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quarta-feira, 10 de agosto de 2022

O Brasil e sua circunstância geográfica e diplomática - Paulo Roberto de Almeida (Interesse Nacional)

 Meu trabalho mais recente publicado:  

1466. “O Brasil e sua circunstância geográfica e diplomática”, portal Interesse Nacional (10/08/2022; link:https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/o-brasil-e-sua-circunstancia-geografica-e-diplomatica/). Relação de Originais n. 4209.

O Brasil e sua circunstância geográfica e diplomática

Por Paulo Roberto de Almeida*

Portal Interesse Nacional, 10 de agosto de 2022

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/o-brasil-e-sua-circunstancia-geografica-e-diplomatica/


Invasão da Ucrânia pela Rússia criou uma nova agenda nas relações internacionais que coloca o mundo ante uma nova divisão geopolítica. Próximo governo brasileiro terá de efetuar uma revisão dos conceitos básicos da atual diplomacia, com a adoção de uma política externa que vise a recuperação da credibilidade externa do país com foco em um retorno ao multilateralismo, na inserção do país na economia global, e na revisão das atuais ‘alianças estratégicas’ num sentido puramente pragmático


O filósofo espanhol Ortega y Gasset, escreveu, nas suas Meditaciones del Quijote (1914), uma frase constantemente repetida pelos seus admiradores: “Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo, eu tampouco me salvo.”

Cabe, com efeito, atribuir forte importância à geografia, que pode ser considerada como a circunstância inevitável no plano das nações ou, mais precisamente, dos Estados e sua geopolítica. Em outros termos, os Estados podem escolher a sua organização interna, na esfera política e econômica, e sobretudo suas relações externas, mas eles não podem escolher a sua geografia. Ela lhes é dada pela história, ou seja, pelo longo desenvolvimento de um povo –ou vários deles– num determinado território, partindo dessa condição primária para constituir uma nação, ou um Estado, ou seja, a representação dessa nação no âmbito regional e internacional. A do Brasil é a América do Sul, sempre foi e sempre será.

‘A circunstância geográfica do Brasil, a sua projeção estratégica se estende não muito naturalmente pelos vastos espaços da América do Sul, e não muito além disso’

A circunstância geográfica do Brasil, a sua projeção estratégica –para usar um conceito dos geopolíticos– se estende não muito naturalmente pelos vastos espaços da América do Sul, e não muito além disso. Não naturalmente, pois que existem as barreiras naturais da Floresta Amazônica, dos contrafortes andinos, do próprio pantanal e da quase total ausência de facilidades de comunicações terrestres ou mesmo fluviais nos vastos ermos de nosso heartland, o cerrado central, penosamente acessados apenas pelos grandes rios da bacia amazônica, ao norte, e da bacia platina, ao sul. Nessa região se situava, justamente, o espaço natural de projeção do poder instalado na costa atlântica do Brasil, tanto que a metrópole portuguesa tentou por diversas vezes assenhorear-se da margem superior do Prata, instalando uma colônia em Sacramento e depois lutando contra os castelhanos para tentar manter a Província Oriental, ou Cisplatina, ou pelo menos garantir a livre navegabilidade dos rios da bacia do Prata, como única maneira de alcançar a província do Mato Grosso.

Como não se pode discutir com a geografia –pois ela existe, simplesmente, como dizia o teórico geopolítico Nicholas Spykman–, cabe examinar a circunstância diplomática do Brasil. Desse ponto de vista, se pode tomar como natural uma política externa do Brasil que buscasse construir um vasto espaço econômico integrado no coração da América do Sul, pela liberalização recíproca dos mercados e pela própria abertura até unilateral dos seus próprios mercados a todos os vizinhos regionais. Ou seja, construindo um espaço natural de projeção econômica, política e cultural do Brasil no seu entorno imediato, garantindo paz, segurança e prosperidade na América do Sul, os espaços “externos” seriam alcançados para fins de desenvolvimento econômico e social, mobilizando capitais, tecnologia, recursos de todos os tipos para conectar nossa economia, e a do espaço de integração liderado pelo Brasil, à dos grandes centros dinâmicos da economia global.

Tal seria a conformação de um relacionamento exterior, regional, continental e mais além, totalmente compatível com nossa dotação de fatores, nossas vantagens comparativas, nossa capacidade competitiva e nossas ambições diplomáticas de desempenhar um papel positivo em nosso “ambiente natural” –as circunstâncias geográficas– e mais além, em outros quadrantes de um planeta ainda muito desigual, mas vocacionado ao crescimento e à prosperidade, desde que as grandes potências, as economias avançadas, mas também as potências médias, como o Brasil, se concertassem em garantir paz e segurança –como rezam os primeiros artigos da Carta da ONU– e, a partir daí, traçar um vasto plano de eliminação da miséria, de redução da pobreza, e de cooperação ampliada visando elevar os indicadores de bem-estar de imensos contingentes dos povos e nações do planeta.

‘As circunstâncias geográficas e diplomáticas do Brasil recomendariam uma dedicação especial de sua política externa no sentido de recompor as bases de uma liderança natural em direção dos países vizinhos do continente sul-americano como a base indispensável para sua projeção global’

As circunstâncias geográficas e diplomáticas do Brasil recomendariam, portanto, uma dedicação especial de sua política externa no sentido de recompor as bases de uma liderança natural, que se exerceria a partir de um amplo projeto de abertura econômica –unilateral, se for o caso– em direção dos países vizinhos do continente sul-americano, como a base indispensável para sua projeção global. Assim foi feito sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, que refinou o antigo conceito regional da diplomacia brasileira, no sentido de se falar mais, e agir diretamente na América do Sul, preferencialmente a uma América Latina vagamente estruturada e submetida a outras circunstâncias que não apenas às dos povos e Estados ibero-americanos. Assim também foi feito no regime sucessivo, o de Luiz Inácio Lula da Silva, que buscou inclusive, devido a um não disfarçado antiamericanismo, afastar a OEA da América do Sul e criar, em seu lugar, novas instâncias de consulta e coordenação que, depois de idas e vindas, acabaram resultando na Unasul e em alguns de seus órgãos assessórios.

Mas, não contente de dispor de tais “vantagens comparativas” no continente, a antiga diplomacia lulopetista decidiu empreender novos saltos extrarregionais de puro voluntarismo diplomático internacional, primeiro congregando dois outros sócios no projeto do IBAS, a Índia e a África do Sul, depois se lançando com a Rússia, na construção do BRICS, que incorporou a China –sempre propensa a se utilizar de novos tabuleiros para seu projeto de preeminência global–, ambos carentes de estudos técnicos compatíveis com as prioridades econômicas e diplomáticas do Brasil, apenas respondendo a aspirações grandiosas de projeção internacional do então chefe de Estado.

Depois da invasão e anexação ilegais da península da Crimeia, juridicamente sob a soberania da Ucrânia, em 2014, pelo governo de Vladimir Putin, a nova decisão do líder russo de empreender uma guerra de agressão contra o país vizinho, em fevereiro de 2022, acelerou alguns desenvolvimentos que já se processavam no ambiente internacional, mas sobretudo criou uma nova agenda nas relações internacionais que coloca o mundo ante uma nova divisão geopolítica que se pensava superada na década final do século XX. Depois de quase meio século de um cenário bipolar –confrontando dois sistemas políticos e econômicos antagônicos, o mundo parecia encaminhar-se para uma “nova ordem internacional”, de impulso à globalização sobre a base de sistemas de mercados razoavelmente ancorados na ordem econômica de Bretton Woods: o multilateralismo econômico fundado num consenso básico em torno dos intercâmbios abertos administrados pela tríade FMI-BM-OMC.

No máximo, a antiga Guerra Fria geopolítica tinha dado lugar a uma nova Guerra Fria econômica, caracterizada pelo encolhimento geográfico e econômico da antiga União Soviética e pela irresistível e extraordinária ascensão econômica da China, impulsionada desde sua adesão ao GATT-OMC em 2001. Mas, o que foi chamado de “unilateralismo arrogante” por parte dos Estados Unidos, na última década do século XX, assim como sua postura paranoica de considerar a China um “adversário estratégico”, incitou esta última a rever sua posição mantida desde os anos 1970 (ou talvez até antes), de ver nos EUA um possível aliado na confrontação que ela mantinha com a União Soviética –por diversos motivos, inclusive territoriais– e de passar a reinserir o gigante americano no rol das antigas potências ocidentais que pretendiam manter o gigante asiático –quando este era o “homem doente” da Ásia– numa espécie de continuidade do “século de humilhações”.

O que ocorreu a partir daí foi uma reaproximação entre as duas grandes autocracias socialistas do passado, mediante diversos mecanismos –entre eles o próprio BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai–, até resultar na “aliança sem limites” proclamada por Xi Jinping junto a Putin, menos de um mês antes da invasão das forças russas contra a Ucrânia. Essa quase repetição da invasão da Polônia por Hitler, em 1939, criou uma nova situação internacional que colocou o Brasil em face de dilemas que não tinham sido registrados desde aquela época da Segunda Guerra Mundial. Com efeito, mesmo a ditadura do Estado Novo, depois do atropelo feito contra a Constituição de 1934, substituída pela “polaca” de novembro de 1937, não ousou contrariar a doutrina jurídica seguida sem hesitações pela diplomacia brasileira desde o Império: o Brasil não reconheceu a suserania nazista sobre a Polônia, assim como não reconheceu a incorporação dos três Estados bálticos ao império soviético em 1940, pois que tais usurpações do Direito Internacional tinham sido efetuadas por meio da força bruta, tal como se processou no caso da anexação russa da Crimeia, em 2014, e na subsequente invasão da Ucrânia oriental, assim como do resto do país, em 2022.

‘O Brasil conheceu, desde 2019, um processo de deterioração da qualidade de suas políticas públicas’

O Brasil conheceu, desde 2019, um processo de deterioração da qualidade de suas políticas públicas, a começar pelo fato de que, justamente, o país nunca exibiu, nesse período, um programa definido de políticas gerais ou setoriais em direção a metas ou objetivos claramente explicitados. O que tivemos, mais propriamente, foi uma ruptura com padrões usuais de governança, parcialmente na economia, enganosamente na política –que, a despeito dos anúncios iniciais, voltou ao velho padrão da “velha política”– e, bem mais nitidamente, em áreas setoriais, como meio ambiente, direitos humanos, cultura e educação e, sobretudo, nas relações exteriores, todas elas contribuindo para uma deterioração excepcional da credibilidade brasileira no plano internacional. Poucas dessas rupturas superam o desastre incomensurável que tem sido o rebaixamento da imagem do Brasil no ambiente externo e uma perda de qualidade notável da ação externa da diplomacia profissional.

A maior parte desses problemas deriva dramática incapacidade do presidente de não só não corrigir os problemas apontados por observadores isentos, mas de criar novos problemas e agravar os existentes, numa dramática demonstração de ausência de governança. Na área do meio ambiente, essa extraordinária capacidade de criar problemas para si próprio e para o país foi evidente, pois o que se registrou foram recordes seguidos de destruição ambiental, sobretudo na Amazônia, que estão justamente no cerne das críticas internacionais à atual postura do governante brasileira, ademais de seus reiterados ataques ao sistema democrático do Brasil, especialmente em relação ao seu fiabilíssimo sistema eleitoral.

O próximo governo terá de efetuar uma revisão dos conceitos básicos da atual diplomacia, com a adoção de uma política externa que vise a recuperação da credibilidade externa do país. Os eixos principais são, na área política, um retorno ao multilateralismo com base no Direito Internacional e em princípios e valores tradicionais de nossa diplomacia; na área econômica, cabe perseguir a inserção do país na economia global, por meio da abertura econômica geral e, sobretudo, da integração regional. Caberia, igualmente, proceder à revisão das atuais “alianças estratégicas” num sentido puramente pragmático, não mais ideológico. O Brasil precisa antes de tudo reforçar a sua circunstância geográfica e diplomática.


* Paulo Roberto de Almeida é diplomata, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional.