O Brasil roda eternamente dentro do círculo, mas nunca sai do círculo (Ricardo Bergamini).
Prezados Senhores
Sugiro leitura do resumo da obra póstuma de Lima Barreto “Os Bruzundangas”, publicado em 1923, onde fica provado, de forma cabal e irrefutável, que o Brasil vive hoje exatamente no mesmo ponto histórico em que viveu o autor. É assustador!
Os Bruzundangas, de Lima Barreto
Os Bruzundangas, publicado em 1923, é obra póstuma de Lima Barreto. Uma coletânea de crônicas, onde o autor com a percepção aguda e crítica, não deixa escapar nada. Satiriza uma fictícia nação onde ele mesmo teria residido. Seus capítulos enfocam, entre outros temas, a diplomacia, a Constituição, transações e propinas, os políticos e eleições em Bruzundanga. Critica os privilégios da nobreza, o poder das oligarquias rurais, a futilidade das sanguessugas do erário, desigualdades, saúde e educação tratadas com desdém, enfim, mazelas parecidas às de um país real. Ao lê-lo, tem-se impressão de que o escritor não se fez arauto de seu tempo; o Brasil é que patinou nos descaminhos de si.
Com malandrice carioca e estilo ágil, próximo da caricatura e zombaria, o afro-brasileiro Lima Barreto é mestre da ficção de escárnio. Nas raízes do imaginário país grassam oportunistas, apaniguados, retrógrados e escravocratas de quatro costados. Sobre os usos e costumes das autoridades, escreve que não atendem às necessidades do povo, tampouco lhe resolvem os problemas. Cuidam de enriquecer e firmar a situação dos descendentes e colaterais. Diz: não há homem influente que não tenha parentes e amigos ocupando cargos de Estado; não há doutores da lei e deputados que não se considerem no direito de deixar aos filhos, netos, sobrinhos e primos gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. Enquanto isto, a população é escorchada de impostos e vexações fiscais; vive sugada para que parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios e aposentadorias duplicados, triplicados, afora os rendimentos que vêm de outras e quaisquer origens.
Ao presidente de Bruzundanga, que deve ser um deslumbrado e completo idiota, chamam-no "Manda-chuva"; à justiça, "Chicana". A Carta Magna redigida por espertos (e não expertos) explicita um providencial adendo: toda a vez que um artigo ferir interesses de parentes de pessoas da ‘situação’ ou de membros dela, fica entendido que não tem aplicação. No fundo, todos flertam com a "situação" porque ela garante o continuísmo. À plebe desmemoriada e ignorante, pra que não fique gritando viva o doutor Clarindo!, viva o doutor Carlindo!, viva o doutor Arlindo! – quando o verdadeiro nome do doutor é Gracindo, criou-se a "Guarda do Entusiasmo", constituída de dez mil indicados sem concurso, uniformizados "de povo", com função de disciplinar e reorientar as aclamações e vivas da multidão.
Muito mais é Bruzundanga em seus cânones sócio-políticos, religiosos e culturais, e no atraso visceral – conforme se lê no prefácio – de uma nata enquistada no canibalismo simbólico da "Arte de Furtar": os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões.
No primeiro capítulo de Os Bruzundangas, Lima Barreto critica a superficialidade e o preciosismo da literatura parnasiana, além da linguagem misteriosa e mística do Simbolismo. Cita ainda um verso do poeta Worspikt em que há a repetição da consoante "L" (aliteração), recurso chamado no livro de "harmonia imitativa".
No capítulo "Um Grande Financeiro", Lima Barreto critica os economistas incompetentes e contraditórios da Bruzundanga, através do personagem caricatural Felixhimino Ben Karpatoso.
"Bruzundangas" é um substantivo feminino que pode significar "palavreado confuso, mistura de coisas imprestáveis, mixórdia, trapalhada, embrulhada". Neste livro, Lima Barreto fala da arte de furtar, de nepotismos desenfreados, de favorecimentos e privilégios. A própria sociedade, as eleições, a religião, os literatos e a imprensa são cáusticamente abordados por ele e servem de pano de fundo para a construção de sua obra literária.
O livro é um diário de viagem de um brasileiro que morou tempos na Bruzundanga, conheceu sua literatura, a escola samoieda (falsa, monótona e afastada da cultura, com autores fúteis e aconchavados com a classe dominante); sua economia confusa que exauri a riqueza do país, sendo dominada pelos cafeeiros da província de Kaphet.
Mostra também a obsessão por títulos como os de nobreza e os de doutor, mesmo quando seus possuidores não são nobres e são pouco letrados. A seguir critica a legislação (a Constituição, baseada na de um país visitado por Gulliver, tem uma lei que diz que se a lei não for conveniente a situação ela não é válida), a política (os presidentes, chamados Mandachuvas, assim como os ministros, os heróis e os deputados, são estúpidos e vazios), o processo democrático (tão corrupto quanto era na República Velha), a ciência, o resto da cultura (quase nula, por vezes perto do negativo), o exército e a política internacional.
Lima Barreto fala de dois tipos de nobreza existentes na Bruzundanga: a nobreza doutoral e a que ele chama "de palpite". A primeira é formada pelos doutores, os que têm diploma de nível superior. Lima Barreto diz que a sociedade em geral valoriza extremamente os doutores. No final do capítulo referente à nobreza doutoral, ele expõe uma escala de valores dos cursos de nível superior, os dois mais valorizados são o de Medicina e o de Direito, respectivamente.
Repleto de caricaturas de personagens da vida política da época, como Venceslau Brás e o Barão de Rio Branco, o livro é uma crítica ferina a sociedade brasileira, sua literatura e sua organização político- econômica.
Ricardo Bergamini
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