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sábado, 17 de dezembro de 2022

Lima Barreto torceria pela Argentina? - Maria Salete Magnoni (Outras Palavras)

 

Lima Barreto torceria pela Argentina?

Parte da torcida argentina chama nossos jogadores de macaquitos, ofensa racista que remonta a 1920 – e fator apontado para sempre agourar los hermanos. Mas o escritor negro desconstrói o insulto – e ajuda a destravar o grito: vai Argentina!

Imagem: Arte Revista CULT

Assim que ficou definido que as seleções da Argentina e França disputarão a final da Copa do Mundo 2022, no próximo domingo, teve início, principalmente nas redes sociais, um acalorado debate sobre para qual país os brasileiros devem torcer. Arquirrivais no futebol torcedores brasileiros e argentinos não economizam nas ofensas e insultos mútuos, por isso muitos entre nós vão torcer pela França. Todavia há os que argumentam que torcer pelo país vizinho, nosso parceiro comercial e aliado político, é um gesto de reconhecimento da necessária integração sul-americana, e também de pertencimento à América Latina.

Do outro lado, além da dor de cotovelo de ver a Argentina novamente em uma final de Copa do Mundo, conquista que o Brasil não vive há 20 anos, uma das alegações para que não torçamos pela vitória do time argentino é de que eles são racistas e nos chamam de macaquitos. Sem minorar o comportamento de parte da torcida argentina, temos que nos lembrar que o racismo no futebol, infelizmente, ainda é uma constante, tanto no mundo, como no Brasil e que “incidentes de discriminação racial ainda são comuns nos estádios, assim como restrita presença de negros fora das quatro linhas, nos cargos de treinadores ou nas direções dos principais clubes do Brasil.”[1]

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O insulto, do qual os brasileiros se ressentem, e com razão, teve origem a partir de uma charge, que representava os nossos jogadores como macacos, publicada em 1920, pelo jornal sensacionalista argentino La crítica, quando o time brasileiro voltando do 4º Campeonato sul-americano de futebol, realizado no Chile, passou pela Argentina para jogar um amistoso com a sua seleção. Os ecos do incidente se fizeram sentir em 1921, pois o torneio que daria origem à Copa América seria realizado no país vizinho; o jornal carioca Correio da Manhã publicou, em setembro daquele ano, que a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) estaria discutindo não enviar jogadores negros ao certame. O impasse foi levado ao então presidente da República, Epitácio Pessoa, que decidiu pela exclusão dos atletas negros, o que fez com que craques como Arthur Friendenreich que foi o autor do gol que deu o primeiro título internacional à seleção brasileira, em 1919, ao derrotar o Uruguai no 3º Campeonato sul-americano de futebol, ficasse de fora.

Charge no jornal argentino La Crítica, em 1920.

O escritor Lima Barreto, arguto observador do cotidiano político e social do Brasil do seu tempo, e que muito combateu o racismo, do qual também era alvo, comentou de maneira ácida e irônica o veto de Epitácio Pessoa na crônica Bendito footbal, publicada na Revista Careta em 01/10/1921:

“Foi sua resolução de que gente tão ordinária e comprometedora não deveria figurar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, acrescentou, não se precisava saber que tínhamos no Brasil semelhante esterco humano […]. A providência, conquanto perspicazmente eugênica e científica, traz no seu bojo ofensa a uma fração muito importante, quase a metade, da população do Brasil […]. P.S – A nossa vingança é que os argentinos não distinguem, em nós, as cores; todos nós, para eles, somos macaquitos.”

Entretanto outra foi sua atitude ao tomar conhecimento, em 1920, da charge publicada no  jornal La crítica, utilizando-se do recurso do humor escreveu a crônica Macaquitos, que pode ser lida como uma refinada provocação aos discursos de superioridade racial vigentes à época, pois ao considerar o macaco, devido à sua inteligência e esperteza, superior aos demais animais, descontruiu a intenção desumanizadora do periódico argentino, combateu a discriminação racial, imprimiu leveza a um tema denso e de quebra, ainda hoje, nos faz rir. Que seja esse o espírito a presidir as torcidas no domingo. E da parte da autora deste breve comentário: #VamosArgentina!

Macaquitos, por Lima Barreto

Um jornal ou semanário de Buenos Aires, quando uma équipe brasileira de football, de volta do Chile, onde fora disputar um campeonato internacional, por lá passou, pintou-a como macacos. A cousa passou desapercebida, devido ao atordoamento das festas do Rei Alberto; mas, se assim não fosse, estou certo de que haveria irritação em todos os ânimos.

Precisamos nos convencer de que não há nenhum insulto em chamar-nos de macacos. O macaco, segundo os zoologistas, é um dos mais adiantados exemplares da série animal; e há mesmo competências que o fazem, senão pai, pelo menos primo do homem. Tão digno “totem” não nos pode causar vergonha. A França, isto é, os franceses são tratados de galos e eles não se zangam com isto; ao contrário: o galo gaulês, o chantecler, é motivo de orgulho para eles.

Entretanto, quão longe está o galo, na escala zoológica, do macaco! Nem mamífero é! Quase todas as nações, segundo lendas e tradições, têm parentesco ou se emblemam com animais. Os russos nunca se zangaram por chamá-los de ursos brancos; e o urso não é um animal tão inteligente e ladino como o macaco. Vários países, como a Prússia e a Áustria, põem nas suas bandeiras águias; entretanto, a águia, desprezando a acepção pejorativa que tomou entre nós, não é lá animal muito simpático.

A Inglaterra tem como insígnias animais o leopardo e o unicórnio. Digam-me agora os senhores: o leopardo é um animal muito digno? A Bélgica tem leões ou leão nas suas armas; entretanto, o leão é um animal sem préstimo e carniceiro. O macaco – é verdade – não tem préstimo; mas é frugívoro, inteligente e parente próximo do homem. Não vejo motivos para zanga, nessa história dos argentinos chamar-nos de macacos, tanto mais que, nas nossas histórias populares, nós demonstramos muita simpatia por esse endiabrado animal.

Crônica publicada na revista Careta, em 23/10/1920.  Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/11-textos-dos-autores/789-lima-barreto-macaquitos. Acesso em: 15 dez.2022.


[1] CARVALHO, Marcelo Medeiros. O negro no futebol Brasileiro: inserção e racismo. Disponível em: http://movimentoar.com.br/o-negro-no-futebol-brasileiro-insercao-e-racismo/. Acesso em: 15.dez.2022.

domingo, 19 de junho de 2022

Uma visita ao país dos Bruzundangas - Lima Barreto (trecho)

OS BRUZUNDANGAS

Lima Barreto

Editora Brasiliense, S. Paulo, 1956
Organizado sob a direção de Francisco de Assis Barbosa, com a colaboração de Antonio Houaiss e M. Cavalcante Proença.

Trecho: 

(...) 

IV

 

A Política e os Políticos da Bruzundanga

 

 

A minha estada na Bruzundanga foi demorada e proveitosa. O país, no dizer de todos, é rico, tem todos os minerais, todos os vegetais úteis, todas as condições de riqueza, mas vive na miséria. De onde em onde, faz uma“parada” feliz e todos respiram. As cidades vivem cheias de carruagens; as mulheres se arreiam de jóias e vestidos caros; os cavalheiros chics se mostram, nas ruas, com bengalas e trajos apurados; os banquetes e as recepções se sucedem.

Não  amanuense do Ministério do Exterior de  que não ofereça banquetes por ocasião de sua promoção ao cargo imediato.

Isto dura dous ou três anos; mas, de repente, todo esse aspecto da Bruzundanga muda. Toda a gente começa a ficar na miséria. Não há mais dinheiro. As confeitarias vivem às moscas; as casas de elegâncias põem à porta verdadeiros recrutadores de fregueses; e os judeus do açúcar e das casas de prego começam a enriquecer doidamente.

Por que será tal cousa? hão de perguntar.

É que a vida econômica da Bruzundanga é toda artificial e falsa nas suas bases, vivendo o país de expedientes.

Entretanto, o povo  acusa os políticos, isto é, os seus deputados, os seus ministros, o presidente, enfim.

O povo tem em parte razão. Os seus políticos são o pessoal mais medíocre que há. Apegam-se a velharias, a cousas estranhas à terra que dirigem, para achar solução às dificuldades do governo.

A primeira cousa que um político de lá pensa, quando se guinda às altas posições, é supor que é de carne e sangue diferente do resto da população.

O valo de separação entre ele e a população que tem de dirigir faz-se cada vez mais profundo. A nação acaba não mais compreendendo a massa dos dirigentes, não lhe entendendo estes a alma, as necessidades, as qualidades e as possibilidades.

Em face de um país com uma população  numerosa em relação ao território ocupado efetivamente na Bruzundanga, os seus políticos só pedem e proclamam a necessidade de introduzir milhares e milhares de forasteiros.

Dessa maneira, em vez de procurarem encaminhar para a riqueza e para o trabalho a população que já está, eles, por meio de capciosas publicações, mentirosas e falsas, atraem para a nação uma multidão de necessitados cuja desilusão, após certo tempo de estadia, mais concorre para o mal-estar do país.

Bossuet dizia que o verdadeiro fim da política era fazer os povos felizes; o verdadeiro fim da política dos políticos da Bruzundanga é fazer os povos infelizes.

 

(...)

 

 

terça-feira, 25 de maio de 2021

140 Anos de Lima Barreto - Lilia Moritz Schwartz (Companhia das Letras)

Preciso incluir um dos livros de Lima Barreto em minha série de "clássicos revisitados", ou Policarpo Quaresma, ou o Homem que Sabia Javanês, que tem a ver bem mais com a diplomacia...

Paulo Roberto de Almeida 

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Recordações do Escrivão Isaías Caminha", de Lima Barreto, analisado por Arnaldo Godoy

EMBARGOS CULTURAIS

As recordações do escrivão Isaías Caminha e a literatura como registro da história


No caminho para o Rio de Janeiro, saltando do trem, Isaías Caminha, na expectativa de ser servido de café e bolo em um bar da estação, vê um rapaz alourado ser servido antes dele. Isaías foi preterido por sua cor, ainda que tivesse o dinheiro necessário para a compra da merenda. Ferido pelo contraste, curtiu uma raiva muda, que por pouco não virou em pranto. Essa passagem, muito provavelmente autobiográfica, é um dos núcleos do romance "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", o primeiro publicado por Lima Barreto.
Há duas partes relativamente distintas nesse belíssimo livro. Na primeira parte, o narrador relata que o jovem Isaías decide tentar a vida no Rio de Janeiro, descreve a viagem, os primeiros dias (cheios de dificuldades), alcançando o momento no qual começa a trabalhar no jornal. O tema do racismo parece ser o ponto mais forte nessa primeira sessão. Na segunda parte, o narrador descreve a vida de Isaías na redação. Cuida-se, nesse passo, de uma fortíssima crítica à imprensa brasileira da época. Pode-se pensar que se tratam de dois livros. Há, no entanto, um ponto em comum que salta aos olhos do leitor atento: Lima Barreto está em todo lugar.
O enredo é simples e bem engendrado. Retornando para o interior, e escrivão no Espírito Santo, Isaías registrou suas memórias. Isaías era escrivão na pomposa Coletoria Federal de Caxambi. Um promotor havia deixado uma revista no cartório. Na revista havia um artigo que explorava o tema da eugenia, da seleção racial, um dos assuntos centrais do século XIX. Vale, nesse ponto, a leitura de "O espetáculo das raças", de autoria de Lilia Moritz Schwartz, a biógrafa de Lima Barreto. Os dois livros se completam, aos quais pode se acrescentar "Retrato em branco e preto", da mesma autora. Essa movimentação recente de destruição de estátuas radica, de algum modo, em reação (tardia) a esse imenso problema que não pode ser negligenciado. Está em jogo algo mais forte do que a titularidade para a narrativa histórica.
O problema era também o Nina Rodrigues, professor na Faculdade de Medicina na Bahia, que em "As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil" defendeu códigos penais distintos, cuja aplicabilidade atenderia, entre outros quesitos, a cor da pele. Um código para brancos, outro para negros. Há um quadro de Modesto Brocos y Gómez, denominado "A Redenção de Cam", de 1895, que revela essa obsessão com um "branqueamento da população". João Batista Lacerda, médico no Rio de Janeiro, também defendeu enfaticamente essa tese, participando, inclusive, de um congresso sobre branqueamento de raças, realizado em Londres, em 1911.
Isaías pretendia rebater esses argumentos. O sonho de Isaías era ser doutor, e por isso deixou o interior. Estudaria na capital. Observou que se fosse doutor resgataria o pecado original de seu nascimento humilde, "amaciaria o suplício premente, cruciante e omnímodo" de sua cor. Queria ser doutor. Acrescentava que o título era mágico, que tinha "poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos". Esperava receber cumprimentos do tipo "Doutor, como passou?", "Doutor, como está?" Teria prerrogativas, direitos especiais, privilégios. Além do que, "teria direito a prisão especial e não precisava saber nada".
Na parte na qual narra sua vida no jornal, tem-se um roman a clef, isto é, personagens reais são escondidos sob pseudônimos. Lima Barreto bateu forte no jornal O Globo. Foi muito duro com o escritor João do Rio, que no livro é referido como mistura de "suíno e símio". João do Rio é o personagem Raul Gusmão. Ao que consta, em uma carta ao crítico José Veríssimo, Lima Barreto argumentava que o romance era atemporal e que aqueles personagens existiam em todos os jornais, em todos os tempos. Não sei, há muita coisa que pode passar despercebida para o leitor contemporâneo, o que faria desse livro uma obra datada. Porém, inegável, os tipos que revela transcendem no tempo e, por isso, concedo, com razão nosso escritor.
Em "Recordações do escrivão Isaías Caminha", Lima Barreto explorou a desilusão com a Justiça, um tema que lhe era recorrente. Em dado momento registrou que "a polícia do Brasil só serve fazer vingança, mais nada". Combateu o bacharelismo, o preconceito racial e o desencanto com a política. Tratou do patriotismo ingênuo, assunto que retomou com vigor no "Triste fim do Policarpo Quaresma". O positivismo é também objeto de sua violenta crítica. Lima convivia com militares, trabalhava no Ministério da Guerra. O meio militar havia abraçado o positivismo como ideologia. Benjamin Constant Botelho de Magalhães, professor na escola militar, era o campeão da causa. O lema da bandeira era de inspiração e autoria positivistas.
Lima foi implacável com o poder da imprensa. Jornalistas que se perceberam no romance hostilizaram o escritor fluminense. Na pessoa de Lobo, o consultor gramatical do jornal, Lima castigou os puristas da gramática. Nesse ponto, convergia com as opiniões de Monteiro Lobato. A diplomacia e a violência policial, a par do sistema eleitoral então vigente, também foram objeto de duras observações.
A galeria de personagens é muito rica. O narrador é o próprio escrivão Isaías Caminha. O pai era inteligente e ilustrado, que o "estimulava pela obscuridade de suas exortações", o que corresponde, biograficamente, ao pai de Lima Barreto. Isaías ama a mãe, mas dela se afasta e dela se descola. Lembra que o espetáculo do saber de seu pai, realçado pela ignorância de sua mãe e de outros parentes dela, surgia a seus olhos como um deslumbramento. A professora primária é Dona Ester, que pode realmente ter sido uma professora que o ensinou. Na primeira parte do livro há ainda o Felício, formado em Farmácia, o tio Valentim (que era carteiro) e o Coronel Belmiro. O Doutor Castro é o deputado que tudo promete, mas que nada cumpre: o pistolão que lhe faltou. Quando partiu para o Rio, com uma carta de recomendação, tinha certeza de que sua situação estaria garantida, que obteria rapidamente um emprego, que iria às aulas e que em seis anos seria doutor. Enganou-se completamente.
Na segunda parte, tem-se um passeio pelo Rio de Janeiro do início do século XX. Há um jornalista com nome russo (Ivan Gregorovitch Rostóloff). Na delegacia, há um delegado que destratou Isaías. O narrador sentiu-se ferido pela atitude do policial, que o acusou de furto. Julgava que o delegado era um representante do governo, da administração jurídica de seus direitos no Brasil e "como tal, insistia, merecia um tratamento mais respeitoso". Há o dono do jornal, o Doutor Ricardo. Abelardo é o poeta e revolucionário. O Pacheco é o redator-chefe do jornal. Antonio Galo, o charadista. Pilar de Giralda, a contista erótica.
Pelo registro, "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" é um livro de história. Como afirmou um grande crítico (Carpeaux), a história não se faz com armas. A história não é o teatro dos generais e dos diplomatas. A verdadeira história passa despercebida, tranquilamente, no centro da alma humana. Contando o que viu, e o que viveu, Lima Barreto torna-se agente desse registro histórico, ainda que não o faça tranquilamente, justamente porque, nesse mundo de poucos originais e de muitas cópias, fazia parte daquele grupo para o qual a história maldosamente negava oportunidades e condições de superação.

domingo, 17 de maio de 2020

Policarpo Quaresma, o D. Quixote nacional - Arnaldo Godoy

EMBARGOS CULTURAIS

A biblioteca nacionalista de Policarpo Quaresma



O escritor Lima Barreto é um injustiçado. Um triste visionário, na percepção de recente biografia lançada pela historiadora e antropóloga Lilia Maria Schwartz. Que livro! Lima Barreto era um homem do trópico com alguma coisa de russo dos gelos em sua vocação para escrever romances ao mesmo tempo sociais e introspectivos, na alusão de Gilberto Freyre, um insuspeito, para esse tipo de assunto. Lima Barreto viveu em contexto de frustração, de falta de reconhecimento, de preconceito racial, situações existenciais que talvez o induziram ao alcoolismo, que o levou à morte, no mesmo hospital onde seu pai estava internado, pela mesma razão, morrendo os dois — pai e filho — com a distância de alguns dias. Na verdade, pode-se pensar no triste fim de Lima Barreto. Muito triste.
O Triste Fim de Policarpo Quaresmaé provavelmente seu livro mais conhecido. Penso que o Policarpo é um Dom Quixote nacional. O Policarpo era um idealista, acreditava no país. Porém, não se dava conta de que tudo e de que todos desdenhavam qualquer projeto nacional sério e genuíno. Era um nacionalista diferente de alguns que há hoje, e que por vezes assumem um nacionalismo de intimidação e de desconsideração para com a ciência e para com qualquer pensamento mais sério.
O nacionalismo era um traço da personalidade do Policarpo, enquanto muitos hoje se dizem nacionalistas, em vários lugares do mundo, justamente por uma completa ausência de resquícios de personalidade. É um nacionalismo tampão. Um nacionalismo bovino, ao qual o Policarpo opunha um nacionalismo de ação e de esperança, ainda que muitas vezes exagerado, a exemplo do esforço para que o tupi fosse a língua nacional, em substituição ao português falado no Brasil.
O nacionalismo do Policarpo era honesto, por vezes ingênuo, mas sempre comprometido com a busca de soluções factíveis e razoáveis para o enfrentamento de nossos problemas. Era um nacionalismo marcado pelo afeto e pela esperança. Não pregava a violência, e nem propagava a ignorância. Pelo contrário, indignava-se com a guerra interna. E estudou com afinco, sempre, alternativas para saúvas, péssimas colheitas, fome e miséria. O Policarpo lia, e lia muito, e entendia o que lia. O problema é que não havia como transformar tanta leitura em realidade. É o eterno problema dos quixotes.
Lima Barreto opôs com o Policarpo as propostas formalistas e europeizantes da época, centradas em autores como Gustavo Barroso, Alberto Torres e Coelho Neto. Queriam fazer do Brasil um apêndice da Europa. É a velha imagem do índio de Alencar, para quem um índio poderia ser um europeu de tacape e sunga. Nacionalismo, patriotismo, eleições a bico de pena, loucura, bacharelismo, preconceito, burocracia e injustiça são os temas centrais do Triste fim de Policarpo Quaresma.
Segundo Lima Barreto, a biblioteca do Policarpo assentava-se em estantes de ferro, perto de 10, com quatro prateleiras. Havia também pequenas prateleiras, para os livros menores. Era mais do que uma coleção de livros. Era uma homenagem ao país no qual acreditava. Na sessão de livros de ficção e de poesia o Policarpo reunia apenas autores nacionais ou reconhecidamente brasileiros: Bento Teixeira (Prosopopeia), Gregório de Matos, Basílio da Gama, Santa Rita Durão, Joaquim Manoel de Macedo, Gonçalves Dias.
O Policarpo tinha todos os livros do José de Alencar, que foi quem nos explicou o Brasil, do índio ao gaúcho, no singular mesmo. Quem entende do José de Alencar é o Lira Neto, seu grande biógrafo contemporâneo (O Inimigo do Rei). Na biblioteca do Policarpo tinha-se o cânone bem comportado de uma literatura bem comportada que descrevia o Brasil bem comportadamente, com exceção do Gregório de Matos, o boca do inferno, talvez. Quem entende do Gregório de Matos é Ana Miranda, que nos deixou um delicioso romance histórico centrado nessa figura que misturava o diabólico com o serafínico, se possível essa conformação. Não havia livros do Padre Vieira na biblioteca do Policarpo. Quem entende do Padre Vieira é o Alcir Pécora (Teatro do Sacramento), um estudo essencial sobre a unidade teológico-retórico-política do grande sermonista.
A sessão de História do Brasil era completa. Havia todos os cronistas que de algum modo explicaram as singularidades de nossa terra. Estavam todos: Gabriel Soares, Pero de Magalhães Gandavo, Frei Vicente do Salvador, Armitage, o Padre Manoel Aires do Casal, Pereira da Silva, Handelmann (um alemão que escreveu nossa história, Geschichte von Brasilien), Melo Morais, Capistrano de Abreu (o cearense não poderia faltar), Southey, Varnhagen. O Policarpo lia em línguas estrangeiras também.
O Policarpo também colecionou (e leu) os viajantes que descreveram o Brasil. Havia nessa sessão o Hans Staden (o alemão que quase foi engolido pelos índios), o Jean de Léry, o Saint-Hilaire, o Martius, o Príncipe de Neuwied, o John Mawe, o von Eschwege, o Agassiz, Couto de Magalhães. E havia ainda Darwin (que esteve no Brasil e que se horrorizou com a escravidão), Freycinet, Cook e Bougainville. Lima Barreto nos conta que o Policarpo também tinha o livro de Pigafetta, um cronista que narrou a viagem de Fernão de Magalhães.
O Policarpo de igual modo possuía dicionários, manuais, enciclopédias e compêndios, em vários idiomas. Livros que chamamos de referência e que Lima Barreto a eles se refere como livros subsidiários. Não havia livros de Direito, talvez poque copiávamos o que europeus escreviam. Bibliotecas (reais ou imaginárias) compõem de forma definitiva uma biografia de seu proprietário, ou de seu utente. É o que se percebe na descrição que Lima Barreto fez da biblioteca do Policarpo Quaresma. Descreva-me tua biblioteca, e direi quem és.
 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

Revista Consultor Jurídico, 17 de maio de 2020, 8h01

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Ricardo Bergamini recupera Os Bruzundangas, de Lima Barreto

O Brasil roda eternamente dentro do círculo, mas nunca sai do círculo (Ricardo Bergamini).
Prezados Senhores

Sugiro leitura do resumo da obra póstuma de Lima Barreto “Os Bruzundangas”, publicado em 1923, onde fica provado, de forma cabal e irrefutável, que o Brasil vive hoje exatamente no mesmo ponto histórico em que viveu o autor. É assustador!  

Os Bruzundangas, de Lima Barreto

Os Bruzundangas, publicado em 1923, é obra póstuma de Lima Barreto. Uma coletânea de crônicas, onde o autor com a percepção aguda e crítica, não deixa escapar nada. Satiriza uma fictícia nação onde ele mesmo teria residido. Seus capítulos enfocam, entre outros temas, a diplomacia, a Constituição, transações e propinas, os políticos e eleições em Bruzundanga. Critica os privilégios da nobreza, o poder das oligarquias rurais, a futilidade das sanguessugas do erário, desigualdades, saúde e educação tratadas com desdém, enfim, mazelas parecidas às de um país real. Ao lê-lo, tem-se impressão de que o escritor não se fez arauto de seu tempo; o Brasil é que patinou nos descaminhos de si.

Com malandrice carioca e estilo ágil, próximo da caricatura e zombaria, o afro-brasileiro Lima Barreto é mestre da ficção de escárnio. Nas raízes do imaginário país grassam oportunistas, apaniguados, retrógrados e escravocratas de quatro costados. Sobre os usos e costumes das autoridades, escreve que não atendem às necessidades do povo, tampouco lhe resolvem os problemas. Cuidam de enriquecer e firmar a situação dos descendentes e colaterais. Diz: não há homem influente que não tenha parentes e amigos ocupando cargos de Estado; não há doutores da lei e deputados que não se considerem no direito de deixar aos filhos, netos, sobrinhos e primos gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. Enquanto isto, a população é escorchada de impostos e vexações fiscais; vive sugada para que parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios e aposentadorias duplicados, triplicados, afora os rendimentos que vêm de outras e quaisquer origens.

Ao presidente de Bruzundanga, que deve ser um deslumbrado e completo idiota, chamam-no "Manda-chuva"; à justiça, "Chicana". A Carta Magna redigida por espertos (e não expertos) explicita um providencial adendo: toda a vez que um artigo ferir interesses de parentes de pessoas da ‘situação’ ou de membros dela, fica entendido que não tem aplicação. No fundo, todos flertam com a "situação" porque ela garante o continuísmo. À plebe desmemoriada e ignorante, pra que não fique gritando viva o doutor Clarindo!, viva o doutor Carlindo!, viva o doutor Arlindo! – quando o verdadeiro nome do doutor é Gracindo, criou-se a "Guarda do Entusiasmo", constituída de dez mil indicados sem concurso, uniformizados "de povo", com função de disciplinar e reorientar as aclamações e vivas da multidão.

Muito mais é Bruzundanga em seus cânones sócio-políticos, religiosos e culturais, e no atraso visceral – conforme se lê no prefácio – de uma nata enquistada no canibalismo simbólico da "Arte de Furtar": os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões.

No primeiro capítulo de Os Bruzundangas, Lima Barreto critica a superficialidade e o preciosismo da literatura parnasiana, além da linguagem misteriosa e mística do Simbolismo. Cita ainda um verso do poeta Worspikt em que há a repetição da consoante "L" (aliteração), recurso chamado no livro de "harmonia imitativa".

No capítulo "Um Grande Financeiro", Lima Barreto critica os economistas incompetentes e contraditórios da Bruzundanga, através do personagem caricatural Felixhimino Ben Karpatoso.

"Bruzundangas" é um substantivo feminino que pode significar "palavreado confuso, mistura de coisas imprestáveis, mixórdia, trapalhada, embrulhada". Neste livro, Lima Barreto fala da arte de furtar, de nepotismos desenfreados, de favorecimentos e privilégios. A própria sociedade, as eleições, a religião, os literatos e a imprensa são cáusticamente abordados por ele e servem de pano de fundo para a construção de sua obra literária.

O livro é um diário de viagem de um brasileiro que morou tempos na Bruzundanga, conheceu sua literatura, a escola samoieda (falsa, monótona e afastada da cultura, com autores fúteis e aconchavados com a classe dominante); sua economia confusa que exauri a riqueza do país, sendo dominada pelos cafeeiros da província de Kaphet.

Mostra também a obsessão por títulos como os de nobreza e os de doutor, mesmo quando seus possuidores não são nobres e são pouco letrados. A seguir critica a legislação (a Constituição, baseada na de um país visitado por Gulliver, tem uma lei que diz que se a lei não for conveniente a situação ela não é válida), a política (os presidentes, chamados Mandachuvas, assim como os ministros, os heróis e os deputados, são estúpidos e vazios), o processo democrático (tão corrupto quanto era na República Velha), a ciência, o resto da cultura (quase nula, por vezes perto do negativo), o exército e a política internacional.

Lima Barreto fala de dois tipos de nobreza existentes na Bruzundanga: a nobreza doutoral e a que ele chama "de palpite". A primeira é formada pelos doutores, os que têm diploma de nível superior. Lima Barreto diz que a sociedade em geral valoriza extremamente os doutores. No final do capítulo referente à nobreza doutoral, ele expõe uma escala de valores dos cursos de nível superior, os dois mais valorizados são o de Medicina e o de Direito, respectivamente.

Repleto de caricaturas de personagens da vida política da época, como Venceslau Brás e o Barão de Rio Branco, o livro é uma crítica ferina a sociedade brasileira, sua literatura e sua organização político- econômica.


Ricardo Bergamini

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Lima Barreto: Policarpo Quaresma (extrato)

(...)
Durante os lazeres burocráticos, estudou, mas estudou a Pátria, nas suas riquezas naturais, na sua história, na sua geografia, na sua literatura e na sua política. Quaresma sabia as espécies de minerais, vegetais e animais que o Brasil continha; sabia o valor do ouro, dos diamantes exportados por Minas, as guerras holandesas, as batalhas do Paraguai, as nascentes e o curso de todos os rios.
Defendia com azedume e paixão a proeminência do Amazonas sobre todos os demais rios do mundo. Para isso ia até ao crime de amputar alguns quilômetros ao Nilo e era com este rival do "seu" rio que ele mais implicava. Ai de quem o citasse na sua frente! Em geral, calmo e delicado, o major ficava agitado e malcriado, quando se discutia a extensão do Amazonas em face da do Nilo.
Havia um ano a esta parte que se dedicava ao tupi-guarani. Todas as manhãs, antes que a "Aurora, com seus dedos rosados abrisse caminho ao louro Febo", ele se atracava até ao almoço com o Montoya, Arte y diccionario de la lengua guaraní ó más bien tupí, e estudava o jargão caboclo com afinco e paixão.
Na repartição, os pequenos empregados, amanuenses e escreventes, tendo notícia desse seu estudo do idioma tupiniquim, deram não se sabe por que em chamá-lo — Ubirajara.
Certa vez, o escrevente Azevedo, ao assinar o ponto, distraído, sem reparar quem lhe estava às costas, disse em tom chocarreiro: "Você já viu que hoje o Ubirajara está tardando?"
Quaresma era considerado no arsenal: a sua idade, a sua ilustração, a modéstia e honestidade de seu viver impunham-no ao respeito de todos.
Sentindo que a alcunha lhe era dirigida, não perdeu a dignidade, não prorrompeu em doestos e insultos.
Endireitou-se, concertou o pince-nez, levantou o dedo indicador no ar e respondeu: —Senhor Azevedo, não seja leviano. Não queira levar ao ridículo aqueles que trabalham em silêncio, para a grandeza e a emancipação da Pátria.
(...)
Leiam a íntegra aqui: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000159.pdf

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Especies diplomaticas exogenas - Lima Barreto

Recebido de um leitor fiel, e apreciador de meu post sobre as espécies diplomáticas (ver mais abaixo): 


"O ideal de todo e qualquer natural da Bruzundanga é viver fora do país. Pode-se dizer que todos anseiam por isso; e, como Robinson, vivem nas praias e nos morros, à espera do navio que os venha buscar.

"Para eles, a Bruzundanga é tida como país de exílio ou mais do que isso: como uma ilha de Juan Fernández, onde os humanos perdem a fala, por não terem com quem conversar e não poderem entender o que dizem os pássaros, os animais silvestres e mesmo as cabras semi-selvagens.

"Um dos meios de que a nobreza doutoral lança mão para safar-se do país, é obter empregos diplomáticos ou consulares, em falta destes os de adidos e “encostados” às legações e consulados.
(...)
"Mas, como lhes contava, os nobres doutores tratam logo de representar o país em terras estranhas.
Não fazem questão de lugar. Seja no Turquestão ou na Groenlândia, eles aceitam os cargos diplomáticos.
A um, perguntei:
— Mas tu vais mesmo para o Anam?
— Por que não? Não há lá mulheres?

O sonho do jovem diplomático não é ser Talleyrand; é ser Don Juan para uso externo.
Ia até bastante satisfeito, disse-me em seguida, porquanto, lá, não se distinguindo bem a mulher anamita do homem, devia acontecer surpresas bem agradáveis com semelhante 'engano d’arma ledo e cego'."
(...)

in: Lima Barreto,
OS BRUZUNDANGAS