Retornando de Paris no final de 1995, terra dos antiglobalizadores por excelência, desde sempre, encontrei os primeiros representantes da espécie brasileira entre os simpatizantes do PT, numa época em que ainda não existia o Fórum Social Mundial, mas já se desenhavam as estratégias dos chamados altermundialistas, ou antiglobalizadores, e sua busca por um mundo impossível, no qual a globalização não existiria.
Este foi provavelmente o primeiro artigo que escrevi a respeito, datado de fevereiro de
1996, mas que ficou inédito desde então.
As contradições da antiglobalização:
uma ordem internacional alternativa é
possível ?
Paulo
Roberto de Almeida
Comentando
a conferência pronunciada na Índia pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso
sobre as conseqüências sociais da globalização, o economista e professor da USP
Paul Singer (em artigo publicado nesta Folha em 11.02.96, “O fim forçado das
contradições”), tece algumas considerações sobre o suposto conformismo do
Presidente em relação a propostas alternativas que o Brasil ou outros países poderiam
eventualmente promover para escapar ou minimizar os efeitos nefastos que aquele
processo acarreta. O lado negativo da globalização implica desemprego
crescente, perda de soberania estatal sobre os processos produtivos, ausência
de controle sobre os fluxos financeiros e, de modo geral, uma diminuição do
bem-estar social para amplas camadas da população, quando não para países
inteiros.
O
pressuposto de Singer é o de que o Presidente tenta conciliar a realidade da
globalização, considerada inevitável e incontornável, com os “velhos ideais da
esquerda”, supostamente comprometidos com maior justiça social, objetivos
distributivistas e um controle mais afirmado sobre o capital privado, de
maneira a assegurar o predomínio dos “interesses nacionais” sobre os fins
predominantemente egoístas do capitalismo internacional. Subjacente à sua
argumentação está a idéia de que existe uma categoria de pessoas ou entidades
que “manejam o capital global” ou que “selecionam vantagens comparativas” dos
diversos países de forma a maximizar sua taxa de lucro. Aos países
individualmente não restaria outra opção senão dobrar-se ao “arcabouço
institucional e [ao] quadro regulatório [que] agradam [a]os dirigentes das
grandes corporações”.
Voltamos
assim a um dos mais velhos fantasmas da esquerda, que tende a conceber a ordem
internacional como o resultado intencional de um grupo de países ricos ou de
poderosas corporações multinacionais, organizando a seu bel-prazer - na calada da noite e ao abrigo de
olhares indiscretos, geralmente nos salões acarpetados do mundo desenvolvido - a divisão internacional do trabalho e o
papel que nela devem desempenhar os demais participantes do sistema global. É o
que Marx chamaria de teoria conspiratória da história, ou seja, uma visão que
coloca processos estruturais de largo prazo e de evidente complexidade
intrínseca na dependência da vontade individual ou coletiva de alguns poucos
atores desse atomizado mercado capitalista. Singer afirma, por exemplo, que a
“globalização resultante da contra-revolução liberal do último quarto de século
não precisa ser irreversível”, sem que ele diga exatamente quais seriam os
mecanismos de reversibilidade desse fenômeno que vem se arrastando desde os
tempos em que Marx e Engels escreviam o Manifesto
do Partido Comunista, ou seja 150 anos atrás. Ele acredita ainda que “se
houver vontade política por parte de alguns governos, a globalização poderá [a
afirmação é peremptória] ser reorientada, deixando de estar submetida à
hegemonia do capital privado”. Mais otimisticamente, ele proclama que “sempre
será possível reinstaurar algum controle intergovernamental do movimento
internacional do capital financeiro e produtivo, seja pela ação de um
agrupamento informal de economias poderosas, como o G-7, por exemplo, ou de algum
organismo multilateral, como o FMI ou o Banco Mundial”.
O
Professor Singer não parece ter-se dado conta de que, nos tempos que correm, o
G-7 controla uma parte progressivamente menor das riquezas ou fluxos
financeiros e comerciais do planeta, que sua influência real sobre as
transferências maciças de capital entre as economias chega a ser quase
irrelevante ou que seus dirigentes, em cada encontro anual, estão mais
preocupados com o estado calamitoso das finanças públicas em seus respectivos
países (que influenciam os movimentos cambiais e a especulação contra suas
moedas) do que com a suposta margem de liberdade deixada aos mercados e
capitais privados. O G-7 é apenas uma tentativa (largamente insatisfatória) de
conciliar objetivos internos e interesses nacionais das economias
autoproclamadas mais poderosas e não um diretório internacional do sistema
capitalista que, como Marx ensina, é absolutamente anárquico em suas formas de
organização e distribuição. Singer também não percebeu que os volumes de recursos
manipulados atualmente pelas instituições de Bretton Woods são ridiculamente
pequenos comparados à enormidade dos fluxos transfronteiriços de capital, que
se situam na faixa dos trilhões de dólares. O FMI, por exemplo, jamais teria
conseguido organizar um pacote de ajuda ao México sem os “generosos” fundos
aportados pelo governo dos EUA e é também conhecido que suas disponibilidades
financeiras efetivas para sustentação de programas de ajuste estrutural ou de
desequilíbrios em balanças de pagamentos são notoriamente insuficientes. Quanto
ao Banco Mundial, sua carteira de empréstimos para o conjunto do planeta em
1996 é inferior ao volume de recursos que o BNDES pensa injetar (11 bilhões de
dólares) na economia brasileira neste ano.
Acreditar
que, nessas condições, esses governos ou entidades possam desviar o curso da
globalização e suas exigências implacáveis é uma manifestação exagerada de
otimismo, que não condiz com os dados do problema. O Professor Singer proclama,
ainda assim, que “é mister que a esquerda e o movimento operário desenvolvam
sua alternativa própria para a globalização, não para abolí-la mas para
compatibilizá-la com os interesses das maiorias nacionais”. Curiosa
manifestação de chauvinismo nacional num representante do pensamento marxista,
supostamente comprometido com as virtudes do “internacionalismo proletário” que
Marx empunhava naquele mesmo texto de 1848.
O Manifesto do Partido Comunista, como não
deve ignorar o Professor Singer, é uma espécie de hino em louvor à burguesia
revolucionária e ao poder propriamente avassalador do capitalismo modernizador.
Cabia a este a imensa tarefa -
propriamente revolucionária, na linguagem de Marx - de unificar os modos de produção
arcaicos (feudais, asiáticos, pré-capitalistas, em suma) ainda em vigor em boa
parte do planeta naquele período, aniquilando os “regimes bárbaros” que
impediam a dominação do capital e a constituição de uma classe operária
vigorosa que um dia, chegada à sua maturidade, colocaria em cheque a
apropriação privada dos meios de produção. A esse processo, analisado em
primeira mão por Marx, chamamos hoje eufemisticamente de “globalização”, ou
seja, a homogeneização das condições produtivas pelas forças de mercado e a
circulação irrestrita de bens e serviços num mundo sem fronteiras, quando ele
nada mais é do que a realização final dos processos “inevitáveis” anunciados no
Manifesto de 1848.
É verdade
que o “programa marxista” de unificação do mundo sob as regras do capital foi
interrompido por algumas décadas, seja em virtude de comoções políticas e
militares (guerras “inter-capitalistas” de 1914 e 1939), de crises temporárias
de mercado como a dos anos 30 (que determinaram o fechamento da América Latina
e a aplicação de modelos protecionistas de industrialização) ou ainda de alternativas
“econômicas” ao capitalismo realmente existente, como foi a experiência
leninista de planejamento estatal, aplicada nos modelos soviético e chinês de
coletivização forçada dos meios de produção. Mas, esse curto parêntese
histórico de sete décadas encerrou-se recentemente com a derrocada final do
socialismo, e o capital retoma agora o curso “marxista” da história sem
inimigos aparentes ou alternativas viáveis de organização social da produção.
Para não
eludir o problema real colocado no artigo do Professor Singer, caberiam
portanto algumas perguntas. Existem, efetivamente, alternativas ao capitalismo
“predatório” atualmente em ação nos mais diferentes quadrantes do planeta?
Seria possível, às economias e governos nacionais, subtrair-se individualmente ou
em grupos de países às exigências da competitividade
e do equilíbrio fiscal, convertidos,
como bem salientou Singer, em novos dogmas da política econômica? Haveria
condições de aplicar uma política econômica “não ortodoxa”, como parece
pretender o professor da USP?
As
respostas correm o risco de decepcionar nossos amigos da esquerda, na medida em
que todos os esforços nacionais de adaptação às novas exigências da economia
global parecem ser singularmente cruéis do ponto de vista social e político:
aumento da produtividade do trabalho, diminuição das expectativas de emprego
assegurado, redução de benefícios sociais em face dos enormes desquilíbrios
fiscais enfrentados por todos os governos (desenvolvidos ou em
desenvolvimento), flexibilização, enfim, dos controles governamentais sobre uma
série de variáveis econômicas com vistas à adequação das unidades produtivas e
empresas de serviços ao livre jogo das forças do mercado. Nenhuma ação
individual ou articulada em bases geográficas restritas conseguirá deter a
marcha da unificação planetária sob a égide do capital que, repita-se, não é
governado por nenhuma força conspiratória a serviço de alguns poucos países
dominantes ou de executivos de gigantescas transnacionais. O processo é
impessoal, avassalador e propriamente irrefreável, podendo apenas ser colocado
a serviço de objetivos nacionais de desenvolvimento econômico e social na
medida em que o país se capacita tecnologicamente e em termos organizacionais
(recursos humanos e em know-how) para
poder competir no mercado selvagem que aí está.
Em última
instância, não se trata de afirmar que fora da globalização não há solução, mas
em reconhecer que a saída não está no isolamento soberano em relação às forças
que moldam atualmente o sistema econômico internacional e sim na adaptação
contínua das forças produtivas e das relações de trabalho de um país às novas
condições da ordem internacional. A solução não passa pela diminuição da
interdependência global, mas na crescente inserção do país na economia mundial,
dando-lhe condições de competir vantajosamente nos mercados globais. Essas
condições não são determinadas de fora, mas dependem inteiramente de nossa
própria vontade política em reformar continuamente os processos produtivos e o
sistema educacional do País, sem o que não há esperança de atenuar o impacto
negativo da globalização. Parafraseando Orwell, poderíamos dizer que todos os
países são interdependentes, muito embora alguns sejam mais interdependentes
que outros.
Paulo Roberto de Almeida.
[Brasília,
14/02/1996]