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sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Livro: A integração regional no Sul Global e seus desafios, Tullo Vigevani, Haroldo Ramazzini - Raíssa Araújo Pacheco (Outros Quinhentos)

A integração regional no Sul Global e seus desafios

Com prefácio de Celso Amorim, obra da Editora Unesp faz um balanço analítico da política externa brasileira no caso do Mercosul e da cooperação entre os países latino-americanos, centrando seu foco na atuação do Brasil como um ator fundamental.
Por Raíssa Araújo Pacheco
Outros Quinhentos, 10/10/2025
https://outraspalavras.net/outrosquinhentos/a-integracao-regional-no-sul-global-e-seus-desafios/

A integração regional é um tema que frequentemente surge nos debates sobre desenvolvimento e inserção internacional. Mas qual tem sido, de fato, o real compromisso do Brasil com seus vizinhos? Por que o Brasil, mesmo em momentos de protagonismo, não conseguiu desenvolver uma capacidade de agência efetiva para moldar o bloco conforme seus interesses?

Essas perguntas são desafiadoras e, até então, haviam sido pouco exploradas pela academia especializada. Elas tocam em um ponto nevrálgico da nossa história diplomática: a aparente contradição entre a retórica favorável à integração e a prática, por vezes, hesitante.

Compreender essa dinâmica é essencial para avaliar o passado e planejar o futuro do Brasil no cenário global, especialmente em um espaço vital como o Mercosul.


Para preencher essa lacuna nos debates acadêmicos e oferecer uma análise profunda e crítica, nasceu a obra Os desafios da integração regional no Sul Global: O caso da Política Externa Brasileira para o Mercosul.

Escrita pelos professores do curso de Relações Internacionais Tullo Vigevani (Unesp/ Unicamp/PUC-SP) e Haroldo Ramanzini Junior (Ieri/UFU/UnB), a publicação é uma iniciativa da Editora Unesp.

Outras Palavras e Editora Unesp irão sortear dois exemplares de Os desafios da integração regional no Sul Global: O caso da Política Externa Brasileira para o Mercosul, de Tullo Vigevani e Haroldo Ramanzini Junior, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 20/10, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

O livro tem como objetivo fazer um balanço analítico dos resultados alcançados e das razões dos impasses na política externa brasileira em relação ao Mercosul e à integração regional na América do Sul, observando pelo ponto de vista do Estado e dos atores domésticos do Brasil.

Os autores partem da hipótese de que a experiência da integração europeia no pós-guerra não se refletiu no Sul Global. No caso europeu, a integração foi pensada nos princípios da delegação e do controle das soberanias nacionais. Já nos países subjugados pela exploração colonial, a integração foi estruturada para “fortalecer o nacionalismo e preservar a soberania da dominação externa”, como aponta a cientista política Marina Soares de Lima, no texto de orelha da obra.

Longe de trilharem um caminho simples, Vigevani e Ramanzini Junior adentram na complexidade das relações internacionais do Brasil, analisando os períodos em que a integração esteve no topo da agenda e os momentos em que foi relegada a um segundo plano.

Ao longo dos capítulos, a obra examina os fatores domésticos e internacionais, as conjunturas políticas e as concepções de mundo que influenciaram a ação brasileira.

Os autores exploram por que o país, mesmo sendo a maior economia do bloco, nem sempre exerceu a liderança ou a “capacidade de agência” esperada para impulsionar projetos comuns mais ousados.

O escrito é, portanto, uma leitura indispensável para estudantes de Relações Internacionais, profissionais da área diplomática, pesquisadores e qualquer cidadão interessado em compreender os rumos do Brasil no mundo.

A obra oferece chaves de leitura para decifrar um dos temas mais complexos e persistentes da nossa política exterior, fornecendo uma base sólida para reflexões sobre os caminhos futuros da integração na América do Sul.

Leia, logo abaixo, o prefácio do livro por Celso Amorim, que além de ser o atual assessor-chefe da Assessoria Especial do Presidente da República do Brasil. Foi ministro das Relações Exteriores durante os governos Itamar Franco e Lula, e da Defesa do Brasil durante o mandato de Dilma Rousseff.

Boa leitura!

O Mercosul é um dos principais alicerces da integração regional. São mais de três décadas de esforços políticos, econômicos e sociais para a sua construção. Esse patrimônio foi essencial para manter viva a chama da integração regional, mesmo quando os ventos contrários mais fortes sopraram. Entretanto, sua atuação e sua institucionalidade se transforaram ao longo dessas décadas. Refletir sobre o seu papel hoje continua sendo prioridade da política externa brasileira.

O livro de Tullo Vigevani e Ramanzini Junior lança luz sobre o processo histórico e os principais argumentos e atores sociais mobilizados ao longo da história da diplomacia brasileira no que diz respeito à integração dos países da bacia do Prata e da região como um todo. Esta análise nos permite compreender os desafios e as potencialidades do processo de integração do Mercosul e além dele.

O novo mandato do presidente Lula tem um foco abrangente de revitalização da política de integração regional com a reconstrução da Unasul, a consolidação da Celac e o fortalecimento da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Mas o Mercosul continua sendo o esteio dos processos de integração, ao qual investiremos muito da nossa atenção.

Essa agenda, que é para nós o cumprimento do determinado no parágrafo único do artigo 4o. da nossa Constituição Federal, foi abandonada de forma radical nos últimos anos.

No Brasil, um governo negacionista atentou contra os direitos de sua própria população, rompeu com os princípios que regem a nossa política externa e fechou nossas portas a parceiros históricos. Nosso país optou pelo isolamento do mundo e de seu entorno. Essa postura foi decisiva para o descolamento do país dos grandes temas que marcaram o cotidiano dos nossos vizinhos.

Durante esse período, o Mercosul foi objeto de intenso processo de flexibilização que acabou por enfraquecê-lo. Mesmo assim, mostrou-se resiliente: entre diversos espaços regionais que foram desativados, paralisados ou enfraquecidos, o Mercosul sobreviveu às investidas dos que pretendiam debilitá-lo.

O bloco torna-se ainda mais relevante em um contexto global que apresenta desafios de enorme complexidade. As falhas na cooperação internacional durante a pandemia de Covid-19 ilustram essa necessidade. A América Latina foi pega em seu momento de maior fragmentação, o que contribuiu para que estivéssemos entre as regiões mais afetadas pela pandemia: faltaram vacinas, medicamentos, equipamentos de proteção e coordenação transfronteiriça. Cada um dos nossos países atuou isoladamente, sem uma estratégia conjunta que poderia ter mitigado nossas carências.

O acirramento de rivalidades geopolíticas entre grandes potências nos últimos anos alimenta a eclosão ou recorrência de conflitos com repercussões globais e que se entrelaçam de forma delicada e perigosa. A alta global da inflação e do custo de vida agravaram os retrocessos no combate à fome e à pobreza.

Tudo isso ocorre em um momento de enfraquecimento da governança global, em que as principais instituições mundiais enfrentam dificuldades em lidar com a crise climática e a dupla transição energética e digital.

Vivenciamos igualmente a emergência de uma extrema direita que se articula em nível internacional, valendo-se de nacionalismos excludentes para oferecer soluções simplistas a problemas complexos. A desestabilização de processos eleitorais e o avanço de discursos de ódio atinge de forma especial a América do Sul.

É importante recordar que o Mercosul nasceu no contexto de consolidação de nossas democracias, após décadas de regimes ditatoriais em nossos quatro países. A democracia é condição essencial para o desenvolvimento da integração, como nos lembra o primeiro artigo do Protocolo de Ushuaia, assinado em 1998.

O nosso bloco precisa voltar a cumprir um papel estabilizador na América do Sul. Com a superação da crise política na Venezuela, que vemos avançar nos diálogos entre governo e oposição para a realização de eleições presidenciais, esperamos que o país possa em breve reingressar no Mercosul.

A conclusão do processo de adesão da Bolívia como membro pleno permitirá um aumento significativo do tamanho do Mercosul, tanto em sua dimensão econômica como no âmbito político e social. O Mercosul mostra seu poder de atração gravitacional e a necessidade de continuar se relacionando ativamente com os membros associados.

Diante dos desafios multifacetados dos tempos que correm, a integração regional nos torna a todos mais resilientes. Para além da cooperação, facilita a concertação de posições para que tenhamos uma voz mais forte nos foros internacionais e possamos melhor aproveitar as oportunidades que despontam.

Em 2022, o intercâmbio intra-Mercosul somou 46 bilhões de dólares. Não é pouco, mas está abaixo do auge registrado em 2011, de 52 bilhões de dólares. Estamos aquém do nosso potencial. Nosso comércio se caracteriza pela presença significativa de produtos industrializados, e esse é um ativo que precisa ser valorizado e ampliado. A adoção de uma moeda comum para realizar operações de compensação entre nossos países contribuirá para reduzir custos e facilitar ainda mais a convergência.

O bloco também oferece uma plataforma robusta para negociar acordos comerciais extrazona equilibrados, impulsionando nossas exportações para além de matérias-primas, minérios e petróleo, e ampliando o coeficiente de produtos de maior valor agregado.

A articulação de processos produtivos, inclusive na interconexão energética, viária e de comunicações, garante mais resiliência em nossas cadeias de suprimentos. O Fundo de Convergência Estrutural (Focem), com o qual o Brasil quitou recentemente suas contribuições em atraso, tem especial importância nessa dimensão da atuação do bloco.

Será essencial revitalizar as dimensões política e social da integração, avançando na cooperação em áreas como saúde, educação, proteção ambiental, defesa, e no combate aos ilícitos transnacionais, inclusive nas regiões de fronteira.

A construção de um Mercosul mais democrático e participativo, com o fortalecimento do Parlasul, do Foro Consultivo Econômico Social, e com a retomada da Cúpula Social do Mercosul de forma presencial após quase uma década, fomenta os vínculos entre legisladores, empresários e movimentos sociais dos nossos países e confere maior transparência e legitimidade ao bloco.

A reinstalação do Foro Consultivo de Municípios e Estados Federados é também importante para que os entes subnacionais tenham voz. Seu trabalho nas regiões de fronteira e na governança de projetos como o Corredor Bioceânico é imprescindível.

Resgatar o Mercosul requer não apenas iniciativas de política externa, mas também esforços no plano doméstico. O livro Os desafios da integração regional no Sul Global: o caso da Política Externa Brasileira para o Mercosul oferece insumos valiosos para se pensar ambas as dimensões, assim como sua interconexão.

Ao apresentar um balanço analítico da política externa brasileira em relação ao Mercosul e à integração regional na América do Sul, a edição em língua portuguesa atualiza o texto e o torna mais acessível aos que pesquisam e pensam a integração regional em nosso país. É uma contribuição valiosa em um contexto de incertezas da ordem global e em um projeto democrático que se vale, desde o início, da pesquisa e do diálogo na construção de saídas coletivas.

A história nos mostra que os países em desenvolvimento, unidos, são muito maiores que os desafios que nos afligem.

Só a unidade do Mercosul, da América do Sul e da América Latina e do Caribe nos permitirá retomar o crescimento, combater as desigualdades, promover a inclusão, aprofundar a democracia e garantir nossos interesses em um mundo em transformação.

Parafraseando o papa Paulo VI em sua encíclica sobre o progresso dos povos, a integração e o desenvolvimento são os novos nomes da paz.

SOBRE OS AUTORES

Tullo Vigevani é professor titular da Unesp/Marília, nas áreas de Ciência Política e Relações Internacionais, e professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais, San Tiago Dantas, da Unesp/ Unicamp/PUC-SP. É pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e vice-coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu).

Haroldo Ramanzini Junior possui doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pela Universidade de Harvard. É professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais (Ieri) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), além de editor-chefe da Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI) e pesquisador do CNPq, do INCT-Ineu e do Centro de Estudos Globais (UnB).

Em parceria com a Editora Unesp, o Outras Palavras irá sortear dois exemplares de Os desafios da integração regional no Sul Global: O caso da Política Externa Brasileira para o Mercosul, de Tullo Vigevani e Haroldo Ramanzini Junior, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 20/10, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Tullo Vigevani: repercussoes internacionais da crise brasileira - CRIES

https://medium.com/@CRIESLAC/crise-no-brasil-e-seu-impacto-regional-4f95f9a1e2ef#.8yktb7z51

Crise no Brasil e seu impacto regional

Tullo Vigevani, Universidade Estadual Paulista

 

  Coordinadoria Regional de Investiogaciones Económicas y Sociales

Tem sido escrito muito sobre a crise brasileira. Aguçou-se decisivamente em março de 2016. Neste 1 de maio, em que houve manifestações em favor de Dilma Rousseff, e algumas contrárias, ninguém dúvida de que a maioria do Senado aprovará o afastamento provisório da presidenta, talvez em 11 de maio. Na Câmara dos Deputados a aceitação das acusações foi aprovada amplamente, por mais de dois terços do plenário, 367 a 137, dia 17 de abril.
A crise tem raízes longínquas. Tem raízes na história do Brasil (lembremos 1954, 1961, 1964, talvez 1992, para não falar de antes). Mais especificamente origina-se em 2005, quando começou a crise chamada “mensalão”. O Partido dos Trabalhadores acreditou que poderia ser superada com novas vitórias eleitorais. Os métodos para conseguir votos no Parlamento de parte dos governos têm raízes seculares: oligarquia, patrimonialismo, etc.. E continuaram depois da redemocratização e da constituição de 1988, inclusive nos governos do PT. Ao mesmo tempo, diferentes fatores confluíram para a criação de instrumentos do Estado que fortaleceram os controles. Essa ação foi reconhecidamente levada adiante e fortalecida pelo Partido dos Trabalhadores, nos governos Lula e Rousseff. Some-se a isso novos regimes internacionais que também estimularam controles, inclusive da corrupção. Não é nosso objetivo discutir as causas da crise. Mas, pelas suas consequências para a política externa do Brasil, algumas devem ser lembradas.
A política internacional alcançou prestígio em alguns pontos, em geral reconhecidos: visibilidade, soft-power, influência em algumas negociações (OMC, Meio ambiente, sistema financeiro, integração regional). Ao mesmo tempo, reconheça-se, foi combatida intensamente, ao menos desde 2004, pela oposição, o DEM por exemplo, mas também pelo PSDB. Tornou-se objeto de disputa interna de bastante importância. Aspecto de alta relevância para a compreensão da atual situação a se considerar é a gravíssima crise econômica. A política econômica dirigiu-se ao objetivo de justiça social, grande bandeira foi o “combate à fome” e à diminuição da extrema desigualdade. Segundo Pierre Salama, é neste campo que deve ser encontrada a origem da atual tragédia. A reprimarização da economia e a debilidade da política industrial também têm origens remotas, certamente na segunda metade do governo Sarney, a partir de 1988, onde os vetores globalização e comércio ganharam maior peso. A abertura era inevitável, mas os instrumentos do Estado para a adaptação, para alcançar competitividade, diferentemente de Coréia, China, etc., permaneceram débeis. Os governos seguintes, inclusive o de Cardoso, seguiram esse caminho. O governo Lula, apesar de algumas ações, não contrastou a tendência, que finalmente levou à crise. O desenvolvimento tecnológico, mesmo com a densidade do debate, não conseguiu caminhar, reduzindo a competividade. Certamente outras causas contribuíram, juros, taxa de câmbio, etc.. Inútil falar de preço de matérias primas, de China, de Europa, têm sido bastante discutidos.
Fator propriamente político dinamizador da crise é que os governos Lula e Rousseff nunca foram reconhecidos como governos próprios de parte dos poderes fortes, econômicos, sociais, burocráticos. Esses poderes respeitaram e colaboraram durante algum tempo. Mas acreditavam não tratar-se do governo deles. O que aconteceu em 2015 e nos primeiros meses de 2016 é declaradamente o jogo do “quanto pior melhor”. É verdade que não é fenômeno especificamente brasileiro, algo da relação dos republicanos com Obama assemelha-se, quem se preocupa com governabilidade os estudará. O resultado é que no governo Rousseff evoluiu-se para a ingovernabilidade. Em interessante ponderação de Roberto Schwartz, o risco é de dar-se a mesma tendência no futuro governo Michel Temer ou quem seja. A oposição a Rousseff argui que o impeachment está inscrito na constituição, o que é verdadeiro. Os debates que levam a ele, como nunca antes na história, foram amplamente divulgados. Nisso há diferença em relação aos chamados “novos golpes”. A ampla divulgação teve a virtude de tornar públicos os argumentos a favor e contra. Tanto os argumentos jurídicos quanto os políticos, no mínimo, se mostraram sujeitos à sua refutação. O uso fora das normas dos recursos públicos, acusação central, acabou tendo pouco peso frente ao fato que o governo há bastante tempo tinha sua base parlamentar corroída. Tudo isso coloca uma hipoteca sobre a legitimidade futura, quaisquer sejam os desdobramentos imediatos. Pode-se prever instabilidade, portanto consequências negativas para a ação internacional do país, que serão superadas apenas a longo prazo. Com legitimidade, estabilidade, com desenvolvimento.
Nosso objetivo é discutir os impactos regionais, sul e latino-americanos da crise. A relação entre política interna e internacional é de reconhecida importância. A desaceleração econômica (PIB: -3,8 % em 2015) em curso desde 2011 vem limitando a capacidade de ação do Brasil. Segundo formuladores da política externa ligados ao Partido dos Trabalhadores, essa limitação já está em curso, desativando parte das iniciativas que dependem de uma presidência ativa. Um exemplo seria o congelamento do IBAS (Fórum de Diálogo Índia, Brasil, África do Sul) e outro seria a razoável passividade frente ao fracasso das negociações comerciais multilaterais, com estancamento da Rodada Doha e semi-paralisia da OMC. Sobre a política externa a consequência maior da crise foi um sentido de paralisia, e sinais de movimentos que já levam a mudanças, algumas delas convergindo com os objetivos declarados da oposição política. Constrangimentos internos passaram a incidir de forma significativa, ampliam a atuação de outros órgãos em áreas específicas. No tocante ao comércio exterior, parte das iniciativas passaram ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior MDIC). Segundo notícias de imprensa atribuídas ao vice-presidente Michel Temer, futuro presidente se o afastamento da presidente se confirmar, o provável ministro do Exterior, José Serra, deverá ter não apenas as atribuições tradicionais, mas incorporar as negociações de comércio exterior até agora geridas pelo MDIC.
Aspectos menos discutidos também sinalizam debilitamento do softpower alcançado nas administrações anteriores e baixa consideração do papel internacional do Brasil. A falta de importância que nesta crise se atribui a um dos trunfos alcançados anos atrás, a realização da Olimpíada de 2016 no Rio de Janeiro, mostra o clima preocupante em que se deverá debater a política externa. Apenas para lembrar, quando em 1992 cresceu na opinião pública, entre os partidos políticos e nas elites, a pressão pelo impeachment do presidente Collor de Mello, houve consenso no adiamento do processo para evitar uma grave crise ou um vácuo de poder no momento da realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio 92.
Considerando a crise, certamente haverá uma rediscussão da política externa. Há forte pressão das forças que serão governo com o afastamento da Presidenta (PSDB, DEM e mesmo do PMDB, este parte do atual e do futuro governo, partido de Michel Temer), pela mudança de aspectos da política regional e geral. As relações econômicas externas, sobretudo a não inserção em cadeias produtivas globais, é objeto de críticas crescentes e o movimento para maiores vínculos com os países centrais deverão crescer. A busca do fortalecimento dos vínculos com a Aliança do Pacífico em curso no governo Rousseff, sinalizará o caminho para a discussão de novas relações com o TPP e, provavelmente, se fortalecerá a busca de inserção no debate sobre a área de livre comércio EUA-UE. Essas tendências deverão encontrar oposição das forças políticas e sociais afastadas do governo, o que tornará a capacidade de negociar do governo mais díficil. Será importante observar na nova relação de forças, o comportamento das diferentes áreas empresariais, não apenas industriais, mas também agro-business, serviços, bancos. Estes setores terão que avaliar a relação custo/benefício da nova inserção. O que não é simples. A nova geração de tratados assinados ou em negociação mostra que grupos fortemente críticos são fortes em diferentes países.
No caso do Mercosul, o objetivo de redução a uma área de livre comércio, pode ferir interesses brasileiros consolidados. Certamente será um campo em que a relação entre desejos e realidades se apresenta. Considerando as dificuldades em que se encontram boa parte dos países da América do Sul, aumentará a crítica ao Mercosul. Segundo essas críticas, o bloco seria um obstáculo a acordos com outros países por ser uma união alfandegária. Dificultaria acordos com as economias mais desenvolvidas — sobretudo com Estados Unidos. Ao mesmo tempo, a contrapressão das vantagens da união alfandegária para as empresas com produtos de maior valor agregado é importante. Em 2014 produtos manufaturados correspondiam a 77% do total das exportações brasileiras para os outros membros do Mercosul. Enquanto para os outros principais parceiros representaram: China, 4%; União Europeia, 37%; Estados Unidos 55%. Vistas algumas coincidências entre os membros fundadores do Mercosul, é importante observar quais propostas poderiam ser elaboradas no Palacio San Martin e no Palácio do Itamaraty.
No caso da Unasul, a ideia de cooperação poderia ser preservada, visto tratar-se de compromisso menos vinculante. De todo modo, os planos que dependem de aportes brasileiros não estão assegurados. Os financiamentos, com origem no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), são objeto de forte crítica, estimulando Ministério da Fazenda, do Planejamento e Banco Central a restringirem a continuidade.
A crise econômica e o combate à corrupção tiveram como subproduto o enfraquecimento de alguns dos grandes grupos empresariais, estatais ou privados, que deram sustentação a uma política externa mais ativa na região, quando se esboçou o fortalecimento da presença economica regional de parte do Brasil. Empresas como Petrobras, grandes empreiteiras da área da construção civil e pesada, e mesmo grupos industriais e de serviços, estão enfraquecidos, alguns correm o risco de destruição.
A atual crise demonstra porque não se podia dizer que a política brasileira, particularmente a hemisférica, mesmo durante o governo Lula, tivesse preocupação por uma liderança acima das próprias possibilidades. O interesse pela região sul-americana é fator histórico estruturante da política exterior. Isso não será modificado, qualquer seja o resultado da atual crise. O que existe e assim continuará por alguns anos, é enfraquecimento de atuação, mesmo considerando que o maior peso relativo do Brasil continuará existindo. A melhoria das relações com os Estados Unidos ganharão relevância.
O Estado brasileiro deverá manter os compromissos com as organizações regionais. Após um período de posicionamento forte contra o unilateralismo norte-americano, Iran, NSA, há o crescimento da reivindicação de empresários, forças políticas, com impacto na administração do Estado, visando a adesão a regimes internacionais formatados pelos Estados centrais. Objetivamente, o Brasil continua como ator de média capacidade internacional, é contribuinte médio na assistência humanitária internacional, é contribuinte significativo para as ações de peacekeeping da ONU, tornou-se uma razoável referência nos índices de desenvolvimento humano, participa em cargos significativos nas organizações internacionais (WTO, FAO, etc.), é membro do G-20 financeiro, teve sua quota de participação no IMF aumentada de 1,78 % para 2,3%, juntamente com os outros países BRICS.
Portanto, a crise que tem pesado impacto de curto prazo não deverá eliminar traços clássicos da política externa brasileira. O interesse pelas relações com a China e pela ativa participação em diferentes fóruns internacionais, particularmente os BRICS, provavelmente será mantido. Os atuais impasses no cenário político doméstico não se resolverão rapidamente, mesmo com Temer na presidência. A pergunta que podemos fazer, sem resposta, é se o continuo agravamento da crise deixa em aberto a possibilidade de mudanças radicais nos valores de autonomia, soberania, multilateralismo e no objetivo de fortalecimento das instituições regionais. Nossa hipótese é que mudanças radicais não são possíveis. O Brasil participa há décadas, desde os anos 1980, dos principais regimes internacionais, tendo inclusive um papel destacado na sua elaboração, como é o caso do clima, foi ator relevante na construção das instituições regionais nas décadas de 1980, 90 e em todos os anos 2000. O que é verdade é que a crise, sobretudo econômica, debilita a capacidade de ação. Isso perdurará, ao que deve se acrescentar um período de crise de confiança na estabilidade e na legitimidade da governança no Brasil.