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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Pedro Dutra: biografia de San Tiago Dantas (resenha-apresentação, 2014)

Livros


San Tiago Dantas - a razão vencida.

Resenhas
Valor Econômico de 30.09.2014
As variadas cores da vida política de San Tiago Dantas
 
Por Oscar Pilagallo
 
Revista Veja
          Carlos Graieb
“...Não por descuido, mas por falta de evidências, o livro é menos rico na descrição das atitudes e dos sentimentos do jovem Dantas do que na descrição de seu trabalho intelectual. Nesse ponto, contudo, é uma obra notável. ...”
Revista Veja Edição 2410 – 28 de janeiro de 2015


Editora Singular. 

Apresentação:


O homem, que muitos dizem ser o mais inteligente do Brasil, tem pressa. Assim uma reportagem na revista O Cruzeiro, a maior do País, se referia a San Tiago Dantas em 1960. Mas quem foi, ou melhor, quem é San Tiago Dantas?

Brilhante e precoce, sem dúvida. Líder estudantil aos dezessete anos, aos vinte editor de jornal e teórico fascista, um ano depois professor de Direito, a seguir prócer integralista e crítico do nazismo; catedrático aos vinte e cinco, fundador de duas faculdades e titular de três cátedras antes dos trinta anos e ainda diretor da Faculdade de Filosofia, no Rio de Janeiro. Um ano depois, em 1942, repudia publicamente o Integralismo, defende a declaração de guerra ao Eixo, propõe a união nacional das forças políticas, reunindo os comunistas inclusive, para afirmação de um regime democrático, e em 1945 elabora parecer firmado por seus colegas professores que nega fundamento jurídico à proposta continuísta do ditador Getúlio Vargas. E, explicitamente, defende substituir a propriedade privada pelo trabalho como núcleo de uma ampla reforma social.

A acusação de oportunista não demorou a lhe ser lançada, e será renovada e ampliada dez anos depois. Então, o alvo será o jovem jurisconsulto procurado por grandes empresas nacionais e estrangeiras convertido em banqueiro, que se alia aos trabalhadores ao ingressar no partido que Getúlio criara para abrigá-los; e, no início da década de 1960, ministro do Exterior, recusa-se a sancionar o novo regime cubano e reata relações diplomáticas com a União Soviética. No começo de 1964, depois de no ano anterior tentar controlar, sem êxito, a espiral inflacionária à frente do Ministério da Fazenda, já mortalmente doente, e agônica a República de 1946, tenta sensibilizar as forças partidárias e articulá-las em uma frente ampla de apoio às reformas democráticas para resgatá-las da polarização que já engolfara a política nacional. Em vão: a direita o vê como um trânsfuga, os conservadores como um ingênuo, e a esquerda desacredita os seus propósitos.

E quase todos o veem como o manipulador, senão o malversador de seus dotes intelectuais, que, diziam seus críticos, derramavam uma luz fria, que iluminava mas não aquecia, e justificavam todas as capitulações necessárias a satisfazer a sua premente ambição política. Entre essas capitulações, servir o seu talento à causa populista de líderes sindicais cevados nos cofres públicos e a um vice-presidente, depois presidente da República, cuja inépcia e tolerância com a agitação promovida pelo seu próprio partido teriam precipitado o País no descalabro administrativo e na convulsão política que teriam fermentado o golpe militar de abril de 1964.

Mas a trajetória política de San Tiago, que ele confundiu com a sua vida, autoriza ou desmente essa afirmação? Não teria ele senão buscado imprimir racionalidade e consistência ideológica ao debate político de seu tempo, nele intervindo e empenhando desassombradamente o vigor de sua inteligência, dos dezoito anos até a véspera da sua morte, há exatos cinquenta anos?

A resposta a essa questão está na história de sua vida, encerrada, precocemente também, aos cinquenta e três anos incompletos, em plena maturidade intelectual, quando já descera, em abril daquele ano de 1964, uma vez mais, a noite das liberdades públicas no País.

Este primeiro volume da biografia de Francisco Clementino de San Tiago Dantas, nascido no Rio de Janeiro em 1911, estende-se até 1945, um ano divisor em sua trajetória e também no curto século XX. Então, o jovem ideólogo da direita radical, nutrido pela reação ao legado da Revolução Francesa acrescido pela Igreja Católica e reafirmada pelo fascismo italiano, cedera lugar ao defensor de uma social-democracia nascida da dramática experiência da Segunda Guerra Mundial. O “catedrático menino” tornara-se o mestre consumado que desprezava os títulos professorais e amava os alunos e era por eles amado. E o jurisconsulto notável, que via na ciência jurídica nativa o maior entrave à realização do Direito entre nós, já encontrara na advocacia a retribuição material ao seu tenaz aprendizado, em medida raramente alcançada entre os seus pares.

Saber, ter e poder. Dessa tríade que San Tiago tomou para si como metro de sua trajetória, apenas o último elemento – o poder político – ele não alcançaria plenamente. Mas nesses primeiros trinta e quatro anos de vida ele se habilitou, como poucos antes ou depois, a buscar o fugidio poder político que o fascinara já ao pisar no pátio da Faculdade de Direito, aos dezesseis anos.

O aprendizado que lhe permitisse formular um projeto político consistente de reformas estruturais para o País – o saber; e o ter – a conquista dos meios que lhe possibilitassem cursar uma carreira política desembaraçada de sujeições materiais: reviver para o leitor de hoje essa saga invulgar na história da inteligência brasileira é o propósito e o desafio desta biografia que o Autor procura cumprir, com o lançamento deste primeiro de seus dois volumes.

Dar voz a San Tiago inscrevendo seus textos elegantes e precisos na narrativa e situando-o em seu contexto histórico mostrou-se o método indicado a descrever, com a fidelidade possível, a sua espantosa atividade intelectual. Nesse sentido, o recuo no tempo se impôs para identificar as suas origens familiares, cujo exemplo ele exaltava, e para mapear as matrizes ideológicas que cedo San Tiago se esforçou por dominar e o inspiraram a primeiro defender a “moderna obra da reação”: a Revolução Francesa e a reação às suas conquistas; o surgimento da nova direita no começo do século XX, precedendo as revoluções bolchevista, fascista e nazista; e, no rastro sangrento da Primeira Guerra Mundial, o embate ideológico que levaria à Segunda em 1939.

Ao jovem ideólogo somou-se o “catedrático menino” que não frequentou regularmente o ginásio e pouco frequentou a Faculdade de Direito, porém desde cedo acumulou espantosos e sucessivos “tempos de estudo” mais tarde desdobrados inclusive em aulas célebres transcritas em apostilas e ainda hoje, oito décadas depois, editadas em livro.

E sobre essas qualidades inegáveis, sobre a admiração e as controvérsias que se acenderam à sua trajetória, esse homem naturalmente grave e professoral difundia um afeto generoso e franco pela família, vendo nos sobrinhos, sempre próximos, os filhos que não pôde ter, e tendo nos amigos da escola os companheiros inseparáveis de toda a vida.

“De muitos, um”, dizia o sinete que San Tiago estampava em seus livros. Essa síntese ele procurou retirar das ideias e viveu plenamente essa busca, aprendendo para ensinar, ensinando para esclarecer, esclarecendo para transformar. E, no entanto, o poder político não foi alcançado. Mas San Tiago deixou a sua saga intelectual a crédito da história de seu País.


Pedro Dutra: premio da Academia Brasileira de Letras pela biografia de San Tiago Dantas (2015)

Transcrevo do blog do advogado do advogado Pedro Dutra, com data de 2/10/2015:

Agradecimento na recepção do prêmio Senador José Ermírio de Moraes




Excelentíssimo Senhor Presidente da Academia Brasileira de Letras, Acadêmico Geraldo Holanda Cavalcanti.

Excelentíssimo Senhor Presidente da Comissão do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes – Acadêmico Marcos Vilaça.

Excelentíssimo Senhor Relator da Comissão do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes – Acadêmico Alberto Venâncio Filho.

Excelentíssimas Senhoras Acadêmicas.

Excelentíssimos Senhores Acadêmicos.

Excelentíssimo Senhor Professor José Pastore, digno representante do Instituto Votorantim.

Senhoras e Senhores.

O prêmio Senador José Ermírio de Moraes, que essa Academia vem de outorgar àA Razão Vencida, é uma generosa retribuição ao esforço de seu Autor.

Mas este prêmio tem um outro – e maior – destinatário: Francisco Clementino de San Tiago Dantas.

1.0. Cumprindo mandato de deputado federal, no início de 1964 San Tiago tentou unir, em uma frente parlamentar, as forças políticas de sustentação do presidente da república, João Goulart. Estava San Tiago advertido de que a extremação ideológica em curso, aprofundando o dissídio entre as correntes de direita e de esquerda, iria ter o seu desfecho, como veio a ter, na ruptura da ordem democrática.

Então, a doença já o visitara, e ele sabia contados os seus dias, assim como vencidos estavam os seus dias no poder, breves, mas superiormente exercidos, em meio a maior crise política vivida na frágil república de 1946.

Por essa altura, San Tiago buscou a Academia, onde contava com inúmeros amigos de mocidade, entre eles, Alceu Amoroso Lima e Afonso Arinos; e, ainda hoje, conta nessa Casa com seus jovens amigos, o crítico literário Eduardo Portella e o advogado Alberto Venâncio Filho.

San Tiago formalizou a sua postulação e cumpriu os procedimentos de praxe. Mas a eleição realizou-se a dois de abril de 1964, já vitorioso o golpe militar e deposto o governo João Goulart.

E o nome de San Tiago não alcançou a maioria necessária à sua admissão a essa Casa. Meses depois, a 6 de setembro, morria, aos 53 anos incompletos.

2.0. Não foi a Academia Brasileira de Letras a única Casa a lhe recusar ingresso. Em junho de 1962, os seus pares na Câmara de Deputados lhe haviam negado a chefia do gabinete, no curto interregno parlamentar então aberto na vida política nacional.

O regime parlamentar surdira de um golpe: os militares, estimulados por radicais da UDN, negavam posse ao vice-presidente João Goulart, alegando a sua simpatia e leniência às forças de esquerda, em sequência à renúncia de Jânio Quadros.

Ao aceitar a implantação do regime parlamentarista em troca de sua posse na presidência da república, Jango começou a trabalhar contra a sobrevivência desse regime. E nesse ofício contou com apoio de candidatos que já abertamente postulavam a sua sucessão.

No turbilhão em que a vida política do país se transformou, San Tiago distinguia-se: era um homem de Estado.

3.0. Tinha ele a noção moderna da democracia renovada pelos valores apurados pela experiência dramática da Segunda Guerra.  E entre esses valores renovados, San Tiago reclamava fosse assegurada ao trabalho a mesma ordem de garantias jurídicas havia muito o nosso Direito já assegurava ao capital.

Essa reforma seria a nutriz de outras reformas estruturais, mas estas reformas não poderiam ser, como observou, “ocasionadas pela avulsão de certos valores, pela eclosão revolucionária”; ao contrário, elas deveriam ser, todas elas, debatidas com a sociedade e aprovadas pelo Congresso.

San Tiago mirava as reformas das principais instituições político-jurídicas do país, e estava ciente das palavras de Rui Barbosa, a quem votava justa admiração: a República “não é uma série de fórmulas, mas um conjunto de instituições, cuja realidade se afirma pela sua sinceridade no respeito às leis e na obediência à justiça”.

O homem de Estado era, e é, uma figura estranha à política nacional. Esta, mesmo quando contou com razoável número de parlamentares talentosos, o que certamente não é o caso hoje a ocorrer, não conseguiu afirmar linhas ideológicas, que reclamassem aos partidos a elaboração e a defesa de programas de governo consistentes, a serem oferecidos à consideração do eleitor.

Antes, a política nacional atrai, quando não o celebra, o político que opera distante de temas e de ideias, e sobretudo de procedimentos, que consultem os interesses maiores do Estado brasileiro.

Nesse contexto, em que a ação política é reduzida à destreza em manipular as cordas do governo e o Tesouro Nacional, não surpreende San Tiago ter sido visto como um adversário da cultura política nativa. E, assim, negar-lhe a investidura na chefia do gabinete afigurou-se um imperativo inafastável à maioria dos deputados, para ser evitado o risco de ele conduzir a nação ao regime parlamentar.

San Tiago estava ciente da desconfiança que o seu nome suscitava, ainda que publicamente exibisse a crença em sua aprovação. Defendeu a sua indicação, apresentando, em um dos mais notáveis discursos feitos ao plenário da Câmara dos Deputados, o seu programa de governo, cujo núcleo seria as reformas de estrutura do Estado brasileiro, muitas delas até hoje reclamadas.

A derrota sofrida na Câmara dos Deputados não o desencantou. Já muito doente, serviu ao país à frente do Ministério da Fazenda no primeiro semestre de 1963, buscando a um só tempo combater a inflação e reanimar a economia.

Mas não achou o apoio da classe política; o seu próprio partido, então liderado por Leonel Brizola, somou-se à oposição tradicional da UDN ao governo e promoveu uma agitação social sem precedentes, precipitando o país em uma crise cujo desfecho, dali a pouco, poria termo à ordem democrática.

4.0. Qual o legado desse fidalgo da inteligência, do mestre da sua geração, do advogado excepcional? Qual o legado desse raro homem de Estado, talhado para o exercício superior do poder, mas que acumulou sucessivas derrotas políticas? Qual o legado desse escritor extraordinário, de um estilo de uma severa simplicidade, onde não sobram adjetivos, não se acha o verbo mais exato e não se tem a síntese mais justa?

Não há uma resposta única e precisa, ao se lidar com uma personalidade tão rica e complexa, mas a sua obra pode nos indicar caminhos. Ela é uma obra de circunstância, produto da sua ação múltipla, de professor, de advogado, de jurista, de político, de ensaísta, atividades exercidas simultaneamente, incansavelmente, excelentemente.

A maior parte dessa obra notável está por publicar, e deve compor, como esperamos, os escritos já conhecidos. A esses trabalhos soma-se a sua correspondência, extraordinária pela sua riqueza documental, e é sem dúvida uma obra literária superior.

Nela surge o homem austero e grave, que amava a família e via nos sobrinhos os filhos que não pode ter, e era o companheiro fiel cujos amigos de mocidade com ele estiveram até a última hora.

5.0. O percurso ideológico de San Tiago é riquíssimo, e traz o selo da coerência e do desassombro, como mostram os seus escritos.

Defendeu suas ideias energicamente, publicamente. Foi capaz de rejeitar aquela que primeiro abraçou ao vê-la infiel aos propósitos que ele, como tantos outros, aspirou ver realizados.

Passou a defender uma ordem social democrática, onde o trabalho e o capital se alinhassem em um mesmo plano de direitos e deveres.

Um dos maiores advogados do país e um intelectual justamente respeitado, não hesitou em buscar infundir ao trabalhismo brasileiro – atrelado ao Estado e cevado por suas verbas – as ideias reformistas do trabalhismo britânico, que no poder transformara a vida social e econômica daquele país.

Ao ver de San Tiago, a política não é um conjunto de ações mecanicamente executadas. Ela deve desdobrar, congruentemente, ideias nascidas pela consulta à realidade e aos valores de cada país.

Em um de seus notáveis ensaios, San Tiago desenhou o seu perfil político, ao traçar o de Rui Barbosa: “todo o verdadeiro grande homem, observou, é um ideólogo: seus pensamentos, sua vida pública, vestiram certos imperativos da existência brasileira, deram forma e teoria a impulsos vitais, que se formaram na sociedade de seu tempo”.

Em uma de suas notas pessoais, San Tiago escreveu que sabia ter a inteligência de um grande homem, mas não era um grande homem, pois a sua inteligência ainda não encontrara um norte ao qual deveria concentrar-se.

San Tiago enganou-se, como tantas outras vezes ao falar de si próprio.

A sua luta política, de maior projeção, não durou mais de cinco anos; e, como a de nenhum outro grande politico brasileiro, à exceção de Rui Barbosa, levantou tanta incompreensão, tanta crítica, mesmo daqueles que o admiravam.

San Tiago estaria fora de seu lugar. Aquele homem refinadíssimo, tendo à sua disposição todos os favores materiais que o seu talento reunira, e era uma das máximas expressões da elite do país, assombrava a todos ao defender a causa trabalhista, em meio aqueles que a agitavam com um discurso populista, frenético e irresponsável.

Mas a sua determinação era inabalável. Ali ele deveria estar, pois, como a entendia, “o dever da inteligência é esclarecer”.

San Tiago era um homem só, na política brasileira. Porém ele já se preparara para essa caminhada.

Isso nos disse ainda em 1947 em seu ensaio sobre a obra maior de Cervantes. No cavaleiro manchego, em sua insânia, na entrega delirante a tarefas irrealizáveis, San Tiago viu “o dom de si mesmo”, isto é, o domínio integral sobre a própria existência, subtraindo o cavaleiro ao destino o seu comando.

Contudo, o heroísmo do Quixote é frustro, e ele só pode ser compreendido reversamente, não pelo seu “resultado imediato alcançado, mas pela repercussão do exemplo”. Esse exemplo, diz San Tiago, é o heroísmo qualificado, paradoxalmente, pelo aparente fracasso da empreitada: os atos malogrados do Quixote são recebidos “a crédito, para compensação das injustiças e agravos que ele não soube ver, nem reparar”, nas palavras do próprio San Tiago.

O dom de si mesmo restitui ao homem a sua liberdade suprema, que só a pureza da ação que não busca crédito pode dar, e, por isso, é capaz de frutificar em exemplos transcendentes; o “dom de si mesmo”, conclui San Tiago, “resolve o problema do destino, vence as hesitações que o temor do erro tanto nos infunde, e, fazendo-nos olhar para fora de nós, permite que, um dia, nos reencontremos”.

Estamos certos de que San Tiago reencontra-se a si mesmo nessa Casa, neste dia de hoje.

Muito obrigado.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

San Tiago Dantas: um brasileiro incomum - Pedro Dutra (biografia)

Em setembro de 1964 faleceu precocemente um dos mais importantes intelectuais do Brasil contemporâneo - o professor San Tiago Dantas. Pergunte a qualquer estudante universitário brasileiro hoje quem foi San Tiago Dantas e talvez dois ou três saberão dizer quem foi este homem extraordinário. Talvez só tenha tido um par na história intelectual recente do Brasil - o economista Celso Furtado ( Celso e San Tiago foram os autores do Plano Trienal, tentativa frustrada de salvar o Governo Jango já em sua fase pré-agônica). Como se sabe, o Plano Trienal frustrou-se graças à incompreensão de jovens como José Serra e Betinho - então líderes da AP (Ação Popular) no comando da UNE, conjugada com lideranças sindicais e políticas fora de sintonia com a realidade - Brizola, Arraes e tantos outros. San Tiago chamou-os de "esquerda negativa", em contraposição à "esquerda positiva" de Celso Furtado e do próprio San Tiago.
Este é o primeiro volume da biografia preparada por Pedro Dutra (o segundo volume deve sair posteriormente).
Há anos ouço falar do trabalho de preparação desta biografia do grande brasileiro. O primeiro de quem ouvi falar sobre esta obra foi o meu amigo Hélio Jaguaribe, hoje na Academia Brasileira de Letras, grande amigo e admirador do San Tiago, que também aguardava ansiosamente que este trabalho fosse concluído. Do Hélio escutei o relato de um episódio que retrata magnificamente a biografia do chanceler que idealizou e pós em execução a Política Externa Independente. Certa vez o professor San Tiago foi homenageado pela Universidade de Cracóvia, na Polonia, com o título de Doutor Honoris Causa. Na cerimônia de recebimento do título, era e é usual um discurso do homenageado. Ao chegar para a cerimônia - e minutos antes que ela começasse- San Tiago foi comunicado (para sua total surpresa) que a tradição era de que o homenageado teria obrigatoriamente que ler a sua oração. Esta era a regra inflexível. San Tiago pediu alguns minutos e trancou-se na Sala da Congregação. Ao sair, tinha um molho de papéis em mãos (supostamente o texto que leria). Passando uma a uma as folhas do maço de papéis, o professor San Tiago deu prosseguimento à cerimônia, proferindo uma das mais brilhantes conferencias de toda a secular tradição da Universidade de Cracóvia. Ao final, foi aplaudido de pé. E prometeu que enviaria posteriormente o texto corrigido da sua Aula Magna.
Por suposto, os papéis que manuseara durante a Aula Magna estavam em branco, eis que o ilustre professor havia pronunciado de improviso a sua conferencia, apenas fingindo que estava lendo um texto anteriormente preparado. Que figura intelectual extraordinária !
Em um país em que temos que conviver com Paulo Coelhos, Guido Mantegas e Dilma Roussefs, que esperança no futuro me dá que nos anos 50/60, em um Brasil pré-industrializado, pudesse ter brotado do nosso solo universitário inteligência tão singular quanto a de San Tiago Dantas...

Mauricio David

 SAN TIAGO DANTAS - a razão vencida
Autor :Pedro Dutra
Páginas: 768
Editora Singular
ISBN: 978-85-86626-71-5
Ano: 2014

APRESENTAÇÃO
O homem, que muitos dizem ser o mais inteligente do Brasil, tem pressa.
Assim uma reportagem na revista O Cruzeiro, a maior do País, se referia a San Tiago Dantas em 1960. Mas quem foi, ou melhor, quem é San Tiago Dantas?
Brilhante e precoce, sem dúvida. Líder estudantil aos dezessete anos, aos vinte editor de jornal e teórico fascista, um ano depois professor de Direito, a seguir prócer integralista e crítico do nazismo; catedrático aos vinte e cinco, fundador de duas faculdades e titular de três cátedras antes dos trinta anos e ainda diretor da Faculdade de Filosofia, no Rio de Janeiro. Um ano depois, em 1942, repudia publicamente o Integralismo, defende a declaração de guerra ao Eixo, propõe a união nacional das forças políticas, reunindo os comunistas inclusive, para afirmação de um regime democrático, e em 1945 elabora parecer firmado por seus colegas professores que nega fundamento jurídico à proposta continuísta do ditador Getúlio Vargas. E, explicitamente, defende substituir a propriedade privada pelo trabalho como núcleo de uma ampla reforma social.
A acusação de oportunista não demorou a lhe ser lançada, e será renovada e ampliada dez anos depois. Então, o alvo será o jovem jurisconsulto procurado por grandes empresas nacionais e estrangeiras convertido em banqueiro, que se alia aos trabalhadores ao ingressar no partido que Getúlio criara para abrigá-los; e, no início da década de 1960, ministro do Exterior, recusa-se a sancionar o novo regime cubano e reata relações diplomáticas com a União Soviética. No começo de 1964, depois de no ano anterior tentar controlar, sem êxito, a espiral inflacionária à frente do Ministério da Fazenda, já mortalmente doente, e agônica a República de 1946, tenta sensibilizar as forças partidárias e articulá-las em uma frente ampla de apoio às reformas democráticas para resgatá-las da polarização que já engolfara a política nacional. Em vão: a direita o vê como um trânsfuga, os conservadores como um ingênuo, e a esquerda desacredita os seus propósitos.
E quase todos o veem como o manipulador, senão o malversador de seus dotes intelectuais, que, diziam seus críticos, derramavam uma luz fria, que iluminava mas não aquecia, e justificavam todas as capitulações necessárias a satisfazer a sua premente ambição política. Entre essas capitulações, servir o seu talento à causa populista de líderes sindicais cevados nos cofres públicos e a um vice-presidente, depois presidente da República, cuja inépcia e tolerância com a agitação promovida pelo seu próprio partido teriam precipitado o País no descalabro administrativo e na convulsão política que teriam fermentado o golpe militar de abril de 1964.
Mas a trajetória política de San Tiago, que ele confundiu com a sua vida, autoriza ou desmente essa afirmação? Não teria ele senão buscado imprimir racionalidade e consistência ideológica ao debate político de seu tempo, nele intervindo e empenhando desassombradamente o vigor de sua inteligência, dos dezoito anos até a véspera da sua morte, há exatos cinquenta anos?
A resposta a essa questão está na história de sua vida, encerrada, precocemente também, aos cinquenta e três anos incompletos, em plena maturidade intelectual, quando já descera, em abril daquele ano de 1964, uma vez mais, a noite das liberdades públicas no País.
Este primeiro volume da biografia de Francisco Clementino de San Tiago Dantas, nascido no Rio de Janeiro em 1911, estende-se até 1945, um ano divisor em sua trajetória e também no curto século XX. Então, o jovem ideólogo da direita radical, nutrido pela reação ao legado da Revolução Francesa acrescido pela Igreja Católica e reafirmada pelo fascismo italiano, cedera lugar ao defensor de uma social-democracia nascida da dramática experiência da Segunda Guerra Mundial. O “catedrático menino” tornara-se o mestre consumado que desprezava os títulos professorais e amava os alunos e era por eles amado. E o jurisconsulto notável, que via na ciência jurídica nativa o maior entrave à realização do Direito entre nós, já encontrara na advocacia a retribuição material ao seu tenaz aprendizado, em medida raramente alcançada
entre os seus pares.
Saber, ter e poder. Dessa tríade que San Tiago tomou para si como metro de sua trajetória, apenas o último elemento – o poder político – ele não alcançaria plenamente. Mas nesses primeiros trinta e quatro anos de vida ele se habilitou, como poucos antes ou depois, a buscar o fugidio poder político que o fascinara já ao pisar no pátio da Faculdade de Direito, aos dezesseis anos.
O aprendizado que lhe permitisse formular um projeto político consistente de reformas estruturais para o País – o saber; e o ter – a conquista dos meios que lhe possibilitassem cursar uma carreira política desembaraçada de sujeições materiais: reviver para o leitor de hoje essa saga invulgar na história da inteligência brasileira é o propósito e o desafio desta biografia que o Autor procura cumprir, com o lançamento deste primeiro de seus dois volumes.

San Tiago Dantas – A RAZÃO VENCIDA
Dar voz a San Tiago inscrevendo seus textos elegantes e precisos na narrative e situando-o em seu contexto histórico mostrou-se o método indicado a descrever, com a fidelidade possível, a sua espantosa atividade intelectual.
Nesse sentido, o recuo no tempo se impôs para identificar as suas origens familiares, cujo exemplo ele exaltava, e para mapear as matrizes ideológicas que cedo San Tiago se esforçou por dominar e o inspiraram a primeiro defender a “moderna obra da reação”: a Revolução Francesa e a reação às suas conquistas; o surgimento da nova direita no começo do século XX, precedendo as revoluções bolchevista, fascista e nazista; e, no rastro sangrento da Primeira Guerra Mundial, o embate ideológico que levaria à Segunda em 1939.
Ao jovem ideólogo somou-se o “catedrático menino” que não frequentou regularmente o ginásio e pouco frequentou a Faculdade de Direito, porém desde cedo acumulou espantosos e sucessivos “tempos de estudo” mais tarde desdobrados inclusive em aulas célebres transcritas em apostilas e ainda hoje, oito décadas depois, editadas em livro.
E sobre essas qualidades inegáveis, sobre a admiração e as controvérsias que se acenderam à sua trajetória, esse homem naturalmente grave e professoral difundia um afeto generoso e franco pela família, vendo nos sobrinhos, sempre próximos, os filhos que não pôde ter, e tendo nos amigos da escola os companheiros inseparáveis de toda a vida.
“De muitos, um”, dizia o sinete que San Tiago estampava em seus livros.
Essa síntese ele procurou retirar das ideias e viveu plenamente essa busca, aprendendo para ensinar, ensinando para esclarecer, esclarecendo para transformar.
E, no entanto, o poder político não foi alcançado. Mas San Tiago deixou a sua saga intelectual a crédito da história de seu País.