Folha de S. Paulo – O Brasil deve avançar na liberalização do mercado de câmbio? NÃO / Artigo / Paulo Nogueira Batista Júnior
19/10
Paulo Nogueira Batista Júnior
Economista, lançou recentemente o livro ‘O Brasil não cabe no quintal de ninguém’ (ed. LeYa)
Um passo ambicioso para as condições da economia brasileira
Paulo Nogueira Batista Júnior
O
projeto de liberalização cambial apresentado ao Congresso é muito
ambicioso e chega a ser irrealista, pois não condiz com o estágio de
desenvolvimento e a situação da economia do país. O que se propõe é
instituir a livre movimentação de capitais, aumentar a conversibilidade
do real e facilitar a abertura de contas em moeda estrangeira no Brasil.
Valendo-se
de um artifício costumeiro, o Banco Central mistura essas questões
macroeconômicas altamente controvertidas com objetivos válidos como a
modernização e a desburocratização do mercado de câmbio. O desafio,
entretanto, é alcançar esses objetivos meritórios sem fragilizar a
posição internacional brasileira. Não é o que se vê no projeto do
governo federal, que conduzirá, se aprovado, ao aumento da
vulnerabilidade externa e ao risco de dolarização da economia.
As
propostas são apresentadas com o argumento ingênuo de que representam
“alinhamento aos melhores padrões internacionais”, tais como os códigos
de liberalização de capitais da OCDE. Ignora-se o fato elementar de que
regras de política que convêm a países altamente desenvolvidos, como são
em sua grande maioria os membros da OCDE, nem sempre são as que convêm a
países em desenvolvimento como o Brasil. Ignora-se, também, que as
economias emergentes bem-sucedidas são as que disciplinam o movimento de
capitais —China, Índia e outras asiáticas. E que muitos países da
América Latina, ao se aventurarem prematuramente pelo caminho da
liberalização dos movimentos de capital, sofreram episódios de
instabilidade econômica que terminaram por abortar o seu
desenvolvimento.
As
condições da economia brasileira estão longe de permitir passos tão
ambiciosos. A situação fiscal é sabidamente problemática, ainda que não
seja catastrófica, como frequentemente se afirma.
A
dívida pública tem crescido como proporção do PIB, e grande parte da
dívida interna é de prazo curto. Mesmo as contas externas, invocadas
para argumentar que a liberalização não ofereceria riscos, não são tão
invulneráveis quanto se imagina. O déficit do balanço de pagamento em
conta corrente é relativamente baixo, mas tenderá a aumentar quando a
economia se recuperar.
As
reservas internacionais são altas, mas o Brasil não dispõe de um grande
volume de reservas excedentes. Em termos de M2, agregado monetário
usado como proxy para fuga potencial de capitais, as reservas
brasileiras são baixas quando comparadas às de outros países emergentes.
Vale
notar que o discurso das autoridades econômicas tem sido espantosamente
incongruente. O ministro da Economia, Paulo Guedes, vive repetindo que o
Estado brasileiro “quebrou”, “entrou em colapso”, “está insolvente”. Ao
mesmo tempo, o presidente do Banco Central propõe medidas ambiciosas de
liberalização cambial e chega a afirmar que gostaria de ver a
conversibilidade implementada em um prazo de dois a três anos.
A
proposta de ampliar a possibilidade —hoje restrita a segmentos
específicos— de pessoas físicas e jurídicas abrirem contas em moedas
estrangeiras dentro do país é outra ideia infeliz. Sempre houve
resistência no Brasil a seguir esse caminho, que desembocou em elevada
dolarização dos sistemas financeiros na América Latina e em outras
regiões do mundo.
O
que o Banco Central pretende com o projeto de lei é obter carta branca
para aumentar o leque de contas em moeda estrangeira no Brasil,
prometendo conduzir o processo de forma “gradual e prudente”. A promessa
deve ser recebida com cautela pelos parlamentares. Não é recomendável
que um assunto dessa importância seja decidido em circuito fechado por
um grupo de tecnocratas e financistas alojados na direção do Banco
Central e no Conselho Monetário Nacional.
Gustavo Franco
Ex-presidente
do Banco Central (1997-99) e um dos formuladores do Plano Real, é
doutor em economia pela Universidade Harvard e fundador da Rio Bravo
Investimentos
Ideias mudaram após 25 anos de reservas e de moeda estável
Gustavo Franco
Tudo
o que o Banco Central almeja com a iniciativa é correto e meritório,
como se lê em seu website: “favorecer o ambiente de negócios,
particularmente o comércio exterior e a atratividade dos investimentos
estrangeiros, maior desenvolvimento aos mercados financeiro e de
capitais”.
Quem
é contra essa pauta, é ruim da cabeça ou doente do pé. Acho, todavia,
que a maior parte do trabalho de liberalização cambial já estava
praticamente completo em 2006 (lei 11.371, assinada pela trinca
neoliberal Lula-Mantega-Meirelles) quando foi alterada uma lei de 1933
que obrigava os exportadores a internalizarem as divisas que produziam.
Logo
antes tinha havido a unificação dos mercados de câmbio (comercial e
flutuante, e isso não precisou de lei), e na ocasião os dirigentes do
Banco Central circulavam com uma apresentação power point que, no slide
18, dizia “tudo é permitido (desde que haja identificação)”. Tempos
heroicos.
O
histórico detalhado desse percurso está nos capítulos 3 e 4 do meu
livro, “A Moeda e a Lei” (ed. Zahar). Hoje em dia, a televisão não dá
mais a cotação do paralelo, mas até na novela tem merchandising —ou
impulsionamento de conceitos. Pois, então, temos aqui uma pequena
recomendação de leitura.
Bem,
desde os anos 1990 vínhamos enfrentando um problema estético: as
disposições legais sobre moeda estrangeira estavam dispersas em muitas
leis, de várias safras, algumas bem antigas. Nada que prejudicasse a
vigência de uma regulamentação cambial consistente com a globalização,
que se fazia no nível “infralegal”, como dizem os advogados.
Era
um problema de estética legislativa, não de segurança jurídica.
Lembrem-se que existem medidas provisórias, e que tudo que for revogado
agora poderá voltar de um dia para outro em uma canetada. Pois bem, um
projeto de consolidação já tramitava no Congresso desde meados dos anos
1990, ao menos, mas não era a única ideia circulando sobre esse tema.
Lembro
bem do ex-senador Mauro Benevides (CE), pai do atual deputado de mesmo
nome e assessor econômico de Ciro Gomes durante a campanha de 2017. Ele,
o pai, tinha um projeto cujo título era “o estatuto do capital
estrangeiro”. O objetivo era a reforma da lei 4.131/62 (que disciplina a
aplicação do capital estrangeiro e as remessas para o exterior), mas
numa direção imensamente mais restritiva, o contrário do que
pretendíamos.
O
Banco Central nunca quis apoiar o projeto do simpático senador
Benevides, nem nada parecido, ou sobre o mesmo tema, e a razão era
explicada por uma fala bem-humorada do próprio senador, sempre lembrada
no BC: “Se vocês não gostarem do meu projeto, mandem o de vocês. O
relator serei eu mesmo, a gente combina o produto final”, dizia
Benevides.
Na
nossa percepção, a intersecção entre as ambições liberalizantes do BC,
que continuam as mesmas, e as do senador, eram inexistentes.
O
problema hoje não é o projeto do BC —que é bom e se parece com minutas
que eu vi circular nos anos 1990—, mas com o substitutivo do relator,
que vamos conhecer em meses. Se tudo der certo, não haverá retrocesso.
Depois
de um quarto de século de moeda estável e de muitas reservas cambiais,
as ideias sobre câmbio progrediram. Muitos preconceitos arraigados sobre
assuntos cambiais se tornaram obsoletos. Ou não. Tomara que sim, mas
temo que não.
Acharia
mais prudente deixar que o tempo continuasse a operar a sua mágica e
não correria tantos riscos por conta da introdução de contas em dólares
para pessoas físicas. Na época da inflação era assunto explosivo e
desestabilizador. Hoje, me parece assunto velho e inútil, como o limite
de US$ 500 para quem viaja, que está parado há muitos anos (não
confundir com compras free shop, outro assunto velho).