Diplomatas e os desafios do
presente: ações e omissões
Paulo Roberto de Almeida
Diplomatas, antes de serem
servidores do Estado, ou funcionários de algum governo, são cidadãos de um
país, membros de uma nação, indivíduos possuidores de consciência individual, de
valores morais, seja adquiridos em família, ou no curso de sua formação e
exercidos ao longo de toda uma vida e no âmbito de suas atividades
profissionais. Falar dos diplomatas enquanto pessoas significa reconhecer-lhes
o caráter de cidadãos que buscaram exercer sua vocação nos assuntos
internacionais do seu país. O país, por definição, é sempre maior do que a
instituição que os abriga, e obviamente do que o próprio poder institucional, o
Executivo, no qual exercem sua atuação.
Diplomatas também possuem
certas características individuais que os distinguem dos demais servidores do
Estado, ou de profissionais do setor privado. O local de nascimento é, em
grande medida, um acidente geográfico; o serviço do Estado pode ser o produto
de um determinado contexto social ou o resultado de uma escolha deliberada, mas
a consciência está de certa forma vinculada à vocação do diplomata. Alguns
podem ter nascido em um país, mas acabaram servindo a outros, como nos casos de
Henry Kissinger e Madeleine Albright.
Diplomatas são potencialmente
“internacionais”, ainda que eles possam ser patriotas entranhados, dispostos a
dar a vida pelo seu país de origem, ou a serviço do Estado para o qual
trabalham. A nação à qual pertence esse Estado é, também por definição, superior
ao Estado, embora em alguns casos o Estado precede a nação, e pode até ter participado
do seu processo de formação. Nesse tipo de situação, o Estado pode extravasar
seus limites naturais e até seu mandato constitucional, que seriam os de servir
à nação, para servir-se da nação. Como o Estado é uma entidade impessoal, cabe a
um determinado governo a tarefa de submeter servidores do Estado aos seus
interesses específicos, ou seja, colocá-los a serviço de políticas definidas
pelo grupo político que detém o poder legalmente e temporariamente.
Diplomatas são pessoas
que, em primeiro lugar, precisam exibir um enorme conhecimento sobre o seu país
e sobre o mundo. Para chegar a tal nível de saber, muito superior ao das
pessoas comuns, talvez equivalente ao de vários especialistas reunidos – em
economia, em direito, em história, em política, em línguas, em cultura, de modo
geral – os diplomatas se preparam intensamente para o concurso de admissão, e
depois continuam estudando seriamente, tanto para o desempenho prático de suas
tarefas correntes, quanto para eventualmente ultrapassar novos patamares de
qualificação que constituem requisitos para a ascensão funcional. O fato de os
diplomatas se submeterem a tantas exigências de estudo, de poder observar
outras realidades e de efetuar uma comparação entre essas realidade e a sua
própria, os torna naturalmente propensos a manter um espírito crítico sobre
todas e cada uma delas, inclusive e principalmente sobre a sua própria. Esse
fato os torna naturalmente conscientes e preocupados.
Sobre o quê, exatamente,
deveriam eles estar conscientes e preocupados? Obviamente sobre a realidade que
os cerca, que condiciona o seu trabalho e que determina suas ações, ou
omissões. Trata-se de uma constatação prima facie: existem ações e omissões, do
trabalho diplomático, na vida profissional dos diplomatas, na sua percepção do
mundo, que devem tocar algumas cordas em sua consciência, e talvez deixá-los
preocupados com o sentido de algumas dessas ações ou omissões.
Não é preciso recorrer à
palavra crise – bastante desgastada por usos e abusos recorrentes – para
referir-se ao estado atual de preocupações dos diplomatas, com o seu trabalho,
com o seu país, com a região.
Circunstâncias
geográficas, relações de cercania impõem um conhecimento direto do que se passa
ao redor, após o que essas realidades vizinhas passam a impactar no trabalho
diplomático e também a consciência dos diplomatas. Seriam eles indiferentes ao que se passa no
ambiente regional?
Nesses lugares, os valores
da liberdade, da democracia, dos direitos humanos estão sendo claramente
colocados em perigo. As condições essenciais para uma vida digna e para o
exercício das liberdades individuais já desapareceram; ou elas estão sob
constante ameaça, a continuarem as políticas atualmente em curso. A situação de
indivíduos, ou de grupos inteiros, está sendo minada pelo exercício do poder
arbitrário, pelo desrespeito à lei, pelo uso da força ou da violência contra os
que não se submetem ao poder arbitrário. Mesmo a mais elementar das liberdades,
a de expressão, vem sendo ameaçada pela progressiva extensão de um credo que,
mesmo minoritário, utiliza-se do controle do poder para permitir, única e
exclusivamente, a expressão de suas próprias crenças e opções políticas. Padrões
morais que julgávamos estabelecidos desde o final das tiranias do século XX
parecem ceder ao crescente predomínio daqueles que não pretendem se submeter ao
império da lei; estes atuam como se as vitórias eleitorais lhes dão
automaticamente o direito de impor seus interesses peculiares, geralmente de
caráter partidário.
Diplomatas não deveriam
ser indiferentes a essas realidades. Presentes em todos os lugares nos quais
podem ser diretamente observados fenômenos como esses, ou muito bem informados
pelos meios de comunicação disponíveis, eles podem refletir sobre todos eles, e
formar suas próprias ideias sobre o sentido de suas ações – ou omissões – em
face de realidades que rompem com certos padrões morais, ou com o que está
escrito em leis fundamentais, ou até nos discursos oficiais.
O que os diplomatas
observam, o que eles constatam, o que eles informam o que eles fazem, ou de
deixam de fazer, as instruções que eles recebem, como tudo isso impacta suas
consciências, como tudo isso se reflete em suas preocupações cidadãs, ou como
simples seres humanos? Qual o sentido moral de certas ações ou omissões? Qual a
coerência intrínseca entre elas e o que figura na lei, nos princípios
fundamentais, ou ainda, nos valores que eles acreditam defender, que deram
sentido ao seu esforço para ingressar na carreira e que lhe
guiou os primeiros passos no itinerário que ele julgam digno de suas aspirações
e dos projetos que eles fizeram para suas vidas e para o país?
Quando existe um
questionamento sobre tudo isso é porque determinadas realidades estão
impactando a consciência dos diplomatas enquanto cidadãos, estão preocupando os diplomatas enquanto representantes de um país, enquanto agentes de um Estado, eventualmente
enquanto servidores de um
determinado governo. As diferentes realidades recobertas por esses conceitos,
os limites que alguns deles podem impor ao exercício de alguns outros não
deveriam impedir os diplomatas de pensar sobre o sentido de suas ações – ou
omissões – e de expressar seus sentimentos de alguma forma, mesmo que de
maneira indireta e não identificada.
Em alguns momentos da vida
de uma nação, a dignidade pessoal e a consciência de continuar aderindo a
certas posturas morais, a defesa de valores e princípios que se
conformam a padrões civilizatórios – os mais altos que a humanidade
alcançou ao longo de uma longa e tortuosa caminhada nos séculos precedentes –
todas essas expectativas individuais ou coletivas deveriam estar acima das
contingências circunstanciais ou dos interesses de grupos que monopolizam, por momentos, o poder político.
Diplomatas sabem disso. Não
deveria ser difícil expressar essas ideias concretamente, e dissentir, quando a
dissensão está do lado dos padrões morais, contra interesses partidários que apontam
claramente para outra direção. CQD.
Hartford, 23 março de 2014
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