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domingo, 23 de março de 2014

Diplomatas e os desafios do presente: acoes e omissoes - Paulo Roberto de Almeida

Diplomatas e os desafios do presente: ações e omissões

Paulo Roberto de Almeida

Diplomatas, antes de serem servidores do Estado, ou funcionários de algum governo, são cidadãos de um país, membros de uma nação, indivíduos possuidores de consciência individual, de valores morais, seja adquiridos em família, ou no curso de sua formação e exercidos ao longo de toda uma vida e no âmbito de suas atividades profissionais. Falar dos diplomatas enquanto pessoas significa reconhecer-lhes o caráter de cidadãos que buscaram exercer sua vocação nos assuntos internacionais do seu país. O país, por definição, é sempre maior do que a instituição que os abriga, e obviamente do que o próprio poder institucional, o Executivo, no qual exercem sua atuação.
Diplomatas também possuem certas características individuais que os distinguem dos demais servidores do Estado, ou de profissionais do setor privado. O local de nascimento é, em grande medida, um acidente geográfico; o serviço do Estado pode ser o produto de um determinado contexto social ou o resultado de uma escolha deliberada, mas a consciência está de certa forma vinculada à vocação do diplomata. Alguns podem ter nascido em um país, mas acabaram servindo a outros, como nos casos de Henry Kissinger e Madeleine Albright.
Diplomatas são potencialmente “internacionais”, ainda que eles possam ser patriotas entranhados, dispostos a dar a vida pelo seu país de origem, ou a serviço do Estado para o qual trabalham. A nação à qual pertence esse Estado é, também por definição, superior ao Estado, embora em alguns casos o Estado precede a nação, e pode até ter participado do seu processo de formação. Nesse tipo de situação, o Estado pode extravasar seus limites naturais e até seu mandato constitucional, que seriam os de servir à nação, para servir-se da nação. Como o Estado é uma entidade impessoal, cabe a um determinado governo a tarefa de submeter servidores do Estado aos seus interesses específicos, ou seja, colocá-los a serviço de políticas definidas pelo grupo político que detém o poder legalmente e temporariamente. 
Diplomatas são pessoas que, em primeiro lugar, precisam exibir um enorme conhecimento sobre o seu país e sobre o mundo. Para chegar a tal nível de saber, muito superior ao das pessoas comuns, talvez equivalente ao de vários especialistas reunidos – em economia, em direito, em história, em política, em línguas, em cultura, de modo geral – os diplomatas se preparam intensamente para o concurso de admissão, e depois continuam estudando seriamente, tanto para o desempenho prático de suas tarefas correntes, quanto para eventualmente ultrapassar novos patamares de qualificação que constituem requisitos para a ascensão funcional. O fato de os diplomatas se submeterem a tantas exigências de estudo, de poder observar outras realidades e de efetuar uma comparação entre essas realidade e a sua própria, os torna naturalmente propensos a manter um espírito crítico sobre todas e cada uma delas, inclusive e principalmente sobre a sua própria. Esse fato os torna naturalmente conscientes e preocupados.
Sobre o quê, exatamente, deveriam eles estar conscientes e preocupados? Obviamente sobre a realidade que os cerca, que condiciona o seu trabalho e que determina suas ações, ou omissões. Trata-se de uma constatação prima facie: existem ações e omissões, do trabalho diplomático, na vida profissional dos diplomatas, na sua percepção do mundo, que devem tocar algumas cordas em sua consciência, e talvez deixá-los preocupados com o sentido de algumas dessas ações ou omissões.
Não é preciso recorrer à palavra crise – bastante desgastada por usos e abusos recorrentes – para referir-se ao estado atual de preocupações dos diplomatas, com o seu trabalho, com o seu país, com a região.  Circunstâncias geográficas, relações de cercania impõem um conhecimento direto do que se passa ao redor, após o que essas realidades vizinhas passam a impactar no trabalho diplomático e também a consciência dos diplomatas. Seriam eles indiferentes ao que se passa no ambiente regional?
Nesses lugares, os valores da liberdade, da democracia, dos direitos humanos estão sendo claramente colocados em perigo. As condições essenciais para uma vida digna e para o exercício das liberdades individuais já desapareceram; ou elas estão sob constante ameaça, a continuarem as políticas atualmente em curso. A situação de indivíduos, ou de grupos inteiros, está sendo minada pelo exercício do poder arbitrário, pelo desrespeito à lei, pelo uso da força ou da violência contra os que não se submetem ao poder arbitrário. Mesmo a mais elementar das liberdades, a de expressão, vem sendo ameaçada pela progressiva extensão de um credo que, mesmo minoritário, utiliza-se do controle do poder para permitir, única e exclusivamente, a expressão de suas próprias crenças e opções políticas. Padrões morais que julgávamos estabelecidos desde o final das tiranias do século XX parecem ceder ao crescente predomínio daqueles que não pretendem se submeter ao império da lei; estes atuam como se as vitórias eleitorais lhes dão automaticamente o direito de impor seus interesses peculiares, geralmente de caráter partidário.
Diplomatas não deveriam ser indiferentes a essas realidades. Presentes em todos os lugares nos quais podem ser diretamente observados fenômenos como esses, ou muito bem informados pelos meios de comunicação disponíveis, eles podem refletir sobre todos eles, e formar suas próprias ideias sobre o sentido de suas ações – ou omissões – em face de realidades que rompem com certos padrões morais, ou com o que está escrito em leis fundamentais, ou até nos discursos oficiais.
O que os diplomatas observam, o que eles constatam, o que eles informam o que eles fazem, ou de deixam de fazer, as instruções que eles recebem, como tudo isso impacta suas consciências, como tudo isso se reflete em suas preocupações cidadãs, ou como simples seres humanos? Qual o sentido moral de certas ações ou omissões? Qual a coerência intrínseca entre elas e o que figura na lei, nos princípios fundamentais, ou ainda, nos valores que eles acreditam defender, que deram sentido ao seu esforço para ingressar na carreira e que lhe guiou os primeiros passos no itinerário que ele julgam digno de suas aspirações e dos projetos que eles fizeram para suas vidas e para o país?
Quando existe um questionamento sobre tudo isso é porque determinadas realidades estão impactando a consciência dos diplomatas enquanto cidadãos, estão preocupando os diplomatas enquanto representantes de um país, enquanto agentes de um Estado, eventualmente enquanto servidores de um determinado governo. As diferentes realidades recobertas por esses conceitos, os limites que alguns deles podem impor ao exercício de alguns outros não deveriam impedir os diplomatas de pensar sobre o sentido de suas ações – ou omissões – e de expressar seus sentimentos de alguma forma, mesmo que de maneira indireta e não identificada.
Em alguns momentos da vida de uma nação, a dignidade pessoal e a consciência de continuar aderindo a certas posturas morais, a defesa de valores e princípios que se conformam a padrões civilizatórios – os mais altos que a humanidade alcançou ao longo de uma longa e tortuosa caminhada nos séculos precedentes – todas essas expectativas individuais ou coletivas deveriam estar acima das contingências circunstanciais ou dos interesses de grupos que monopolizam, por momentos, o poder político.
Diplomatas sabem disso. Não deveria ser difícil expressar essas ideias concretamente, e dissentir, quando a dissensão está do lado dos padrões morais, contra interesses partidários que apontam claramente para outra direção. CQD.


Hartford, 23 março de  2014