida, devido ao atordoamento das festas do Rei Alberto; mas, se assim não fosse, estou certo de que haveria irritação em todos os ânimos.

Precisamos nos convencer de que não há nenhum insulto em chamar-nos de macacos. O macaco, segundo os zoologistas, é um dos mais adiantados exemplares da série animal; e há mesmo competências que o fazem, senão pai, pelo menos primo do homem. Tão digno “totem” não nos pode causar vergonha. A França, isto é, os franceses são tratados de galos e eles não se zangam com isto; ao contrário: o galo gaulês, o chantecler, é motivo de orgulho para eles.

Entretanto, quão longe está o galo, na escala zoológica, do macaco! Nem mamífero é! Quase todas as nações, segundo lendas e tradições, têm parentesco ou se emblemam com animais. Os russos nunca se zangaram por chamá-los de ursos brancos; e o urso não é um animal tão inteligente e ladino como o macaco. Vários países, como a Prússia e a Áustria, põem nas suas bandeiras águias; entretanto, a águia, desprezando a acepção pejorativa que tomou entre nós, não é lá animal muito simpático.

A Inglaterra tem como insígnias animais o leopardo e o unicórnio. Digam-me agora os senhores: o leopardo é um animal muito digno? A Bélgica tem leões ou leão nas suas armas; entretanto, o leão é um animal sem préstimo e carniceiro. O macaco – é verdade – não tem préstimo; mas é frugívoro, inteligente e parente próximo do homem. Não vejo motivos para zanga, nessa história dos argentinos chamar-nos de macacos, tanto mais que, nas nossas histórias populares, nós demonstramos muita simpatia por esse endiabrado animal.

Crônica publicada na revista Careta, em 23/10/1920.  Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/11-textos-dos-autores/789-lima-barreto-macaquitos. Acesso em: 15 dez.2022.


[1] CARVALHO, Marcelo Medeiros. O negro no futebol Brasileiro: inserção e racismo. Disponível em: http://movimentoar.com.br/o-negro-no-futebol-brasileiro-insercao-e-racismo/. Acesso em: 15.dez.2022.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

China, a nova globalização e o Brasil pasmado - Diego Paugasso (Bonifácio)

 O autor é um especialista na temática do pós-Guerra Fria, com os vieses ideológicos que são típicos na academia. Importante são as informações objetivas sobre os avanços materiais e os progressos econômicos e sociais realizados pela China nas últimas décadas. 

Descarto completamente as considerações iniciais sobre a "imposição de políticas neoliberais" pelos EUA a outros países, "fragilizando suas estruturas industriais", pois isso não faz nenhum sentido, sendo apenas o reflexo dessa animosidade ideológica contra um inexistente "neoliberalismo", típico na retórica de acadêmicos progressistas. Descarto igualmente as considerações finais sobre a nova Guerra Fria e suas consequências geopolíticas, pois são meras especulações de quem se dedica ao assunto, mas atua nessa questão como astrólogo amador.

Como sempre afirmei, meu blog serve para debates inteligentes a partir de coisas relevantes, e esta matéria preenche vários dos meus requisitos, mas me preservo quanto ao direito de formular observações e comentários iniciais ao que posto.

Paulo Roberto de Almeida 

China, a nova globalização e o Brasil pasmado

Nova potência ascendente, China aposta em novos arranjos geopolíticos, fora dos domínios dos EUA e em tecnologias transformadoras. Momento é histórico, similar ao declínio dos impérios europeus, mas diplomacia brasileira fecha os olhos

Em esforço para compreender em profundidade a China, Outras Palavras publica série de textos do cientista político e geógrafo brasileiro Diego Pautasso, que estuda o país asiático há 15 anos. Uma entrevista com o autor pode ser vista aqui.


O artigo a seguir foi publicado originalmente no site Bonifácio.
Leia todos os artigos da série


Para fechar a série, abordaremos o panorama recente da história das relações internacionais, de forma a iluminar os atuais descaminhos da ordem global. Inicialmente, é preciso destacar que os EUA conseguiram consolidar sua hegemonia após as Guerras Mundiais, a partir da conformação das estruturas de poder vigentes ainda hoje no âmbito multilateral. E, apesar da bipolaridade e rivalidade com a URSS no período da Guerra Fria, os interesses de Washington triunfaram em escala internacional.

Com o colapso do campo soviético, abriram-se margens para a ascensão de narrativas marcadas mais por desejos do que pela objetividade analítica. Tanto os discursos do ‘fim da história’ e do mundo unipolar ignoravam tendências à multipolarização; quanto aqueles que anunciavam o recorrente declínio dos EUA – desde a década de 1970 – ignoravam seu persistente poder econômico e geopolítico.

Dessa forma, o desaparecimento da URSS permitiu a Washington potencializar seus interesses em escala global, ao menos num primeiro momento. De um lado, reafirmou a imposição das políticas neoliberais a diversos desses polos ascendentes, cujo resultado foi a fragilização de parte de seus parques industriais, o estreitamento dos direitos sociais, a eclosão de recorrentes crises financeiras e a potencialização das instabilidades político-institucional. De outro, redefiniu os parâmetros de suas escaladas intervencionistas a partir da agenda de combate ao terrorismo e ao fundamentalismo e/ou sob pretexto de defesa da democracia, do meio ambiente, do livre mercado e dos direitos humanos. Sem falar nas contumazes instrumentalizações de embargos e sanções econômicas, intervenções militares “humanitárias” ou políticas de regime change e revoluções coloridas – novas formas para as velhas práticas de covert actions e golpes de Estado.

Em 2018, a China ultrapassou os Estados Unidos e tornou-se o primeiro país do mundo em número de patentes registradas.

O que os entusiastas da unipolaridade não esperavam era o irrefreável e avassalador processo de desenvolvimento chinês, com importantes desdobramentos geoeconômicos e geopolíticos. Embora o PIB per capita estadunidense ainda seja bastante superior ao chinês, em 2050, segundo a PwC, a China terá nada menos do que 20% do PIB mundial medido em PPP, ante 12% dos EUA. Em termos de produção manufatureira, a China já responde por 28% da manufatura global, tão grande quanto a dos EUA, do Japão e da Alemanha juntos. Em função do peso da sua economia, a China é a principal parceira comercial de 130 países do mundo – o que suscita progressivo efeito gravitacional.

Em 2019, na condição de segunda maior economia do mundo em PIB nominal, a China (U$S 14,1 trilhões) já correspondia a quase Japão, Alemanha, Índia e Reino Unido juntos, com somatório de U$S 14,7 trilhões. Graças ao seu desempenho, a economia chinesa tem contribuído com cerca de 25 a 35% do crescimento mundial na última década (o dobro da participação dos EUA). A China tem 40% do mercado global de contêineres (ante 18% dos EUA), e 7 dos 10 principais portos marítimos mundiais (o maior dos EUA é o de Los Angeles, o 17º). Alguns dados são ainda mais surpreendentes: a China usou mais cimento entre 2011 e 2013 do que os EUA em todo o século XX. Em 2019, a China produziu 996,3 milhões de toneladas de aço bruto, enquanto os EUA produziram 87,9 milhões. O mercado chinês tem ainda uma classe média de cerca de 350 milhões de pessoas (maior que a dos EUA desde 2015), em franco processo de expansão.

e-commerce chinês deste ano detém números quase quatro vezes maiores do que o estadunidense. Também neste ano, a China está chegando à marca de 900 milhões de usuários de Internet. E são mais de 35 mil km de trens de alta velocidade cortando o país, além de uma notável modernização infraestrutural. Em 2018, a China superou os EUA em número de patentes registradas, e já forma anualmente cerca de quatro vezes mais profissionais nas áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática do que seu rival. A trajetória explicita os ritmos e volumes distintos e superiores com os quais a China vem liderando outros tantos segmentos – como destacamos no artigo sobre inovações em energias sustentáveis.

Assim, a China tem atuado para reformar e/ou influenciar as estruturas hegemônicas introduzidas, construídas e potencializadas historicamente sob a liderança de Washington, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC). E, simultaneamente, Pequim tem promovido novos arranjos econômicos multilaterais, tais como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) dos BRICS e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB); o Sistema de Pagamento Internacional da China, alternativo ao Swift; o China UnionPay, ao invés das bandeiras Visa e Master, e o Centro de Avaliação de Crédito Universal, em detrimento a Moodys ou Standard & Poors; áreas comerciais como a Parceria Regional Abrangente, entre outras. Nesse mesmo sentido, o governo chinês move-se na direção da concertação diplomática, equalizando instrumentos tais como os BRICS, a Organização da Cooperação de Xangai (OCX), o Fórum de Bao para a Ásia e, sobretudo, a Nova Rota da Seda – a mais acabada demonstração do que chamamos de projeto chinês de globalização, alternativo ao paradigma do Consenso de Washington. 

Voltando à história. Mais do que refletir a existência de um mundo bipolar, a Guerra Fria foi também o período de consolidação da hegemonia internacional estadunidense, sob a égide de uma estratégia de contenção ao polo rival socialista, anti-sistêmico. Cada vez mais, os noticiários e analistas ressuscitam o termo, mencionando a existência de uma Nova Guerra Fria. São sabidas as diferenças e semelhanças entre um e outro contexto. É nítido que a URSS e os EUA não detinham a sinergia econômico-comercial bilateral que têm hoje China e EUA; a competição técnico-produtiva não era tão aguda; os blocos possuíam maior coesão político-ideológica (não obstante as fraturas existentes em ambos, como ilustram os casos das relações da URSS com a Iugoslávia, a Albânia e a China). Por outro lado, as semelhanças também são importantes: as duas superpotências, apesar das assimetrias, eram dirigidas por forças políticas que reivindicavam, antagonicamente, o capitalismo e o socialismo; e as disputas entre os dois pólos eram travadas de forma mais clara em terceiros cenários.

Importa notar, pois, que o recrudescimento da retórica anti-chinesa – acirrada com o recente discurso de Mike Pompeo sobre A China Comunista e o Futuro do Mundo Livre – ajuda a iluminar a direção das contradições que se desenham. Ele instou “uma luta entre o mundo livre e a tirania”, e acusou o Partido Comunista Chinês de ser um “opressor nacional” e um “agente internacional desonesto”. Ora, são translúcidos certos elementos de continuidade: a China é, indiferentemente do debate acerca do quão anti-sistêmico é seu modelo, um país desafiante da hegemonia estadunidense, e comandado por um Partido Comunista de tradições marxistas-leninistas. Nesse sentido, os EUA replicam a lógica de contenção como forma de coesionar seus aliados e evitar a expansão do rival. Em suma, a Guerra Comercial, o apoio aos movimentos separatistas na China, o cerco militar, etc. fazem parte de um conjunto mais amplo de ações que obedecem a essa coerência sistêmica.   

É auto-evidente, contudo, que a história não se replica. Desde o final da década de 1960, a China abandonou a antiga política de fomento às revoluções socialistas em terceiros países, ainda que mantenha importantes laços ideológicos com os Estados nacionais onde o socialismo orienta as políticas governamentais. A ênfase da inserção internacional chinesa recai exatamente no pragmatismo, no respeito ao princípio da não-intervenção em assuntos domésticos de outras nações e, mais contemporaneamente, na busca da promoção das chamadas relações win-win. Afinal, diferentemente da URSS, Pequim tem conseguido, como já demonstrado, fazer frente aos competidores nas searas científico-tecnológica e econômico-comercial. Por paradoxal que pareça, a instrumentalização de conflitos internos de terceiros países, as ações voltadas à mudança de regimes políticos e a obstrução das ferramentas de concertação política multilaterais partem exatamente dos EUA, visando impedir o fortalecimento do gigante asiático.

Em suma, o fato é que se configura um período de transição sistêmica, prenhe de contradições. Para além da competição sino-estadunidense, está em curso uma profunda reorganização produtivo-tecnológica e civilizacional, com certos movimentos disruptivos precipitados pelo inesperado panorama da pandemia. E é nesse cenário complexo em que devemos pensar o papel a ser cumprido pelo Brasil.

Inicialmente, algumas lições são importantes: no começo do século XX, o Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, percebeu o deslocamento da hegemonia global dos braços da Grã-Bretanha para os dos EUA, e por isso estabeleceu a chamada aliança não-escrita com Washington, crucial para a potencialização de nossa autonomia e interesses nacionais à época. Já durante o ciclo desenvolvimentista, entre a Revolução de 1930 e a década de 1980, o Brasil adentrou seu mais notável período de modernização, sustentando um paradigma de inserção internacional sem alinhamento automático, apesar da interação privilegiada com os EUA.

Na atualidade, contudo, não se pode negar a condição de potência ascendente da China, tampouco o fato de que o principal eixo da economia mundial se desloca, progressivamente, para a Ásia Oriental. Ora, se foi Geisel, no ápice da bipolaridade, quem reatou com Pequim, colocando os interesses nacionais acima das preferências ideológicas, cabe ao Brasil de hoje se movimentar de forma a tirar o melhor proveito da competição sino-estadunidense.

O estabelecimento de um alinhamento automático com a potência declinante e a internalização de polarizações de uma Nova Guerra Fria contribuem apenas para dividir artificialmente o país e turvar a necessária concretização dos interesses nacionais de longo alcance. Resta, pois, a formatação de uma política externa compatível com as demandas, capacidades e responsabilidades de um país da envergadura do Brasil, moldando seus rumos em prol do desenvolvimento e da soberania nacionais. E sem compreendermos as nuances da atual encruzilhada sistêmica e o papel da China no mundo, dificilmente alcançaremos tal empreendimento.

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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

China, a nova globalização e o Brasil pasmado - Diego Pautasso (Outras Palavras)

O autor é um especialista na temática do pós-Guerra Fria, com os vieses ideológicos que são típicos na academia. Importante são as informações objetivas sobre os avanços materiais e os progressos econômicos e sociais realizados pela China nas últimas décadas. 

Descarto completamente as considerações iniciais sobre a "imposição de políticas neoliberais" pelos EUA a outros países, "fragilizando suas estruturas industriais", pois isso não faz nenhum sentido, sendo apenas o reflexo dessa animosidade ideológica contra um inexistente "neoliberalismo", típico na retórica de acadêmicos progressistas. Descarto igualmente as considerações finais sobre a nova Guerra Fria e suas consequências geopolíticas, pois são meras especulações de quem se dedica ao assunto, mas atua nessa questão como astrólogo amador.

Como sempre afirmei, meu blog serve para debates inteligentes a partir de coisas relevantes, e esta matéria preenche vários dos meus requisitos, mas me preservo quanto ao direito de formular observações e comentários iniciais ao que posto.

Paulo Roberto de Almeida 

China, a nova globalização e o Brasil pasmado

Nova potência ascendente, China aposta em novos arranjos geopolíticos, fora dos domínios dos EUA e em tecnologias transformadoras. Momento é histórico, similar ao declínio dos impérios europeus, mas diplomacia brasileira fecha os olhos

Em esforço para compreender em profundidade a China, Outras Palavras publica série de textos do cientista político e geógrafo brasileiro Diego Pautasso, que estuda o país asiático há 15 anos. Uma entrevista com o autor pode ser vista aqui.


O artigo a seguir foi publicado originalmente no site Bonifácio.
Leia todos os artigos da série


Para fechar a série, abordaremos o panorama recente da história das relações internacionais, de forma a iluminar os atuais descaminhos da ordem global. Inicialmente, é preciso destacar que os EUA conseguiram consolidar sua hegemonia após as Guerras Mundiais, a partir da conformação das estruturas de poder vigentes ainda hoje no âmbito multilateral. E, apesar da bipolaridade e rivalidade com a URSS no período da Guerra Fria, os interesses de Washington triunfaram em escala internacional.

Com o colapso do campo soviético, abriram-se margens para a ascensão de narrativas marcadas mais por desejos do que pela objetividade analítica. Tanto os discursos do ‘fim da história’ e do mundo unipolar ignoravam tendências à multipolarização; quanto aqueles que anunciavam o recorrente declínio dos EUA – desde a década de 1970 – ignoravam seu persistente poder econômico e geopolítico.

Dessa forma, o desaparecimento da URSS permitiu a Washington potencializar seus interesses em escala global, ao menos num primeiro momento. De um lado, reafirmou a imposição das políticas neoliberais a diversos desses polos ascendentes, cujo resultado foi a fragilização de parte de seus parques industriais, o estreitamento dos direitos sociais, a eclosão de recorrentes crises financeiras e a potencialização das instabilidades político-institucional. De outro, redefiniu os parâmetros de suas escaladas intervencionistas a partir da agenda de combate ao terrorismo e ao fundamentalismo e/ou sob pretexto de defesa da democracia, do meio ambiente, do livre mercado e dos direitos humanos. Sem falar nas contumazes instrumentalizações de embargos e sanções econômicas, intervenções militares “humanitárias” ou políticas de regime change e revoluções coloridas – novas formas para as velhas práticas de covert actions e golpes de Estado.

Em 2018, a China ultrapassou os Estados Unidos e tornou-se o primeiro país do mundo em número de patentes registradas.

O que os entusiastas da unipolaridade não esperavam era o irrefreável e avassalador processo de desenvolvimento chinês, com importantes desdobramentos geoeconômicos e geopolíticos. Embora o PIB per capita estadunidense ainda seja bastante superior ao chinês, em 2050, segundo a PwC, a China terá nada menos do que 20% do PIB mundial medido em PPP, ante 12% dos EUA. Em termos de produção manufatureira, a China já responde por 28% da manufatura global, tão grande quanto a dos EUA, do Japão e da Alemanha juntos. Em função do peso da sua economia, a China é a principal parceira comercial de 130 países do mundo – o que suscita progressivo efeito gravitacional.

Em 2019, na condição de segunda maior economia do mundo em PIB nominal, a China (U$S 14,1 trilhões) já correspondia a quase Japão, Alemanha, Índia e Reino Unido juntos, com somatório de U$S 14,7 trilhões. Graças ao seu desempenho, a economia chinesa tem contribuído com cerca de 25 a 35% do crescimento mundial na última década (o dobro da participação dos EUA). A China tem 40% do mercado global de contêineres (ante 18% dos EUA), e 7 dos 10 principais portos marítimos mundiais (o maior dos EUA é o de Los Angeles, o 17º). Alguns dados são ainda mais surpreendentes: a China usou mais cimento entre 2011 e 2013 do que os EUA em todo o século XX. Em 2019, a China produziu 996,3 milhões de toneladas de aço bruto, enquanto os EUA produziram 87,9 milhões. O mercado chinês tem ainda uma classe média de cerca de 350 milhões de pessoas (maior que a dos EUA desde 2015), em franco processo de expansão.

e-commerce chinês deste ano detém números quase quatro vezes maiores do que o estadunidense. Também neste ano, a China está chegando à marca de 900 milhões de usuários de Internet. E são mais de 35 mil km de trens de alta velocidade cortando o país, além de uma notável modernização infraestrutural. Em 2018, a China superou os EUA em número de patentes registradas, e já forma anualmente cerca de quatro vezes mais profissionais nas áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática do que seu rival. A trajetória explicita os ritmos e volumes distintos e superiores com os quais a China vem liderando outros tantos segmentos – como destacamos no artigo sobre inovações em energias sustentáveis.

Assim, a China tem atuado para reformar e/ou influenciar as estruturas hegemônicas introduzidas, construídas e potencializadas historicamente sob a liderança de Washington, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC). E, simultaneamente, Pequim tem promovido novos arranjos econômicos multilaterais, tais como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) dos BRICS e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB); o Sistema de Pagamento Internacional da China, alternativo ao Swift; o China UnionPay, ao invés das bandeiras Visa e Master, e o Centro de Avaliação de Crédito Universal, em detrimento a Moodys ou Standard & Poors; áreas comerciais como a Parceria Regional Abrangente, entre outras. Nesse mesmo sentido, o governo chinês move-se na direção da concertação diplomática, equalizando instrumentos tais como os BRICS, a Organização da Cooperação de Xangai (OCX), o Fórum de Bao para a Ásia e, sobretudo, a Nova Rota da Seda – a mais acabada demonstração do que chamamos de projeto chinês de globalização, alternativo ao paradigma do Consenso de Washington. 

Voltando à história. Mais do que refletir a existência de um mundo bipolar, a Guerra Fria foi também o período de consolidação da hegemonia internacional estadunidense, sob a égide de uma estratégia de contenção ao polo rival socialista, anti-sistêmico. Cada vez mais, os noticiários e analistas ressuscitam o termo, mencionando a existência de uma Nova Guerra Fria. São sabidas as diferenças e semelhanças entre um e outro contexto. É nítido que a URSS e os EUA não detinham a sinergia econômico-comercial bilateral que têm hoje China e EUA; a competição técnico-produtiva não era tão aguda; os blocos possuíam maior coesão político-ideológica (não obstante as fraturas existentes em ambos, como ilustram os casos das relações da URSS com a Iugoslávia, a Albânia e a China). Por outro lado, as semelhanças também são importantes: as duas superpotências, apesar das assimetrias, eram dirigidas por forças políticas que reivindicavam, antagonicamente, o capitalismo e o socialismo; e as disputas entre os dois pólos eram travadas de forma mais clara em terceiros cenários.

Importa notar, pois, que o recrudescimento da retórica anti-chinesa – acirrada com o recente discurso de Mike Pompeo sobre A China Comunista e o Futuro do Mundo Livre – ajuda a iluminar a direção das contradições que se desenham. Ele instou “uma luta entre o mundo livre e a tirania”, e acusou o Partido Comunista Chinês de ser um “opressor nacional” e um “agente internacional desonesto”. Ora, são translúcidos certos elementos de continuidade: a China é, indiferentemente do debate acerca do quão anti-sistêmico é seu modelo, um país desafiante da hegemonia estadunidense, e comandado por um Partido Comunista de tradições marxistas-leninistas. Nesse sentido, os EUA replicam a lógica de contenção como forma de coesionar seus aliados e evitar a expansão do rival. Em suma, a Guerra Comercial, o apoio aos movimentos separatistas na China, o cerco militar, etc. fazem parte de um conjunto mais amplo de ações que obedecem a essa coerência sistêmica.   

É auto-evidente, contudo, que a história não se replica. Desde o final da década de 1960, a China abandonou a antiga política de fomento às revoluções socialistas em terceiros países, ainda que mantenha importantes laços ideológicos com os Estados nacionais onde o socialismo orienta as políticas governamentais. A ênfase da inserção internacional chinesa recai exatamente no pragmatismo, no respeito ao princípio da não-intervenção em assuntos domésticos de outras nações e, mais contemporaneamente, na busca da promoção das chamadas relações win-win. Afinal, diferentemente da URSS, Pequim tem conseguido, como já demonstrado, fazer frente aos competidores nas searas científico-tecnológica e econômico-comercial. Por paradoxal que pareça, a instrumentalização de conflitos internos de terceiros países, as ações voltadas à mudança de regimes políticos e a obstrução das ferramentas de concertação política multilaterais partem exatamente dos EUA, visando impedir o fortalecimento do gigante asiático.

Em suma, o fato é que se configura um período de transição sistêmica, prenhe de contradições. Para além da competição sino-estadunidense, está em curso uma profunda reorganização produtivo-tecnológica e civilizacional, com certos movimentos disruptivos precipitados pelo inesperado panorama da pandemia. E é nesse cenário complexo em que devemos pensar o papel a ser cumprido pelo Brasil.

Inicialmente, algumas lições são importantes: no começo do século XX, o Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, percebeu o deslocamento da hegemonia global dos braços da Grã-Bretanha para os dos EUA, e por isso estabeleceu a chamada aliança não-escrita com Washington, crucial para a potencialização de nossa autonomia e interesses nacionais à época. Já durante o ciclo desenvolvimentista, entre a Revolução de 1930 e a década de 1980, o Brasil adentrou seu mais notável período de modernização, sustentando um paradigma de inserção internacional sem alinhamento automático, apesar da interação privilegiada com os EUA.

Na atualidade, contudo, não se pode negar a condição de potência ascendente da China, tampouco o fato de que o principal eixo da economia mundial se desloca, progressivamente, para a Ásia Oriental. Ora, se foi Geisel, no ápice da bipolaridade, quem reatou com Pequim, colocando os interesses nacionais acima das preferências ideológicas, cabe ao Brasil de hoje se movimentar de forma a tirar o melhor proveito da competição sino-estadunidense.

O estabelecimento de um alinhamento automático com a potência declinante e a internalização de polarizações de uma Nova Guerra Fria contribuem apenas para dividir artificialmente o país e turvar a necessária concretização dos interesses nacionais de longo alcance. Resta, pois, a formatação de uma política externa compatível com as demandas, capacidades e responsabilidades de um país da envergadura do Brasil, moldando seus rumos em prol do desenvolvimento e da soberania nacionais. E sem compreendermos as nuances da atual encruzilhada sistêmica e o papel da China no mundo, dificilmente alcançaremos tal empreendimento.

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domingo, 7 de julho de 2019

Outras Palavras: o último reduto dos socialistas utópicos? - leituras edificantes

Em meio a tantas bobagens dos derradeiros defensores do socialismo em nossa imprensa alternativa, o que nos faz sorrir de ver quanto tanta tinta e papel (como aos tempos de Marx), ou quantos bits and bytes, em nossa época, se continua a verter em defesa de causas indefensáveis, pode-se sempre ter boas surpresas, como as "chinesices" brasileiras, trazidas pelos Portugueses que também tinham um enclave no gigante asiático, aliás por 500 anos, e que ainda vai perdurar numa autonomia ilusória até 2049, ainda que Macau nunca tenha tido, como Hong Kong, uma verdadeira autonomia em relação aos desejos da corte em Beijing.
Também tem um artigo que faria corar de vergonha qualquer militante da UNE, sobre a submissão de Paulo Guedes aos "mercados", esse demônio eterno dos anti-mercadistas, socialistas ou não, keynesianos ou cepalianos radicais, como é o caso do meu colega Samuel Pinheiro Guimarães. Poucas vezes li coisas de um simplismo tão vulgar, e de um maniqueísmo tão atroz.
No mais, é a cantilena habitual contra os mercados, os acordos "globalistas", como essa entre a União Europeia e o Mercosul, que os socialistas esperam ardentemente que os ecologistas cumpram suas promessas de destruição, e várias outras bobagens de tamanho família ou em volume reduzido.
Como digo sempre, eu leio de tudo, da extrema esquerda à extrema direita, com muitas bobagens pelo caminho. Sempre procurando aprender, mesmo por vias traversas ou equivocadas como a maior parte dos textos aqui presentes.
Quem não tiver nada a fazer num domingo de inverno, pode se divertir, criticamente, com a leitura de alguns textos aqui apresentados a partir do boletim de Outras Palavras...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7 de julho de 2019

Europa-Mercosul: o acordo de Recolonização
Nada assegura que o pré-compromisso de “livre” comércio assinado em 28/6 torne-se realidade um dia. Se assim for, haverá retrocesso secular. Felizmente, já se anuncia resistência — e não apenas na América do Sul
Por Antonio Martins
Socialismo, utopia inviável?
Paradoxo: há pós-capitalismo latente no Big Datae na Inteligência Artificial. Agora, tornou-se possível superar o mercado e planejar a produção de modo democrático, sem o peso da burocracia estatal. Desta brecha surgirá uma das disputas centrais no século XXI
Por Eleutério F. S. Prado
A esquerda volta a pensar além do capital
Surpresa: nos EUA e Inglaterra, uma nova geração de economistas rejeita a ideia de adaptar-se ao sistema e formula projetos opostos à ditadura das corporações e das finanças. Quem são eles? Que ambiente político favorece esta ousadia?
Por Andy Beckett
O (humaníssimo) Direito ao Reparo
Contra a alienação e a obsolescência programada surge uma reivindicação prosaica, mas cheia de sentido. É preciso recobrar o poder de consertar os aparatos que se danificam -- ao invés de descartá-los e afundar no consumismo
Por Valerie Vande Panne
Sanções, arma brutal de um império em apuros
Enfraquecidos diplomaticamente, EUA apelam a sua supremacia financeira e naval para submeter países “desobedientes”. Lista, pouco conhecida, inclui Irã, Venezuela e mais 18. Ilegal, ação mata dezenas de milhares -- mas é cada vez mais ineficaz
Por Medea Benjamin e Nicolas J. S. Davies
Um “liberal” à moda Pinochet
Paulo Guedes é o ministro do ataque à Previdência, da destruição da indústria e da submissão aos EUA. Mas é também o ex-assessor da ditadura chilena que aprendeu a esconder este projeto por trás de gritos em defesa da família, da moral e dos costumes
Um ensaio de Samuel Pinheiro Guimarães
O crime hediondo de Moro, Dallagnol & Companhia
Em parábola do país contemporâneo, papagaio da Disney encontra um Rio diferente do que apresentou ao mundo e aos próprios brasileiros. Há ufanismo e malandros românticos -- mas também a desigualdade brutal que a idealização oculta
Uma crônica de Gabriel Bayarri
Uma resposta popular à gentrificação
Nos EUA, uma cooperativa de trabalhadores, ameaçada pela alta dos alugueis, enfrenta a especulação de forma instigante. Em rede, e por meio de fundo solidário, conseguiu comprar um prédio e transformá-lo em moradias e comércios populares
Por Oscar Perry Abello
“Chinesices”, traço oculto de nossa história colonial
Em pelo menos 30 cidades brasileiras há influência da China na arte e arquitetura. Trazidas pelo portugueses, obras vão além do exotismo, comungam sagrado e profano e inspiraram escritores como Guimarães Rosa e Cora Coralina
Por Sílvio Reis
Previdência, o retrato de um país desigual -- e cruel
84% dos aposentados e pensionistas recebem menos de 2 salários -- os grandes privilegiados, para Paulo Guedes. Enquanto isso, governo dá tratamento VIP a bancos: vista grossa com sonegação, perdão de dívidas e isenção fiscal em seus lucros obscenos
Por Paulo Kliass