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sábado, 21 de setembro de 2013

A morte da reforma agraria (ja vai tarde) - Zander Navarro

Concordo quase inteiramente com o que diz este colega sociólogo e especialista em reforma agrária, que conheci muitos anos atrás, e circunstâncias das quais não me recordo precisamente, mas que marcam minha lembrança pela rápida conversa que tivemos, em torno da reforma agrária, precisamente.
Deve ter sido no governo Sarney, ao final do regime militar, quando se achava que os antigos projetos de reforma agrária e de "justiça social" no campo seriam retomados ativamente pela nova democracia social então surgida no país. Ilusões, claro.
Eu já era um opositor consciente do velho modelo de reforma agrária pela qual lutavam movimentos rurais, partidos de esquerda e acadêmicos idem, inclusive porque tinha lido atentamente o que escrevera a respeito do assunto um marxista respeitável e respeitado, Caio Prado Jr, que também achava que o destino da agricultura brasileira seria o capitalismo rural e a proletarização dos "camponeses", camada que ele sempre considerou como sendo um grupo social estruturalmente marginal na formação brasileira (com o que eu sempre estive de acordo).
Ao apoiar, quase integralmente, o que escreve Zander Navarro, discordo de algumas coisas.
Discordo em primeiro lugar desta afirmação:

"O MST agoniza simultaneamente ao desaparecimento da reforma agrária, a razão de seu nascimento. Não soube refundar-se nessa nova fase do desenvolvimento agrário e vai se apagando melancolicamente. Seu consolo é que fará boa figura nos livros de História."

O MST não tinha razão de ser na reforma agrária. Ela era apenas um pretexto, pois esse movimento neobolchevique jamais apresentou qualquer estudo racional, economicamente embasado, empiricamente sustentado, para apoiar a reforma agrária, um mito completo. Era apenas um movimento revolucionário querendo implantar o socialismo, num irrealismo delirante.
Não creio que fará boa figura nos livros de História, talvez só nos do próprio movimento, e nos de beócios acadêmicos que o apoiam apenas porque ele parecia de esquerda e anticapitalista. Se tratava de um movimento que rompeu a legalidade diversas vezes, destruiu propriedades privadas e governamentais, roubou dinheiro público como ninguém (só o PT o supera) e prejudicou terrivelmente o agronegócio e a própria política agrícola governamental, que torrou centenas de milhões de reais, bilhões, provavelmente, numa causa perdida, sendo que a maior parte foi mesmo desviada para os criminosos que lideram esse movimento celerado.

Discordo também disto, pelo menos se ele concordar com a política da Contag:
"E a Contag, poderosa em razão de sua capilaridade, insiste na bandeira empurrada somente pela tradição. Seus dirigentes sabem ser outro o maior desafio: tentar salvar da desistência os milhares de pequenos produtores ameaçados pelo acirramento concorrencial instalado no campo."

Não creio que seja um desafio válido, pois se trata, na verdade, de uma causa reacionária, pretender fazer girar para trás a roda da história. O Estado vai passar a subsidiar camponeses como se faz na Europa? Não há nenhuma necessidade disso, e seria melhor deixar a agricultura capitalista cuidar de tudo. Os habitantes das cidades não precisam, não devem pagar agricultores improdutivos, e um governo responsável não poderia transferir renda dessa forma.

Discordo, por fim, no que se refere ao Incra e ao MDA, dois órgãos tresloucados, dominados pelo MST, e que devem ser imediatamente extintos, pois só torram o dinheiro público e movimentam políticas absolutamente contrárias ao interesse nacional, contra o agronegócio em particular.

Concordo, finalmente, com o sentido geral do artigo. A reforma agrária morreu, mas a constatação já vem tarde, muito tarde. Ela já tinha morrido nos anos 1970, e não deveria nunca ter sido retomada na redemocratização. Viveu como um zumbi esses anos todos, mas um zumbi nababo, consumido bilhões de recursos públicos sem qualquer sentido econômico ou social. Uma ficção e um embuste, animada por traficantes, criminosos, ladrões e patifes consumados. Estou sendo moderado com o MST e outros afins...
Paulo Roberto de Almeida

Pá de cal na reforma agrária

ZANDER NAVARRO

O Estado de S.Paulo, 21/09/2013
Usei o mesmo título em artigo publicado em 1986, indignado com a afronta do governo Sarney ao nomear um latifundiário para o Incra. Naquela década me envolvera no ativismo a favor da reforma agrária. Não obstante o anúncio pessimista, o esforço do conjunto de militantes contribuiu para animar a única política de redistribuição de terras já feita no Brasil, iniciada em 1996. Desde então, em torno de 1 milhão de famílias recebeu suas parcelas e aproximados 80 milhões de hectares foram arrecadados para constituir os assentamentos rurais - mais de três vezes a área de São Paulo.
Mantenho o título acima porque é preciso reconhecer desapaixonadamente o fato, agora definitivo: morreu a reforma agrária brasileira. Falta apenas alguma autoridade intimorata para presidir a solenidade de despedida. Atualmente a ação governamental nesse campo é um dispendioso e inacreditável faz de conta, sendo urgente a sua interrupção.
Muitos motivos feriram mortalmente a reforma agrária, mas alguns são mais reveladores. O primeiro é de cristalina obviedade, mas muitos fingem ignorá-lo: nenhuma política pública é eterna, pois se conforma às contínuas mutações da sociedade. O tema foi popular nas décadas de 1950 e 1960, e surpreendeu que na virada do século o Brasil patrocinasse uma vigorosa redistribuição de terras, um caso raro no mundo. Mas é particularidade que se esgotou.
Seria sensato manter essa política indefinidamente, quando o antigo País agrícola e agrário passou a ser conduzido pela lógica econômica e cultural das cidades, atraindo os migrantes rurais? A mudança espacial de moradia, de trabalho, de formas de vida e também de mentalidades da vasta maioria da população, no último meio século, liquidou a necessidade de democratizar a distribuição fundiária e sua demanda sumiu da agenda política, corroída pela acelerada urbanização.
Outro fator a ser considerado diz respeito às organizações que demandam reforma agrária, responsáveis pelas pressões que ativaram esta recente "bolha" redistributiva. O MST agoniza simultaneamente ao desaparecimento da reforma agrária, a razão de seu nascimento. Não soube refundar-se nessa nova fase do desenvolvimento agrário e vai se apagando melancolicamente. Seu consolo é que fará boa figura nos livros de História. E a Contag, poderosa em razão de sua capilaridade, insiste na bandeira empurrada somente pela tradição. Seus dirigentes sabem ser outro o maior desafio: tentar salvar da desistência os milhares de pequenos produtores ameaçados pelo acirramento concorrencial instalado no campo.
Uma outra razão a ser considerada decorre do desempenho da agropecuária no mesmo período, o qual inundou os mercados com volumes crescentes e, graças ao espetacular aumento da produtividade, barateou os alimentos. Tal transformação eliminou o velho argumento econômico da necessidade da reforma agrária e, se a população rural mais pobre migrou para as cidades, igualmente a justificativa social deixou de existir.
Mas há ainda um aspecto decisivo: oferecer uma parcela de terra a famílias rurais não produz mais nenhum efeito prático, apenas garante uma sobrevida temporária. Em nossos dias, chegar à terra própria nada significa para os mais pobres do campo. Produzirá a chance do autoconsumo ocasional, antes do abandono definitivo da terra, como evidenciado na maioria dos assentamentos rurais. De fato, trata-se de dura vilania política, pois, enquanto a miséria no campo se esconde atrás das muletas das políticas sociais, o governo federal coleta números destinados meramente ao autoelogio.
Por tudo isso, a reforma agrária brasileira concluiu o seu ciclo de vida. Do ponto de vista econômico e produtivo, seu fracasso é assombroso, pois a área total dos assentamentos é maior do que a área plantada de todos os cultivos nos demais estabelecimentos rurais. Mas, com surpresa, nada sabemos especificamente sobre a produção dos assentamentos, enquanto a agricultura brasileira se tornou uma das mais eficientes do mundo. É um confronto estatístico que desmoraliza qualquer defesa de tal política. Persistir em sua continuidade, portanto, beira a completa insanidade.
E o Incra e seu gigantesco orçamento, tornado inútil sob tal desenvolvimento? O caminho lógico seria a sua extinção, mas talvez fosse adequado transformá-lo num instituto de terras que realizasse as "tarefas finais", como a definitiva emancipação dos assentamentos, retirando a tutela do Estado, a regularização fundiária ou a organização das ainda ficcionais estatísticas cadastrais que diz compilar. Já o Ministério do Desenvolvimento Agrário, preso à sua anacrônica hibernação, mantém-se impassível ante a notícia acima e persevera em fantasias para justificar o clamoroso desperdício de vultosos recursos públicos, na tentativa de realizar o irrealizável. Ainda mais espantoso, tenta ressuscitar o que já morreu. Resta saber se a autoridade maior do País terá a coragem de finalizar este capítulo de nossa História.
Distintos são os desafios atuais para criar prosperidade e oportunidades no campo. Requer aceitar que a pobreza rural se resolverá, sobretudo, nas cidades e com outras políticas. E também que não existem soluções exclusivamente agrícolas para parte considerável dos estabelecimentos rurais de menor porte. Portanto, é preciso construir uma estratégia de desenvolvimento rural radicalmente inovadora. Mas para isso é preciso primeiramente abrir as mentes, pois a ortodoxia e a ideologização dominantes nos deixam sem rumo algum. Enquanto isso, afirmam-se o esvaziamento do campo e a incontrastável dominação da agricultura de larga escala modernizada e integrada aos mercados mundiais.
Eis o nosso futuro rural: uma fabulosa máquina de produção de riqueza, mas fortemente concentrada, pois seria assentada num deserto demográfico.    
*SOCIÓLOGO E PROFESSOR APOSENTADO DA UFRGS. E-MAIL: Z.NAVARRO@UOL.COM.BR,

domingo, 5 de maio de 2013

Fracasso da reforma agraria dos companheiros, de qualquer reforma agraria...

Na verdade, não é por falta de assistência técnica que esse projeto, como tantos outros, aliás a maioria, fracassou. Mesmo se houvesse assistência técnica ele teria fracassado três vezes. Simplesmente, os militantes do MST que forçaram a reforma numa grande propriedade capitalista não tinham capacidade, competência, nenhuma cultura camponesa, ou simplesmente rurícola, para tocar o projeto adiante. Se tratava apenas de uma tese política, a luta contra o capitalismo e o agronegócio, não de reforma agrária, que já tinha ficado ultrapassada no final dos anos 1960. Os companheiros nunca perceberam que o futuro do Brasil está no agronegócio, não na reforma agrária, e a pequena propriedade poderia conviver tranquilamente com esquemas de mercado do agronegócio (do qual também faz parte, na sua escala especializada), desde que princípios de mercado tivessem sido aplicados.
Ninguém pode achar que assistência permanente -- o que significa dependência -- é a solução para os pobres do campo, manipulados por esse partido político neobolchevique que se chama MST.
O Brasil perdeu anos e anos com bobagens, e milhões de reais foram consumidos inutilmente, com as fantasias esquizofrênicas dos companheiros e dos criminosos do MST.
Paulo Roberto de Almeida


De antigo império da soja à maior favela rural no interior do Brasil

GERMANO OLIVEIRA, ENVIADO ESPECIAL
O Globo, 5 Maio 2013

  • Assentamento em MS é símbolo de reforma agrária fracassada, sem assistência técnica



Itamarati é alvo de especulação imobiliária e não garante renda aos trabalhadores rurais
Foto: Michel Filho / O Globo
Itamarati é alvo de especulação imobiliária e não garante renda aos trabalhadores rurais Michel Filho / O Globo
PONTA PORÃ (MS) — O ex-militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Ilmo Ivo Braun, um catarinense de 64 anos, mal consegue caminhar. O pé inchado não o deixa andar pela lavoura de milho, plantada em seu pequeno lote de seis hectares, recebido a título de reforma agrária. Ele mora sozinho, sem filhos, na casinha sem reboco, construída com os R$ 15 mil recebidos do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), há 11 anos. Esse foi o único subsídio recebido desde que ele obteve a terra, depois de passar um ano acampado numa barraca de lona à espera do tão sonhado quinhão de terras. Sem apoio para plantar, Ilmo arrenda o lote para grandes fazendeiros da região. Dinheiro que complementa os R$ 678 que ganha de aposentadoria.
O arrendamento é ilegal. Mas foi a alternativa que encontrou para não cometer o mesmo crime de vizinhos, que aceitaram a tentadora oferta de R$ 150 mil para vender a propriedade.
— Lutei para ter este lote. Não vendo por nada. Seria pior se estivesse na cidade. Já teria morrido de fome. Aqui tenho uns porquinhos e umas galinhas. Vou morrer aqui — prevê Ilmo, um dos agricultores que receberam lotes no Assentamento Itamarati, em Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, na divisa com o Paraguai, como parte do maior projeto de reforma agrária implantado no país.
Pequenos agricultores não têm crédito e assistência
Ilmo é um exemplo acabado de que a reforma agrária fracassou no local. O governo gastou R$ 245 milhões para desapropriar a área de 50 mil hectares da Fazenda Itamarati, que pertencia ao então “rei da soja” Olacyr de Moraes. Com o empresário à beira da falência, o local foi invadido pelos sem-terra em 2000 e lá foram assentadas pelo Incra a partir de 2002 um total de 2.837 famílias ligadas ao MST, à CUT, à Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri) e à associação dos ex-funcionários da propriedade. O Incra perdeu o controle da imensa área, jogando as 16 mil pessoas que lá habitam hoje a toda sorte de infortúnios.
Sem financiamentos ou assistência técnica, os pequenos agricultores não conseguem sobreviver da lida no campo. Até traficantes de drogas arrendam terras por lá. Tem fazendeiro que arrenda até 15 lotes. Para sobreviver, pelo menos 2.000 famílias de assentados recebem Bolsa Família, segundo o prefeito de Ponta Porã, Ludimar Novaes (PPS).
A pobreza do campo ganhou ares de favela na área de 400 hectares que o Incra reservou para ser a vila urbana do assentamento, hoje administrada pela Associação dos Moradores do Assentamento Itamarati (Ampai), com 360 famílias, que moram em barracos sem luz, sem água encanada e com ruas esburacadas. Quase todos ali são invasores, como diz o presidente da Ampai, José Roberto Roberval Barbosa Leila.
— O problema maior é a falta de apoio do Incra. Estou assentado aqui há oito anos e só no ano passado consegui um financiamento de R$ 21 mil do Pronaf. Muitos passam fome, vivem de Bolsa Família ou cestas básicas dadas pelas igrejas e acabam vendendo os lotes para morar na cidade e lá trabalhar como ajudante de pedreiro — resume Barbosa Leila.
O Incra promete iniciar este ano, com atraso de três anos, a titulação das terras, que ainda pertencem à União. Sem documentação, os bancos não liberam financiamentos.
Esse é o caso de José Brasil dos Santos, há oito anos no lote. Nunca conseguiu financiamentos.
— Meu pai pensa em arrendar a terra. Este ano meu tio plantou milho aqui, o que deu uma pequena renda, mas só para a gente não passar fome — diz seu filho José Carlos dos Santos.
MPF denunciou “imobiliária”
Além da dificuldade para a obtenção de empréstimos, o próprio Incra paralisou a análise de novos projetos no estado há três anos, depois que o órgão mergulhou numa profunda crise. O ex-superintendente Waldir Cipriano Nascimento, demitido em agosto de 2010, chegou a ser preso na “Operação Tellus”, desencadeada pela Polícia Federal e Ministério Público Federal (MPF) contra a venda de lotes da reforma agrária no Sul do estado. O desvio apurado no esquema é de R$ 12 milhões. No Itamarati, o escritório do Incra está inativo há dois anos.
Os que conseguem sobreviver da agricultura e ter renda melhor são os que se dedicam à produção de gado e leite. Muitos venderam seus lotes. Estima-se que 1.200 famílias, ou 40% do total assentadas, já comercializaram lotes, mas o Incra só admite que 550 negociaram as terras. No fim do ano passado, o MPF denunciou integrantes do que chamou de uma “imobiliária” que comercializava lotes.
A antiga fazenda Itamarati, transformada no maior assentamento agrário do país, foi praticamente destruída. Silos e armazéns de grãos estão apodrecendo. A casa-sede da fazenda hoje é ocupada pelos padres do assentamento. A prefeitura de Ponta Porã aguarda até o dia em que o Incra conceda a área para o município. Ali, quer que nasça uma nova cidade.
 http://oglobo.globo.com/pais/de-antigo-imperio-da-soja-maior-favela-rural-no-interior-do-brasil-8294519#ixzz2SR1D60JR
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quarta-feira, 18 de abril de 2012

Reforma Agraria de (Pessima) Qualidade - Xico Graziano

O único -- mas grande, e múltiplo -- problema deste artigo é que ele começa por uma falsa premissa: a de que compete ao Estado fazer reforma agrária, distribuir terras aos interessados e depois prover-lhes de todas as condições para que tenham sucesso e renda adequada.
Ora bolas, por acaso o Estado garante qualquer coisa a quem vive em zona urbana: dá casa, emprego e renda aos infelizes habitantes das cidades?
Por que ele deveria fazê-lo no caso dos rurícolas?
A verdade é que o fracasso desses assentamentos se deve à incapacidade dos "detentores" das terras, sua total falta de condições técnicas e econômicas para explorar a terra.
O MST não é um movimento da reforma agrária, e sim um partido neobolchevique apenas interessado na revolução. Reacionário e totalmente anacrônico.
Paulo Roberto de Almeida 



Reforma agrária de qualidade

17 de abril de 2012 | 3h 04
Xico Graziano, agrônomo, foi secretário de Agricultura e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo - O Estado de S.Paulo
O Brasil realizou a maior reforma agrária do mundo. Poucos, entretanto, acreditam nesse feito. Tal percepção negativa é influenciada pelo discurso que valoriza a quantidade em detrimento da qualidade dos assentamentos rurais. Idealismo irresponsável.
De 1994 a 2011, mostra com exatidão o Incra, foram assentadas no País 1.176.813 famílias, distribuídas numa área de 88 milhões de hectares. Para aquilatar a grandeza dos números basta citar que existem em São Paulo 227 mil estabelecimentos agropecuários (IBGE, 2006), explorando 16,7 milhões de hectares. Conclusão: a reforma agrária brasileira já é cinco vezes maior que a agricultura paulista.
Os processos históricos de reforma agrária foram distintos nos vários países, impedindo precisas comparações. Stalin expropriou as terras dos czares russos e coletivizou a agricultura ao custo de 6 milhões de mortes. O México perdeu 1 milhão de vidas na época revolucionária de Zapata, dividindo posteriormente 70 milhões de hectares para os ejidos cooperativos. Finda a 2.ª Guerra Mundial, em 1946 os norte-americanos tomaram as posses feudais japonesas e as dividiram em lotes de um hectare para os camponeses. Minifúndios.
Com territórios pequenos, Cuba, Chile, Peru, Bolívia promoveram reformas cujas dimensões ficam muito aquém da brasileira. A área distribuída nos assentamentos rurais do Brasil excede a própria área cultivada do País, de 70 milhões de hectares (excluindo pastagens). A França explora 30 milhões de hectares.
Se houvesse um ranking mundial da reforma agrária, o Brasil certamente o lideraria. Na dimensão. Porque na eficácia ocuparia os derradeiros lugares. Aqui mora o problema. A qualidade dos assentamentos rurais configura um fracasso na política pública. Fora as exceções de praxe, verdadeiras favelas rurais se espalharam pelo País.
Uma criteriosa pesquisa realizada pelo Incra (2010) coletou informações básicas sobre modo de vida, produção e renda das famílias assentadas. Questionários foram respondidos por uma amostra de 16.153 beneficiários, envolvendo 1.164 projetos de reforma agrária. Só 32,6% das moradias contam com iluminação elétrica regular, em 57% dos lotes as estradas de acesso são péssimas ou ruins, a saúde pública mal chega a 56% das famílias. Na média.
Números são chatos, mas necessários às vezes para convencer incrédulos. O drama das famílias assentadas começa cedo: 38% delas jamais receberam o apoio inicial para soerguer sua existência na roça. Despejadas no lote sonhado, viraram-se por conta própria. A assistência técnica (fomento) chegou apenas a um quarto dos assentados; metade deles nunca viu financiamento do Pronaf e, dos que receberam empréstimos, 38% estão inadimplentes no Banco do Brasil.
O relaxo, ou incapacidade, do governo em amparar os novos produtores, aliado à inaptidão da maioria das famílias assentadas, se reflete nos rendimentos. No Ceará 70% dos assentados auferem uma renda total mensal que não ultrapassa dois salários mínimos. Com um agravante: 44% do ganho familiar advém dos benefícios sociais do governo. Tragédia rural nordestina.
Sim, é verdade, a qualidade de vida dos assentados melhorou, quando se compara antes e depois do assentamento. Após anos de tutela do Estado, só faltava ter piorado sua existência material. Mas vejam os dados da pobreza agrária: apenas em 63% dos lares existe televisão, só em 45% deles se bate bolo no liquidificador, a 30% não chegou fogão a gás. Singelo lar, distante da cidade, longe dos amigos.
Nada, entretanto, mais surpreende o estudioso que descobrir o buraco negro da reforma agrária: ninguém sabe qual a produção agropecuária oriunda dos assentamentos. Por incrível que pareça, inexiste estatística agregada sobre o volume de grãos, das frutas ou dos rebanhos capaz de determinar sua contribuição à safra agrícola nacional. Parece mentira.
Existem bons trabalhos, notadamente realizados pelas universidades, enfocando casos específicos, às vezes generalizando estimativas. Faltam dados governamentais, de campo, que permitam avaliar o resultado produtivo da reforma agrária. Análise de custo/benefício nunca foi o forte do agrarismo populista, como se o simples acesso à terra fosse um passaporte para a felicidade eterna.
Tornar os assentamentos rurais viáveis ganhou destaque no discurso de Dilma Rousseff ao empossar recentemente o gaúcho Pepe Vargas no Ministério do Desenvolvimento Agrário, em substituição ao baiano Afonso Florence. Disse a presidente, com todas as letras, que "reforma agrária não é só distribuição de terra, mas garantia das condições de desenvolvimento para as populações que acessem essas terras". Foi mais longe: "De nada adianta distribuição de terra com permanência das populações rurais na extrema pobreza". Recado certo.
A troca do titular da pasta que comanda o Incra ocorreu em meio às críticas sobre o baixo desempenho nos assentamentos em 2011. Apenas 22 mil famílias receberam um quinhão da reforma agrária, o menor número dos últimos 16 anos. Na ótica da quantidade, péssimo. Na visão da qualidade, porém, o ministro demitido saiu injustiçado. Assentar pouco pode ser virtude, não defeito.
Mais que girar a rosca sem-fim importa garantir qualidade produtiva à reforma agrária. Deveria haver uma norma - lei da responsabilidade agrária - que obrigasse o poder público a emancipar os projetos antigos antes de iniciar os novos. Consolidado o assentamento, com moradia decente, transporte regular, assistência técnica, integração produtiva, os recém-"com-terra" seriam titulados.
Escritura na mão, alforria no campo.

domingo, 20 de novembro de 2011

A quem interessa o modelo ‘agropolítico’ do MST? - Paulo Roberto de Almeida (2004)

O trabalho abaixo, “A quem interessa o modelo ‘agropolítico’ do MST?”, coi elaborado em Belo Horizonte, em 15 de julho de 2004, e comentava um artigo-palestra do Sr. João Pedro Stedile, do MST, chamado “A quem interessa o modelo agrícola do agronegócio”. 
Ele tinha apenas circulado numa lista de Relações internacionais, mas permaneceu inédito de outra forma. Acredito que seus argumentos ainda conservam validade, tanto do lado anacrônico do MST, quanto de minha parte. 
 Primeiro transcrevo o artigo original do Sr. João Pedro Stedile, em seguida acrescento meus comentários.
Paulo Roberto de Almeida 

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Brasil: A quem interessa o modelo agrícola do agronegócio
por João Pedro Stedile [*]

A imprensa endeusa o agronegócio, sem destacar que ele proporciona apenas 500.000 empregos

Desde que o governo Lula assumiu o mandato, estranhamente a imprensa brasileira, de forma unânime, tem se dedicado cotidianamente a pregar loas ao sucesso do agronegócio.

Por que essa campanha unificada, permanente, logo agora? Uma das explicações pode ser a influência crescente dos neoliberais no governo Lula, representados pelos ministérios da Agricultura, ou melhor, da exportação agrícola, da Indústria e Sadia, e da área econômica. Outra explicação pode ser a tentativa de impedir que o governo se anime a fazer uma reforma agrária massiva. E, assim, pregam que o único caminho para resolver os problemas da pobreza e da falta de emprego no campo seria o modelo do agronegócio.

Ora, a pobreza, o desemprego e a desigualdade social que existem no meio rural brasileiro são justamente frutos de quinhentos anos de um modelo agrícola que privilegia as exportações, desde que por aqui chegaram os europeus... e seus interesses.

20 MILHÕES SEM SAPATOS
A imprensa brasileira, monopolizada por sete grupos e claramente vinculada aos interesses de classe dos grandes proprietários e das empresas transnacionais exportadoras de matérias-primas, faz o seu papel de propaganda. Mostra todos os dias máquinas agrícolas novinhas, navios carregados e índices de exportação agrícola, como se isso fosse sinônimo de soluções econômicas e sociais. E esconde que no meio rural brasileiro temos 30 milhões que vivem em condições de pobreza absoluta, que 20 milhões nunca calçaram um par de sapatos, que 50 milhões de brasileiros passam fome todos os dias. Que 30 milhões de pessoas já não têm sequer seus dentes. Esquece de mostrar que apenas 8 por cento da população chega à universidade, e que, no Nordeste brasileiro, 60 por cento da população do meio rural é ainda analfabeta.

Esquece de dizer que no país de maior fronteira agrícola do mundo existem 4,5 milhões de famílias de trabalhadores sem terra!

Quais desses problemas o modelo do agronegócio resolve? Nenhum. Ao contrário, é justamente esse modelo agrícola que gerou tanta desigualdade, pobreza e desemprego.

Porque o modelo agrícola do agronegócio é organizado para produzir dólares, e produtos que interessam aos europeus, aos asiáticos, não aos brasileiros. E por isso não produz comida, empregos e justiça social. O agronegócio concentra. Leva para fora as riquezas produzidas aqui, em vez de distribuí-las.

Mas queria aproveitar a paciência de vocês para mostrar que, mesmo do ponto de vista da lógica do capitalismo nacional, o modelo do agronegócio é irracional, ou burro, se quiserem. Ou seja, esse modelo só interessa ao capital internacional, e nem sequer ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro.

Vamos aos dados estatísticos, resultados desse modelo agrícola cantado em prosa e verso.

O Brasil tem aproximadamente 350 milhões de hectares agricultáveis, que poderiam ser dedicados à lavoura. Mas, graças à concentração da propriedade da terra, cultivamos 50 milhões de hectares, apenas 14 por cento do que deveríamos cultivar. E essa área cultivada permanece estável desde 1985.

As fazendas modernas do agronegócio ocupam 75 por cento dessa área cultivada, as melhores terras, para produzir apenas soja, algodão, cacau, laranja, café, cana-de-açúcar e eucalipto. E que interessam ao mercado externo. Imaginem se o povo brasileiro tivesse
de colocar na mesa apenas esses produtos!

E existe outra parcela de estabelecimentos agrícolas, que fazem parte desse modelo, piores ainda, pois se dedicam apenas à pecuária extensiva ou a especular com a renda da terra. Segundo dados do INCRA, baseados em declarações dos proprietários, existem no Brasil 54.761 imóveis rurais classificados como “grandes propriedades improdutivas”, portanto desapropriáveis, que somam nada menos que 120 milhões de hectares (uma Europa inteira parada...).

A FALÁCIA DA MODERNIDADE
O Plano Nacional de Reforma Agrária aplicou a conceituação da Lei Agrária e dividiu todas as propriedades existentes entre pequenas (até 200 hectares, em média), médias (de 200 a 2.000 hectares) e grandes propriedades (acima de 2.000 hectares). E depois analisou o comportamento dos fatores de produção em relação a cada setor.

Em relação ao emprego, a pequena propriedade dá trabalho para 14 milhões de pessoas, a média para 1,8 milhão e a grande propriedade do agronegócio para apenas 500.000.

A famosa modernidade capitalista é uma falácia, 63 por cento de toda a frota de tratores brasileiros é usado por propriedades com menos de 200 hectares. E as propriedades acima de 1.000 hectares possuem apenas 36 por cento dos tratores. Ou seja, a tal grande propriedade “moderna” não consegue nem ativar a indústria nacional de tratores. Por essa razão é que faz vinte anos que a demanda de tratores não aumenta. A indústria está vendendo em torno de 50.000 tratores por ano, enquanto no início da década de 80 chegou a vender 65.000.

Mas na hora de utilizar o crédito rural, dos bancos oficiais, com recursos públicos e taxas de juros diferenciadas, pode-se ver também os diferentes interesses. Na última safra (2003/04), a pequena
propriedade teve acesso a 3 bilhões de reais, e a média e grande propriedade utilizaram 24 bilhões de reais do Banco do Brasil. E, o que é pior, apenas dez empresas transnacionais ligadas ao agronegócio pegaram no Banco do Brasil 4 bilhões de dinheiro público, brasileiro. Dez empresas transnacionais acessaram mais crédito do que todos os 4 milhões de famílias de pequenos agricultores. E ainda tem gente que acredita que as empresas transnacionais vêm aqui aplicar
capital estrangeiro. Ao contrário, elas vêm acessar a nossa poupança nacional. Estamos financiando essas empresas estrangeiras, e a imprensa bate palmas!

Em termos dos resultados da produção, segundo o IBGE, a grande propriedade representa apenas 13,6 por cento de toda a produção, 29,6 por cento a média propriedade e 56,6 por cento de toda produção agropecuária nacional vem da agricultura familiar. E, por ramos de produção, é ainda mais claro a que interesses cada segmento defende. Mesmo na produção animal, a pequena propriedade representa 60 por cento de toda a produção, em função da produção de leite, de suínos e aves.

No quesito assalariados rurais, que é o símbolo do capitalismo, a média propriedade dá emprego para 1 milhão de pessoas, a grande propriedade para apenas 500.000. E, mesmo sendo familiar, a pequena propriedade dá emprego, além de aos seus familiares,
para quase 1 milhão de assalariados rurais.

DESVIO VEM DA COLÔNIA
O Brasil vem sendo vítima dessa política de estímulo às exportações agrícolas desde o colonialismo. E todos sabem que esse modelo não desenvolveu nenhum país. Mesmo em termos de exportação, o país ganha quando exporta mercadorias, de origem industrial, com alto valor agregado. É por isso que a Embraer sozinha, com suas exportações de avião, representa a metade do valor de toda a exportação de soja! Ninguém se desenvolve exportando matérias-primas. E no caso brasileiro é ainda pior, pois quem está ganhando dinheiro com as exportações agrícolas são as transnacionais, como a Monsanto, a Cargill, a Bunge, a ADM, que controlam o comércio agrícola mundial. Elas têm um lucro médio de 28 por cento sobre o valor exportado, sem produzir um grão sequer.

Se o Brasil quiser resolver os problemas de emprego, pobreza no meio rural e desigualdade social, certamente não será pelo caminho do agronegócio. Será pela reforma agrária, que é a democratização da propriedade da terra. Pela organização da produção agrícola através da agricultura familiar, e orientando a produção para alimentos destinados ao mercado interno, para o povo. Se todo o povo brasileiro  tivesse renda para se alimentar direito, haveria uma demanda nacional infinitamente superior ao que hoje é exportado. A solução é dar condições para o povo comprar comida.

Se a política não mudar, seguiremos tendo uma minoria ganhando muitos dólares, a pobreza aumentando, e o governo fazendo discurso para dizer que vai aumentar a bolsa-família para atender os famintos, que continuarão aumentando.

Até que, um dia, o acúmulo dessas contradições gere uma nova e verdadeira política.

[*] Dirigente do MST e da Via Campesina Brasil.

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Agora meus comentários
Paulo Roberto de Almeida


A quem interessa o modelo ‘agropolítico’ do MST?

Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org) 
O Sr. Stedile tropeça na aritmética e fica reprovado em economia!

            A sociedade brasileira tem uma espécie de remorso psicológico, ou consciência culpada, em relação aos assuntos da terra. Este é o resultado de quatro séculos de latifúndio, de escravidão e de várias décadas de preservação de um modelo agrário excludente, baseado numa reforma agrária às avessas, que foi a Lei de Terras de 1850, responsável pelo monopólio do acesso à terra nas mãos de grandes proprietários. Essa realidade foi, infelizmente, mantida ainda durante a primeira metade do século XX, e vem sendo, felizmente, desmontada ao longo das últimas décadas de desenvolvimento agrário capitalista, ainda que alguns, com remorso político pela ausência de uma revolução bolchevique no Brasil, condenem essa evolução, pois que ela lhes retira os motivos de luta e até mesmo de existência.
            Apenas essa dupla característica – o remorso da sociedade, de um lado, e o ativismo de alguns poucos órfãos de uma revolução política que não ocorreu, de outro – explica porque certos atos e dizeres do MST conseguem ter tanta audiência em nossos meio de comunicação. Com efeito, não se passa uma semana, ou talvez mesmo um único dia, sem que eventos, declarações e ações do MST sejam transpostos nos meios de comunicação. A atualidade política brasileira é, de fato, em grande medida dominada pelo MST, uma total inversão de sua real importância na economia ou na política do Brasil. Pretendo sustentar minha posição mediante uma análise tópica e geral de um artigo-palestra do líder do MST, João Pedro Stedile, intitulado “A quem interessa o modelo agrícola do agronegócio” (disponível no site do MST).
            Ele inicia suas declarações estranhando que desde o início do governo Lula a imprensa venha incensando o agronegócio, numa demonstração explícita de que gostaria de determinar o que os meios de comunicação podem ou não publicar. O Sr. Stedile não consegue admitir que essas notícias têm por base o real sucesso do agronegócio na conquista de mercados externos, na obtenção de recorde sobre recorde em termos de desempenho produtivo e de performance exportadora, sendo responsável por níveis historicamente altos de superávit comercial. O agronegócio brasileiro é hoje propriamente imbatível em termos de competitividade mundial, assustando produtores em outros países, a começar pelos subvencionistas europeus e americanos, que nem à custa de subvenções maciças à produção e exportação conseguem vencer os altos níveis de produtividade agrícola do Brasil. Se isto não é notícia, o que seria?: as invasões de terras produtivas pelas tropas do MST? Isso também é notícia, embora por motivos menos desejáveis do que o sucesso do agronegócio.
            O Sr. Stedile acha que uma das razões dessa orientação da imprensa seja devida à “influência crescente dos neoliberais no governo Lula, representados pelos ministérios da Agricultura, ou melhor, da exportação agrícola, da Indústria e Sadia, e da área econômica”. Se há influência crescente dessa corrente deve ser porque ela está fazendo sucesso no comando de certas áreas políticas, à diferença de outras, que primam pela ineficência e pela má gestão. Ele também denota uma prevenção de princípio contra as exportações agrícolas, postura que vinda de um economista – parece que o Sr. Stedile é economista formado, embora seja legítimo desconfiar desse título, tantos são os despautérios econômicos presentes em seus argumentos – trata-se não apenas de uma irracionalidade econômica e uma inconseqüência lógica, mas de grave desvio de formação, já que exportações agrícolas são tão boas quanto quaisquer outras, de fato tão normais, em economia, quanto qualquer outra etapa do processo produtivo ou distributivo: elas produzem renda e riqueza como quaisquer outras atividades econômicas e são suscetíveis de contribuir para o bem estar do povo.
            O Sr. Stedile acredita que “a pobreza, o desemprego e a desigualdade social que existem no meio rural brasileiro são justamente frutos de quinhentos anos de um modelo agrícola que privilegia as exportações, desde que por aqui chegaram os europeus... e seus interesses.” A ouvi-lo falar poderiamos supor que o Sr. Stedile seja descendente de algum índio botocudo, de algum tupinambá de boa cepa, ou então de alguma tribo remota dos nambiquaras, e não o neto, ou filho, de imigrantes europeus, que aqui desembarcaram para lutar por seus interesses, e os de seus filhos e netos. O Brasil é de fato o resultado de uma formação européia constituída em torno de exportações agrícolas, e nisso não vai nenhum desdouro para o nosso país. A nação, por sua vez, foi constituída por todos esses elementos étnicos, portugueses, índios, negros e, depois, europeus de todas as origens, levantinos, orientais, e todas as suas misturas, que aqui se dedicaram à lavoura, ao comércio, à indústria, enfim a toda e qualquer atividade aberta ao engenho e arte de todos esses povos. O país se industrializou ao longo do último século, à diferença dos quatro séculos anteriores de produção agroexportadora, mas isso não elimina, e seria estranho se o fizesse, nossa característica básica que é a de ser uma formidável máquina de produção e exportação agropecuária. Não reconhecer essa evidência é uma inacreditável demonstração de cegueira econômica.
            O Sr. Stedile desfia em seguida uma série de tragédias da estrutura social brasileira, estimando que a imprensa esconde esses fatos: ela “esconde que no meio rural brasileiro temos 30 milhões que vivem em condições de pobreza absoluta, que 20 milhões nunca calçaram um par de sapatos, que 50 milhões de brasileiros passam fome todos os dias. Que 30 milhões de pessoas já não têm sequer seus dentes. Esquece de mostrar que apenas 8 por cento da população chega à universidade, e que, no Nordeste brasileiro, 60 por cento da população do meio rural é ainda analfabeta. Esquece de dizer que no país de maior fronteira agrícola do mundo existem 4,5 milhões de famílias de trabalhadores sem terra!”
            O Sr. Stedile acredita que o agronegócio é responsável por esse quadro por certo abominável: “Quais desses problemas o modelo do agronegócio resolve? Nenhum. Ao contrário, é justamente esse modelo agrícola que gerou tanta desigualdade, pobreza e desemprego.” A relação de causa a efeito é propriamente estarrecedora: não se vê como e em que condições o agronegócio seria responsável por esses números e essa situação.
            Os historiadores econômicos, para provar a validade de alguma explicação causal, costumam utilizar-se do que se chama, em inglês, counterfactuals, isto é, considerar o desenvolvimento de algum processo evolutivo sem a intervenção de uma variável selecionada (a ausência hipotética de estradas de ferro na conquista do Oeste americano, por exemplo). Consideremos, portanto, a ausência do agronegócio e imaginemos se algum dos problemas identificados pelo Sr. Stedile estaria solucionado, ou não teria existido, sem a variável em questão. Alguém, em sã consciência, acredita que o Brasil seria um exemplo de desenvolvimento, de progresso econômico e de justiça social a partir da inexistência do agronegócio? Qual economista ou historiador endossaria um absurdo dessa magnitude?
O Sr. Stedile deveria ler um pouco mais os manuais de economia e os livros de história, uma vez que ele manifestamente não demonstra deter conhecimento mínimo sobre como o Brasil se desenvolveu, desde a colonização até o presente. É, por outro lado, estarrecedor constatar, como afirmações absurdas desse tipo não são contestadas por jornalistas, colunistas da imprensa ou mesmo simples estudantes universitários. Suas afirmações ofendem grosseiramente a inteligência de leitores medianamente informados sobre a história e a economia do Brasil.
            Mas esse tipo de afirmação é condizente com o raciocínio econômico surrealista do Sr. Stedile. Senão vejamos. Ele afirma, por exemplo, que “o modelo agrícola do agronegócio é organizado para produzir dólares, e produtos que interessam aos europeus, aos asiáticos, não aos brasileiros. E por isso não produz comida, empregos e justiça social. O agronegócio concentra. Leva para fora as riquezas produzidas aqui, em vez de distribuí-las.”
            Para um pretenso economista, se ele fosse meu aluno, certamente teria tirado nota zero, sem possibilidade de recuperação. Não apenas o agronegócio está organizado para produzir dólares, mas também a indústria, os serviços, a música nacional, o turismo ou qualquer outra atividade que configure uma situação de “tradable”, isto é, suscetível de ser vendida ao exterior, inclusive a inteligência nacional (em matéria de software, por exemplo), mas não certamente a do Sr. Stedile. Bons produtos interessam brasileiros, argentinos, chineses, esquimós, bushimanes, tuaregues, enfim tutti quanti forem capazes de adquirí-los numa legítima transação comercial. Esses produtos trazem ao país não apenas dólares, mas também euros, ienes ou qualquer outra moeda utilizada nessas transações, mas isso parece incomodar o Sr. Stédile, que ostenta, como vimos, uma prevenção de princípio contra as exportações, contra quaisquer exportações, é verdade, mas especialmente as do agronegócio.
            Pretender, por outro lado, que “isso não produz comida, empregos e justiça social”, como o faz o Sr. Stedile, é desconhecer princípios básicos de economia, o que certamente serviria para dar mais um zero redondo ao “economista” em questão. Ele acha que o agronegócio “Leva para fora as riquezas produzidas aqui, em vez de distribuí-las.” Quanta ignorância: as riquezas que vão para fora, voltam, justamente, sob a forma de pagamentos de contrapartida, ou seja, renda e riqueza para os produtores nacionais, que por sua vez têm de distribuí-las para todos aqueles que participaram do agronegócio em questão: tratoristas, agrônomos, transportadores, vendedores de sementes, comerciantes e também, obviamente, trabalhadores agrícolas engajados no negócio agroexportador.
            Mas as demonstrações de ignorância econômica não param por aí. O Sr. Stedile pretende demonstrar que “mesmo do ponto de vista da lógica do capitalismo nacional, o modelo do agronegócio é irracional, ou burro, se quiserem. Ou seja, esse modelo só interessa ao capital internacional, e nem sequer ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro.” Já constatamos que a lógica não é o forte do Sr. Stedile.
            Vejamos como ele pretende fazer essa demonstração. O Sr. Stedile reconhece, candidadamente, que “as fazendas modernas do agronegócio ocupam 75 por cento da área cultivada, as melhores terras, para produzir apenas soja, algodão, cacau, laranja, café, cana-de-açúcar e eucalipto. E que interessam ao mercado externo. Imaginem se o povo brasileiro tivesse de colocar na mesa apenas esses produtos!”
            A ignorância é tão grande que o Sr. Stedile não se dá conta que o povo brasileiro coloca todos esses produtos na sua mesa todas as horas e todos os dias, não apenas na forma direta ou processada desses produtos agrícolas, mas na forma indireta de renda da agricultura, da indústria de processamento, das atividades do agrocomércio (exportação, entre outras) e de toda e qualquer outra atividade ligada, de perto ou de longe, à produção agropecuária. Apenas uma pessoa visceralmente contrária ao agronegócio e a toda e qualquer exportação agrícola, como o Sr. Stedile, acredita que commodities agrícolas, mesmo as não diretamente comestíveis, são contrárias aos interesses do povo brasileiro. Tamanha ignorância econômica nos faz pensar como foi mesmo possível ao Sr. Stedile obter o seu diploma de economista. Deve ter sido distração ou leniência dos professores.
            Mais uma demonstração, não apenas de ignorância econômica, mas de simples surrealismo matemático: “Em relação ao emprego, a pequena propriedade dá trabalho para 14 milhões de pessoas, a média para 1,8 milhão e a grande propriedade do agronegócio para apenas 500.000.” Se o Sr. Stedile se desse ao trabalho de pesquisar os dados da indústria, ou do comércio, ele teria descoberto que, também nesses setores, as pequenas e médias empresas são as que empregam mais. Por uma simples razão de ordem matemática: elas são em maior número e, portanto, a soma de todas elas resulta num emprego global bem superior àquele provisto por grandes empresas, agrícolas, industriais ou comerciais. Zero para o Sr. Stedile em aritmética também.
            Outro absurdo: “A famosa modernidade capitalista é uma falácia: 63 por cento de toda a frota de tratores brasileiros é usado por propriedades com menos de 200 hectares. E as propriedades acima de 1.000 hectares possuem apenas 36 por cento dos tratores.” Além do já mencionado surrealismo matemático, evidenciado acima, o Sr. Stedile fez um curso de economia sem nunca ter ouvido falar de economias de escala. Duplo zero.
            Acho que não preciso mais insistir com exemplos de miopia econômica e de total desconhecimento das regras elementares da aritmética. Vejamos em constraste sua genial reinterpretação do processo histórico: “O Brasil vem sendo vítima dessa política de estímulo às exportações agrícolas desde o colonialismo. E todos sabem que esse modelo não desenvolveu nenhum país. Mesmo em termos de exportação, o país ganha quando exporta mercadorias, de origem industrial, com alto valor agregado. É por isso que a Embraer sozinha, com suas exportações de avião, representa a metade do valor de toda a exportação de soja! Ninguém se desenvolve exportando matérias-primas.”
            O Sr. Stedile não deve ter ouvido falar que países desenvolvidos como os Estados Unidos, a Austrália, a Dinamarca, o Canadá e muitos outros exportam, sim, e muito, os mais diversos tipos de matérias primas, como aliás faz o Brasil. Eles também transformam suas matérias primas, como aliás está fazendo o Brasil. O Sr. Stedile deveria ler mais livros de história, ou mesmo jornais e revistas de atualidade. Ele ostenta, sem nenhum pudor, uma ignorância verdadeiramente enciclopédica, que abrange vários temas e assuntos os mais diversos. Nova nota zero, desta vez em conhecimentos gerais.
            Agora sua solução para os problemas brasileiros: “Se o Brasil quiser resolver os problemas de emprego, pobreza no meio rural e desigualdade social, certamente não será pelo caminho do agronegócio. Será pela reforma agrária, que é a democratização da propriedade da terra. Pela organização da produção agrícola através da agricultura familiar, e orientando a produção para alimentos destinados ao mercado interno, para o povo.”
            Se o Brasil quiser resolver os problemas de emprego, pobreza no meio rural e desigualdade social, certamente não será pelo caminho indicado pelo Sr. Stedile. Pela simples razão de que, se o agronegócio não pode, sozinho, resolver todos esses problemas, sua eliminação da paisagem econômica nacional não conseguirá, tampouco, resolvê-los minimamente. O agronegócio, combinado ou não à agricultura familiar – o que já ocorre em diversos ramos – produz tanto para o mercado interno quanto para o externo; ele já é uma atividade democrática, pois que não discrimina setores, mercados, métodos produtivos, classes de consumidores, tipos de sementes (ao contrário do Sr. Stedile que parece acreditar que OGMs têm algum poder maléfico, desconhecido dos cientistas), enfim, trata-se de uma atividade econômica como outra qualquer, integrada ao panorama econômico brasileiro e plenamente inserida nos circuitos da globalização, sendo altamente produtiva e propriamente imbatível no confronto com outras economias nacionais. Ostentamos hoje essa condição, que só existe porque “economistas” como o Sr. Stedile nunca estiveram à frente de ministérios econômicos neste país. Pessoas como ele seriam capazes de, deliberadamente, dinamitar a economia nacional em menos de seis meses, com demonstrações explícitas de esquizofrênia econômica.
            No parágrafo agora transcrito, finalmente, tenho algo a concordar com o Sr. Stedile, pelo menos da metade adiante: “Se a política não mudar, seguiremos tendo uma minoria ganhando muitos dólares, a pobreza aumentando, e o governo fazendo discurso para dizer que vai aumentar a bolsa-família para atender os famintos, que continuarão aumentando.” Não creio que a política de apoio ao agronegócio produza pobreza, pois não há nenhuma evidência, repito, nenhuma evidência nesse sentido, salvo na cabeça de “economistas” desmiolados. Mas acredito, sim, que as práticas de assistência social do governo, deste ou de qualquer outro governo, são mais suscetíveis de criar um exército de assistidos do que, como seria desejável, pessoas aptas a disputar um emprego no mercado de trabalho. Preferiria, de minha parte, um esforço maciço em educação e formação profissional, em lugar de bolsas alimentares ou outras medidas paliativas. Mas reconheço a existência de problemas emergenciais que devem ser enfrentados pelo governo.
            Finalmente, o Sr. Stedile termina a sua palestra-artigo fazendo uma ameaça: “Até que, um dia, o acúmulo dessas contradições gere uma nova e verdadeira política.” O Sr. Stedile deve estar se referindo a um similar nacional da revolução bolchevique, que ele já se imagina liderando. Não se pode impedir as pessoas de terem ilusões e mesmo alucinações. O caso do Sr. Stedile sem enquadra previsivelmente num caso de ilusão política que o atual ministro da Fazenda já classificou como sendo uma manifestação da doença infantil do esquerdismo. Creio que se trata de carência ideológica, cujos sintomas se manifestam por meio desses arroubos explícitos de megalomania grandiloquente.
O Sr. Stedile ostenta graves falhas de formação, que provavelmente se originam ainda no curso primário. Não se poderia, de outra forma, explicar seus tropeços em cálculos aritméticos elementares. Ele parece deter algumas qualidades de orador e de ilusionista, dessas que se encontram nos mágicos dos circos de interior. Nao se pode crer, com efeito, que batendo de frente com a economia como ele faz a todo momento, ele reuna condições para vir a ser um líder político. Seus liderados só podem ser pessoas submetidas a lavagem cerebral, pois não se pode pensar que pessoas medianamente inteligentes possam aceitar sem pestanejar seus argumentos desprovidos de lógica e de qualquer fundamentação nos dados da realidade.
Na verdade, o Sr. Stedile representa um anacronismo total. Ele deveria ter nascido em outro lugar e em outro momento: em algum romance do realismo socialista, por exemplo. Em todo caso, ele parece estar singularmente deslocado no Brasil moderno, no Brasil do agronegócio e das práticas democráticas. Pessoalmente, acho que ele deveria trabalhar no cinema ou no teatro, uma profissão bem mais adaptada aos seus arroubos surrealistas, do que a modesta profissão de economista, para a qual ele demonstra uma total inaptidão. Resultado final do boletim: reprovado!

Paulo Roberto de Almeida
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)
Belo Horizonte, 15 de julho de 2004