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sábado, 29 de abril de 2017

Carlos Henrique Cardim: discurso de posse na Academia Brasiliense de Letras (11/04/2017)

Meu amigo Carlos Henrique Cardim, grande intelectual, colega diplomata (embaixador) e professor de Ciência Política na UnB, tomou posse, no dia 11 de abril de 2017, como o mais novo membro da Academia Brasiliense de Letras.
Seu discurso de posse, que reproduzo abaixo é um verdadeiro monumento à inteligência, mas melhor ainda do que o texto escrito foi o seu discurso falado, entremeado e entrecortado por clins d'oeil para a plateia, ênfases nas expressões, sorrisos para a audiência e toda a simpatia exarada durante o pronunciamento.
Paulo Roberto de Almeida



Carlos Henrique Cardim
Discurso de posse na Academia Brasiliense de Letras
Brasília, D.F, 11 de abril de 2017.

A Quarta Montanha
         "No Brasil, há 4 montanhas, a serem conquistadas. A primeira educação, a segunda economia, a terceira política, e a mais elevada e íngreme das 4, a montanha da cultura". Pensamento atribuído ao Presidente Juscelino Kubitscheck.
         A realização plena de uma vida, no Brasil, na visão de JK, passa apor 4 conquistas, chegando ao quarto patamar, o planalto da cultura. Realização não para se vangloriar, para posar de superior, mas para poder criar mais livre, poder compartilhar, poder dar e poder receber.
         As Academias de Letras, as Academias de Ciências, os Institutos de Estudos estão nesta quarta montanha. Acompanhados, é claro, de suas bibliotecas.
         A escalada da quarta montanha leva a um "plateau", onde existe a possibilidade de ver, de teorizar, como disse Augusto Comte, de formular "doutrina que explicaria o conjunto do passado e obteria (...) a presidência mental do futuro".
         Melhor disse De Gaulle, ao repetir várias vezes, em sua vida pública: "Quando tudo vai mal e quando se procura uma decisão, há que olhar para o cume. Lá não há engarrafamentos". Este é um dos muitos pensamentos do grande líder francês que estão no seu diálogo com André Malraux, no notável livro "Quando os robles se abatem". E que esclarecem o De Gaulle interior. É uma obra que tem pouco precedentes, porque Voltaire se esqueceu da conversação que teve com Frederico, assim como Diderot a que teve com Catarina II.
         Desta clareza de visão deriva, igualmente, a responsabilidade do intelectual e do político sobre os resultados e conseqüências práticas de suas idéias. Como sublinhou Max Weber, a ética da convicção deve estar acompanhada da ética a responsabilidade.  
         Por falar em responsabilidade do intelectual, lembro aqui a recomendação muito concreta de Ortega y Gasett que todo acadêmico tem o dever de traduzir, ou promover a tradução, de pelo menos 1 livro importante por ano para sua sociedade.
         Por fim, sobre o tema da responsabilidade do intelectual,, é sempre bom destacar o momento no famoso "Mito da Caverna" de Platão, no qual o indivíduo que saiu da caverna e começa a ver o mundo real, com dores nos olhos ainda  acostumado à escuridão, resolve voltar para contar a seus históricos companheiros da caverna as maravilhas dos descobrimentos que está a fazer. Este é um momento de  forte generosidade, porque ele poderia ter decidido seguir caminho sozinho e solitário. É o sentimento de compromisso em compartir o bem alcançado que o  faz dar os passos de volta para contar aos amigos aquilo novo que está conhecendo.

"o gesto primário".
         O ato de posse na Academia Brasilense de Letras tem marca própria e especial, por se tratar de cerimônia com dois sentidos ao mesmo tempo.
         Primeiro sentido é, como disse Lúcio Costa no seu projeto de Brasília, "gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse, dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja o próprio sinal da cruz". Posse da cidade-capital. A maioria dos que estão aqui têm duas cidades: a natal e Brasília.
         Segundo sentido, é posse em instituição criada há cerca de 50 anos, em 1968, por grupo de intelectuais - Almeida Fischer, Hermes Lima e Cândido Mota Filho, entre outros - para promover o estudo da nossa língua e de contribuir para a elevação cultural do povo brasileiro.
         Agradeço, inicialmente, os colegas da Academia Brasilense de Letras pela indicação de meu nome para integrar o seu convívio. Agradeço em particular o Presidente da AbrL, Professor Carlos Fernando Mathias de Souza e o Padre José Carlos Brandi Aleixo, pela gentileza de aceitar falar em nome da Academia para me receber.
         A Academia Brasiliense de Letras tem a missão de ser uma das entidades fundadoras da cidade-capital. Ao fundar, também, funde talentos e aspirações vindas de todos os cantos do país.
         A partir do novo centro do país recebe, cria e irradia patrimônio cultural local e nacional.
         Vir para Brasília, no meu caso, como somente diplomata, no começo, igualmente, significou vir para o interior profundo do país, e potencialmente ir para o exterior, para o mundo. Dois movimentos em uma só ação.
         A Academia, local de amizade, cume da quarta montanha, ponto de encontro de leituras, forja do novo, é também local gerador de tradição. Sinto-me bem ao fazer parte desta tradição.
         Como bem disse San Tiago Dantas, "o primeiro requisito da cultura é a memória".
         No mesmo diapasão, quero sublinhar frase de Alceu Amoroso Lima que gostaria fosse o mote principal deste discurso:           
         "O passado não é o que passou.
          É o que ficou do que passou".
                 
Celebração em ... Moscou!
         Quero, inicialmente, explicar aos meus colegas acadêmicos e à amigas e amigos presente, o motivo do atraso em marcar a cerimônia de minha posse. Nos últimos dois anos, 2015 e 2016, tive 3 cirurgias nos dois olhos: duas por cataratas, e uma terceira por causa de descolamento de retina no olho esquerdo, considerada a mais complicada operação oftalmológica e com risco real de cegueira..
         Graças a Deus, e aos médicos Dr. Carlos Eduardo Arieta e Emerson Fernandes de Sousa e Castro, recomendados pelos amigos Antonio Roberto Batista e Dante Alário Júnior, e, "last but not least", o cuidado de Rosa, as cirurgias foram exitosas e após convalescência estou em fase final de recuperação.
         Em se tratando de reunião na Academia de Letras da capital federal, tomo a liberdade de narrar, neste ambiente de amizade, fato que me ocorreu, após ter confirmado o sucesso na cirurgia de descolamento de retina. O médico liberou-me para viagens, inclusive internacionais, no final de 2015. Fui a Moscou representar o Brasil na Reunião dos Ministros de Ciência e Tecnologia dos BRICS.  
         Ao final do encontro, resolvi assistir um espetáculo no Teatro Bolshoi, e tive a sorte de encontrar um bom ingresso, na terceira fila da platéia. O programa desta noite era a ópera de Tchaicovsky "Iolanda". Pouco conhecida esta obra, para meu espanto, trata justamente da questão da visão. É a história de uma princesa cega de nascença, que está prometida para um príncipe, que por sua vez está interessado em outra mulher... Acontece, no entanto, que um companheiro do príncipe se apaixona pela princesa cega, e com ela deseja se casar. Confessa isso ao príncipe que compreende a situação, que é também boa para ele, e autoriza e abençoa o casamento de seu amigo.
         E eu lá, na terceira fileira, com este enredo, com a música sublime de Tchaicovski, tocada pela orquestra e o bailado e os cenários do Bolschoi... Encantamento estético e impacto do tema!
         Chega ao momento final desta desconhecia e impactante ópera para mim. Mas, aí vem o instante culminante. A cena do casamento. A princesa, após várias tentativas de cura da cegueira, inclusive com um mago do Oriente, tem o diagnóstico da impossibilidade de cura pela medicina, mesmo a esotérica. Somente, diz o mago do Oriente, uma suprema força de vontade da princesa, e a intervenção divina poderá curá-la.
         Cena final. Na cerimônia de casamento, a princesa começa a ver! Tchaicovsky coroa sua obra com forte hino de ação de graças a Deus pelo dom da visão! E eu lá na terceira fila! Não poderia haver melhor celebração para mim que benção do grande compositor russo! Esta coincidência, óbvio  com a mão oculta do Senhor, foi para mim a dádiva gratuita de um verdadeiro milagre em Moscou.
         Ao narrar este episódio ao colega Embaixador Marcos Azambuja. Ele, com seu conhecido senso de humor, disse-me: "Que beleza Cardim! Mas esta sua história me faz lembrar resposta do Senado Vitorino Freire, quando foi questionado sobre sua operação de descolamento de retina por jornalista à procura de manchete. Como todo político, Vitorino acreditava  que homem público não deve falar de seus problemas de saúde. Assim respondeu à indagante jornalista: "Você entendeu errado o boato. O que tive foi um deslocamento de rotina; e não um descolamento de retina...".
         No meu caso tive os dois. Minha viagem à Rússia já era  a quarta em quatro anos. Posso dizer que Moscou entrou na minha rotina internacional.

Tão firme como os tipos gráficos.
         Conheci a Academia Brasiliense de Letras (ABrL) pelas mãos de Waldemar Lopes (1911-2006), em 1974. Em visita ao amigo, em Brasília, encontrei-o, em sua casa, preparando o próximo número da revista da ABrL. Fazia a diagramação do texto, ultimava o projeto gráfico da capa e dava uma revisão geral do material. Foi um encontro, basicamente, de dois humildes e entusiastas cultores da edição de livros e revistas.
         Waldemar Lopes é um nome metade pessoa, metade instituição como dizia Machade Assis definindo os Senadores do Império. Dispensa maiores apresentações aqui.
         A relação de amizade, apesar da diferença de idade, e admiração surgiram a partir de grupo de estudantes em São Paulo,que eu fazia parte, reunidos em torno de uma entidade nossa: o "Centro Latino Americano de Coordenação Estudantil CLACE". Um dos membros da entidade, o hoje Professor Eiiti Sato, ganhou prêmio de concurso organizado pela OEA sobre o tema do Pan-Americanismo. Desta data em diante desenvolveu-se entre o Dr. Waldemar Lopes e os componentes do CLACE forte relação de amizade.
         Waldemar e eu tínhamos um passado tipográfico. Ele, no município de Quipapá, em Pernambuco, em 1926, na fazenda da família, "Novo Horizonte", que tinha pequena gráfica - provavelmente caso único no Brasil - onde Waldemar editava um jornalzinho semanário "O Ideal". Eu, em São Paulo, onde participava ativamente de entidade cultural com colegas jovens, publicávamos vários jornais estudantis, e tínhamos, também, uma pequena gráfica.
         Nossa amizade era tão firme como o chumbo dos tipos gráficos.
         É motivo de alegria e celebração para mim ter Waldemar Lopes como "padrinho" nesta Casa das Letras de Brasília.
         Em 1976, entrei para o Itamaraty, e vim servir em Brasília. A partir desta data, pude desfrutar mais amplamente do convívio com Waldemar e sua esposa Iraci Lopes.
         Waldemar era um construtor de encontros no sentido que Romano Guardini expôs em seu livro sobre Sócrates.   
         Guardini, ao comentar os relacionamentos humanos e a dificuldade de verdadeira comunicação e autêntico diálogo entre as pessoas, destacava a importância dos indivíduos que logram estabelecer em torno de si áreas de real encontro com o outro. Assim se expressava: "Nem todas as personalidades facilitam na mesma medida o que se pode chamar de ´encontro`, pois esse supõe um caráter especial. Um homem pode possuir qualidades admiráveis, mas tão peculiares, que estabeleçam uma barreira entre ele e quem se lhe aproxime. Outros logram influir mais intensamente, mas somente através de suas criações, enquanto eles mesmos, pessoalmente, se retiram de todo. Por outro lado, estão aqueles que cativam, humanamente, mas que, além disso, nada significam". Para Guardini o homem que possibilita o "encontro" é um tipo raro e não abundante na história, e se caracteriza por "essa força do tocante e do comovedor na mais intensa medida"
         Foi por este "tipo raro e não abundante" que tive a sorte de conhecer amigos futuros como Walter Costa Porto, parceiro em tantas empreitadas culturais, editoriais e políticas.
         A lembrança de Waldemar Lopes tem tudo a ver com o espírito da Academia de ser ponte entre gerações.

A Cadeira número 11.
         A mesa e a cadeira são símbolos marcantes da vida intelectual. O grande mestre Miguel Reale costumava dizer: "Vida intelectual é mesa!". Esta cadeira, número 11, da Academia Brasiliense de Letras, cujo patrono é Farias Brito, já foi ocupada por Hamilton Nogueira, e por José Carlos de Almeida Azevedo.
         Hamilton de Lacerda Nogueira (1897 - 1981) nasceu em Campos, no Estado do Rio de Janeiro, em 1897. Formado em Medicina, teve papel de liderança no movimento leigo católico, no Centro Dom Vital. Iniciou a vida política, elegendo-se Senador à Assembléia Nacional Constituinte, pelo então Distrito Federal, em 1946, pela UDN, União Democrática Nacional. Foi Deputado Federal, nas Legislaturas de 1959 e 1963. Integrou o MDB. Escreveu ensaios sobre Jackson Figueiredo, Freud, Dostoiewski, Conrad e uma crítica sobre Macunaíma, elogiada por Mário de Andrade. Poliglota, aos 60 anos começou a estudar hebraico, chinês e dinamarquês, dedicando-se à pintura. Em 1948, indicou o nome de Oswaldo Aranha para o Prêmio Nobel da Paz.
         José Carlos de Almeida Azevedo (1932-2010) foi oficial da Marinha do Brasil, Doutor em Física pelo MIT (EUA), Vice-Diretor do Instituo de Pesquisa da Marinha, e Reitor da UnB de 1976 a 1985. Joaquim Nabuco, em Balmaceda, assinala, nos membros da Marinha, "sua simpatia pelas idéias e pelas coisas que ele sabe ser universais, porque as encontrou à volta do Globo, nas diversas escalas do seu navio". Dedicado ao tema da educação é autor do livro Omissão da Universidade?. Participou ativamente do debate de questões pedagógicas, por meio de artigos nos jornais "Folha de S. Paulo", "O Estado de São Paulo" e "O Globo".
         Foi Reitor da UnB, no período de transição política no Brasil, particularmente, na fase comandada pelo Ministro da Justiça Petrônio Portella, sob a liderança do Presidente Ernesto Geisel. Lembro-me o Presidente chileno, o notável político Patrício Aylwin, assinalar que o processo de transição "é uma delicada obra de relojoaria política". Com avanços e recuos, fase tensa na qual o novo, apesar de vigoroso, ainda é frágil, e o arcaico, apesar de superado, ainda não desapareceu. No bem sucedido caso brasileiro da transição, o que ficou foi um avanço da sociedade, acima de nomes singulares, superior, ao que Marco Maciel tanto criticava, "a excessiva fulanização da política brasileira".
         Azevedo sempre esteve preocupado em atingir padrões de alta qualidade em seu labor universitário. Além da qualidade, teve também como prioridade a quantidade. Ou seja, aliar qualidade com quantidade era seu maior desafio.          Exemplo desta prioridade, foi o acordo firmado entre a UnB e a Open University britânica, para assimilar a metodologia do ensino à distância, e lançar no Brasil os primeiros cursos de extensão nessa modalidade de educação, produzidos pelo Decanato de Extensão e pela Editora UnB, nas áreas de Ciência Política e Relações Internacionais.
         O Reitor Azevedo sempre deu apoio total à edição de livros pela UnB, com projeto próprio e em co-edições. Implantou-se, assim, a Editora UnB como a primeira "academic press" no Brasil, no estilo da Harvard, Oxford e Cambridge. Quando se fala em implantar uma editora, deve-se ter em mente o número mínimo de 500 títulos em seu fundo editorial. De 1978 a 1985, a Editora UnB alcançou marca de cerca de 700 títulos, entre obras publicadas e negociadas.        Nesse contexto, foram convidados destacados nomes brasileiros e estrangeiros para virem a Brasília participar dos "Encontros Internacionais da UnB", como por exemplo, Karl Deutsch, Raymond Aron, Maurice Duverger, Norberto Bobbio, Gilberto Freyre, Afonso Arinos, Miguel Reale, John Kenneth Galbraith, Robert Dahal e Richard Leakey.
         Destaca-se, igualmente, a promoção pela UnB em 1976 de importante encontro acadêmico internacional reunindo cerca de 25 grandes nomes acadêmicos, de variadas tendências - conservadores, liberais, socialistas e marxistas - presidido pelo Embaixador Roberto Campos.
         A respeito da contribuição cultural da Editora UnB, sublinho um título, entre dezenas de expressiva relevância: a tradução por primeira vez para o português da obra de Max Weber Economia e Sociedade, o maior clássico das Ciências Sociais do século XX. Ao ler, recentemente, texto de 1957 de Hermes Lima, um dos fundadores de nossa Academia, verifiquei as constantes referência do mestre bahiano a Weber. Lembrei-me que, nos anos 1970, estudei Weber pela gloriosa edição do Fondo de Cultura Economica do México, fundado em 1934, cujas edições, à época em que fiz faculdade, constituíam verdadeira "universidade de ciências sociais na América Latina".  
         A contribuição editorial e de atividades de extensão da UnB, no período de 1976 a 1985, tem sido considerada por analistas como passos relevantes no processo de abertura democrática no Brasil.
         No período de 1978 a 1983 ocupei os cargos de Decano de Extensão da Universidade de Brasília (UnB),  e Presidente do Conselho Editorial da Editora da UnB.
         A capital vai, assim, se construindo como cidade universitária, também. José Bonifácio, que a batizou com o nome de Brasília, defendia que a primeira universidade brasileira deveria ser instalada em São Paulo por ser mais saudável para os alunos e professores do que o Rio de Janeiro. Hoje, José Bonifácio preferiria, sem dúvida, Brasília.

Sócrates sertanejo.
         Farias Brito (São Benedito, Ceará, 1862 - Rio de Janeiro, 1917) abre o primeiro capítulo, de sua obra Finalidade do Mundo, com a afirmação de que "As duas manifestações fundamentais do espírito humano na marcha geral da sociedade são a política e a filosofia. A política dá em resultado o direito; a filosofia dá em resultado a moral. (...) moral é fim da filosofia".
         Fica evidente o patrocínio de Sócrates ao pensador cearense que vê no sábio ateniense seu maior patrono espiritual e intelectual. Na visão socrática de Farias Brito, a filosofia era um aprendizado existencial da morte, e o reconhecimento racional de que "só sei que nada sei". Diz ele "tudo em minha vida está subordinado a esse pensamento".
          Nas palavras de Nestor Victor, Farias Brito era "um sertanejo que se fez sábio e um sábio que achou melhor ser um santo. Saiu, por isso, um filósofo à maneira de Sócrates, filósofo principalmente para conhecer-se a si mesmo e aprender a morrer, no que ainda traduziu a tristeza ensimesmada do homem do sertão".

Um encontro com Karl Popper.
         Sócrates é o primeiro clássico. Fundador do pensar no Ocidente. Karl Popper, um dos maiores filósofos do século XX, considera "A Apologia de Sócrates", o melhor texto da Filosofia.
         Tivemos, eu e o Padre Aleixo, o privilégio de um encontro com Popper, em sua residência em Londres. Lembro-me que, no jardim enquanto tomávamos chá com o Mestre, fiz um comentário para Popper elogiando a bela e enorme árvore a nosso lado. Popper, então me respondeu: "Você tem razão. É uma linda árvore. Plenamente crescida e realizada. Minha mulher e eu a plantamos, quando comecei a dar aulas na "London School of Economics  LSE", no anos 40. Lecionava Filosofia dda Ciência. Veja só: Hoje a árvore está completa. E eu tenho mais dúvidas e perguntas do que há 40 anos atrás !".
         Era o eco do ensinamento de Sócrates: "tudo que sei é que nada sei".

Farias Brito, Pará e Platão.
         Essa profunda afinidade de Farias Brito e Sócrates tem uma passagem bastante curiosa. Como foi dito, Farias passou relevante etapa de sua vida em Belém do Pará, de 1902 a 1909. Nesse período, publica o terceiro volume de  Finalidade do Mundo e a obra A Verdade como Regra das Ações. Além de advogar, dá aulas de Filosofa na Faculdade de Direito.
         A profícua produção acadêmica de Farias Brito em Belém desmente a tão propalada tese que no fundo é um preconceito sobre a dificuldade dos climas quentes e tropicais para a tarefas superiores do pensamento.
         Ainda como desmentido ao preconceito, assinalo que, em 1980, após 70 anos da passagem de Farias Brito por Belém, a Universidade Federal do Pará (UFPA) inicia uma publicação que honra a vida cultural do Brasil: a tradução do grego por Carlos Alberto Nunes das obras completas de Platão. É iniciativa a nível das melhores editoras universitárias do mundo como Oxford, Harvard, Cambridge e "Belles Letres". O primeiro volume com a "Apologia de Sócrates", ganhei do então Senador e ex-Reitor da UFPA, Aluisio Chaves. Chamou-me a atenção que o "Corpus Platonicum" fosse editado dentro da "Coleção Amazônica", na "Série Farias Brito" da UFPA. Traço provinciano? Não, na verdade, homenagem ao semeador da generosa e forte semente das idéias filosóficas em solo paraense. Como disse Djacir Menezes: "Como historiador e expositor dos sistemas da filosofia moderna foi realmente excepcional".

Língua e Filosofia.
         Barreto Filho, em introdução à obra de Farias Brito,  detectou com argúcia que: "Para que um povo possa se ligar intimamente ao trabalho filosófico universal é necessário, antes de mais nada, que alguém pense na sua língua o que já foi pensado por outros. A linguagem é instrumento não só de transmissão, mas de assimilação de idéias, e cada língua corresponde a uma mentalidade que, para pensar, necessita desse sistema próprio de expressão. A linguagem filosófica, mais trabalhada em Portugal por um Manuel Bernardes ou um Frei Heitor Pinto, era de extrema penúria no Brasil. Não conseguimos formar nenhum centro de estudos filosóficos, e o positivismo acabou proscrevendo das nossas escolas o próprio ensino da filosofia. Nesse longo hiato, encerrado pelas nossas atuais faculdades de Filosofia, Farias Brito é o solitário detentor entre nós da tradição filosófica. Repensou por si mesmo todas as doutrinas e formou um instrumento de expressão adequado para fixá-las e transmiti-las".
         Destacar a relação entre língua e Filosofia é a melhor maneira de terminar este discurso na "Academia Brasiliense de Letras", que prevê em seus Estatutos, entre seus objetivos principais, o de cultivar a língua.
         Certa vez indagaram a Confúcio - por sinal contemporâneo de Sócrates - qual deveria ser a primeira tarefa de um governante. Ao que o mestre respondeu: "Definir as palavras". Laborar e encontrar, como queria Gustave Flaubert, "le juste mot". A palavra certa. Com as palavras de nossa língua não somente pensamos, mas também construímos o presente e o porvir.
         No início desta oração, lembrei a frase de Alceu Amoroso  Lima: "O passado não é o que passou. É o que ficou do que passou". Inspirado por Tristão de Athayde, cujos artigos me guiaram na adolescência, e por Brasília, a capital da esperança, nas palavras de André Malraux, ouso dizer que "O futuro não é o que virá. Será o que plantarmos no presente". Plantarmos com pensamentos e palavras na nossa língua.

Referências.
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Azevedo, José Carlos de Almeida. Omissão da Universidade? Editora Artenova, Rio de Janeiro. 1978.
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sexta-feira, 29 de julho de 2016

Oswaldo Aranha: discursos de posse no MRE, 1938; 1939 - CHDD-RJ

Textos constantes do site do CHDD, relativos aos ministros de Estado das Relações Exteriores na República:
URL: http://funag.gov.br/chdd/index.php?option=com_content&view=article&id=135%3Aoswaldo-aranha&catid=55%3Aministros&Itemid=92
Paulo Roberto de Almeida

DISCURSO DE POSSE
MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES OSWALDO ARANHA
15 DE MARÇO DE 1938


A minha vida pública é de ontem, contemporânea de todos vós. Sabem, assim, Sr. Ministro, quantos nos honram com sua presença a esta solenidade, que eu não o vim substituir, mas continuar, mesmo porque neste departamento da vida do nosso país, a coerência fez-se continuidade e esta tradição, inviolável.
Somos, Vossa Excelência por uma longa e brilhante carreira e eu pela minha missão em Washington, funcionários desta casa.
Foi uma grande honra para mim entrar, após ter exercido as mais altas e responsáveis posições na vida política do meu país, há três anos, para o Itamaraty.
Considerei sempre, como devem considerar todos os brasileiros, uma nobre missão a de vir trabalhar à sombra desta casa, viver as suas tradições e compartilhar as suas responsabilidades.
Não tem o nosso país atalaia mais alta na sua história de benemerências, nem mais nobre lição de pacifismo, e de devoção à justiça de outro povo aos demais, do que aquela que se contém nos anais diplomáticos da formação do Brasil.
A diplomacia brasileira é a escola da paz, a organização da arbitragem, a política da harmonia, a prática da boa vizinhança, a igualdade dos povos, a proteção dos fracos, a defesa da justiça internacional, enfim, uma das glórias mais puras e altas da civilização jurídica universal.
A ela deve o nosso povo a parcela maior de suas grandezas, a configuração de suas fronteiras imensas, a conquista de sua unidade, a estrutura de suas soberania, a confiança dos demais povos, e, mais que tudo, o uso e gozo da paz em que temos vivido os brasileiros, mesmo em meio de lutas e de guerras.
Herança do Império desdobrada pela República, a nossa diplomacia é, hoje, uma instituição nacional, inviolável em sua coerência, sagrada em suas tradições, definida em seus fins, clara em seus meios, na qual podem e devem confiar todos os brasileiros como nela têm confiado e confiam os demais povos.
O povo brasileiro é um penhor de boa vontade, de conciliação, de harmonia e de paz.
A obra pacífica do Brasil, no continente e no mundo, não foi, nem é traçada por conveniências ou interesses.
É ideia, é sentimento, é educação e é moral – é atitude tradicional do povo e do Estado brasileiros.
Não houve nem haverá lugar entre nós, dada a nossa índole e formação, para outra política senão aquela – suaviter in modo et fortiter in re – que presidiu à nossa evolução e há de fortalecer e alargar a nossa grandeza.
Representando o nosso governo nos Estados Unidos da América do Norte, o maior centro de convergência das atenções e atividades universais, pude bem medir o respeito por essas nossas tradições e bem avaliar o prestígio da nossa conduta continental e internacional.
É que, meus senhores, a política internacional do Brasil foi sempre uma expressão da opinião nacional do Brasil. 
É só na vontade do povo, na consulta a sua opinião e aspirações, que a paz encontra a sua segurança.
Os governos e os homens nem sempre têm sido bons intérpretes dos seus povos.
Neste erro tiveram suas origens todas as guerras.
É na subordinação dos governos aos seus povos que as nações devem procurar a boa inspiração para os seus destinos, e a solução para os problemas da comunhão universal.
Esta prática, sempre seguida pelo Brasil, foi a base na qual assentou a obra da paz realizada exemplarmente pela civilização brasileira no decurso da sua história e no concerto das nações.
Acreditou-se, num dado momento, que a economia, tornada substância da política, acabaria por inaugurar uma era de cooperação pacífica entre os povos, favorecida por interesses comuns.
Outras soluções foram sugeridas e até adotadas, desde as da força até as do isolamento, como sendo as melhores para manter e desenvolver os meios e instrumentos apropriados à solução pacífica dos problemas e conflitos universais.
A verdade, porém, é que ao termo de tão longos esforços e atormentadas experiências, chegamos todos quantos procuramos o bem estar universal à conclusão de que a paz, a sua segurança e a sua manutenção, residem afinal na obediência dos governos à vontade popular e no respeito das nações à opinião dos seus próprios povos.
O Brasil, justamente porque conduziu sua política internacional consultando sempre a vontade, a aspiração e a opinião de seu povo, é um modelo de cooperação, de desambição e de paz no concerto das nações continentais e mundiais.
O governo atual, malgrado as falsas interpretações de quantos ignoram a sua origem e a sua razão de ser, fundou a sua política exterior nas fontes mesmas da tradição e da opinião do Brasil.
O eminente chefe da nação tem dado, na política internacional do seu governo, as demonstrações mais definitivas de sua fidelidade às nossas tradições diplomáticas, procurando alargá-las e consolidá-las pelo fortalecimento de uma política continental de boa vizinhança e de amizade com os demais povos.

DISCURSO DE POSSE
MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES OSWALDO ARANHA
27 DE MARÇO DE 1939


Senhor Ministro, meus Senhores,

Esta cerimônia, ainda quanto seja uma simples formalidade íntima do Itamaraty, tem uma grande significação.
Ela mostra que a continuidade e a coerência são as linhas mestras desta casa, da ação diplomática e da vida mesma de quantos se devotam ao serviço exterior do Brasil.
A fidelidade aos princípios básicos de nossa formação e evolução política foi e será existencial, na ordem interna do Itamaraty e na exterior do Brasil.
A defesa dessas normas no campo internacional e a sua conservação e aperfeiçoamento na vida diplomática e dos diplomatas brasileiros tornam-se cada dia mais necessárias.
As grandes crises econômicas e políticas universais vieram e virão da falta de continuidade e de coerência dos governos e da crescente infidelidade dos povos aos princípios e tradições, que lançam, através dos tempos, os alicerces mesmos da solidariedade e do aperfeiçoamento humanos.
O respeito ao passado, a devoção às ideias, o sentimento das tradições nunca transviaram os homens e sempre protegeram o destino dos povos.
A força moral do Brasil, no continente como no mundo, emana dessa política invariável de apego àquelas normas que traçaram as suas fronteiras geográficas e alargam todos os dias as de seu prestígio internacional.
Esta cerimônia demonstra como essa linha geral preside, igualmente, ao exercício de nossas funções e ao trato de uns com outros no desempenho das atribuições que nos são confiadas no serviço exterior de nosso país.
E nada, meus amigos, eleva mais uma corporação do que a segurança de que cada um de seus membros, nas suas divergentes atividades, obedece à lei geral, à harmonia do todo, ao supremo interesse do país.
A impessoalidade é a primeira condição para bem servir e melhor contribuir para a obra comum que nos cumpre realizar nesta casa.
A minha viagem aos Estados Unidos veio demonstrar que, lá como aqui, estivemos juntos e solidários, porque, ainda quando distanciados pelas atividades, nunca estivemos ausentes, mas mais reunidos pelo dever e pelo ideal.
O nosso trabalho foi comum, e a conjugação de nossos esforços tão perfeita que, quando se for apreciar a obra por nós realizada nos Estados Unidos, o historiador não a poderá atribuir a mim ou aos meus auxiliares, mas ao Itamaraty, ao governo, ao presidente da República, enfim, ao Brasil, aos que o serviram e aos que o estão agora servindo sob a inspiração desses antepassados.
É esta a significação desta cerimônia: um funcionário substitui outro, sem que a função, no que tem de essencial, sofra a menor solução de continuidade, porque aqui, nesta casa e neste serviço, os homens passam, maiores ou menores, como expressões efêmeras de uma devoção eterna, que as gerações de nossos diplomatas têm conservado, à defesa, à integridade, à grandeza e ao prestígio do Brasil.
Agradeço às generosas palavras do Ministro Freitas Valle, porém, mais ainda, aos relevantes serviços por ele prestados e por todos vós ao governo, durante minha estada nos Estados Unidos, facilitando-me e aos meus companheiros o desempenho de uma missão que, graças à direção do Presidente da República e assistência do Itamaraty, veio confirmar e ampliar a tradicional política de cooperação e de amizade de nossos dois povos, pela qual trabalharam, no Império e na República, sem exceção, todos quantos dirigiram os nossos grandes destinos políticos, nacionais e internacionais.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Ministro Jose Serra, discurso de posse no Itamaraty, 18/05/2016


Discurso cerimônia de transmissão de cargo do MRE
Discurso do ministro José Serra por ocasião da cerimônia de transmissão do cargo de ministro de estado das Relações Exteriores
Brasília, 18 de maio de 2016

Queria saudar inicialmente o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal;
O presidente do STJ, ministro Francisco Falcão;
Ministro Herman Benjamin, ministro Rogério Schietti e ministro Paulo Moura;
Queria cumprimentar, e através dele todos os deputados aqui presentes, o presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, Pedro Vilela;
E o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, meu colega do Senado, Aloysio Nunes, através de quem cumprimento todos os nossos queridos amigos senadores;
Queria saudar excelentíssimo ex-presidente da República, José Sarney, que, considero, teve um papel fundamental no processo de redemocratização do nosso país e merece ser reconhecido em todos os tempos por este papel.
Quero cumprimentar o senhor Núncio Apostólico, Dom Giovanni d´Aniello, em nome de quem cumprimento os demais embaixadores estrangeiros acreditados junto ao governo brasileiro;
E dar aqui o meu abraço ao embaixador Mauro Vieira, ex-ministro de estado das Relações Exteriores, a quem agradeço a prestatividade, diria assim, e toda a colaboração nesse processo de transição do comando do Ministério. Quero dizer a ele que considero um homem que teve uma trajetória pública exemplar.
Quero agradecer também, muito enfaticamente, ao presidente Michel Temer pela confiança ao convidar-me para assumir este ministério, bem como pela paciência de revisar e pela aprovação deste Delineamento da Nova Política Externa Brasileira, que apresentarei hoje. O presidente leu ao meu lado, linha por linha, fazendo seus comentários, que naturalmente levei em conta. Quero dizer que trinta e três anos de convivência com Michel Temer, seja no mesmo lado ou em lados diferentes da vida política, foram sempre acompanhados de uma relação constante de amizade, respeito mútuo e permanente diálogo.
E quero por último, aqui agradecer a presença dos meus colegas de Ministério, são muitos, eu os saúdo em nome do ministro Romero Jucá, que, quis o destino, vai ter um papel junto comigo fundamental para a recuperação das finanças do Itamaraty.
Creio que os outros ministros entenderão por que escolhi o ministro Jucá para representá-los nesta saudação.
Deixe me dizer também de minha alegria em passar a integrar uma instituição de grande tradição e de marcada contribuição histórica ao nosso país. Deixe me dizer também da satisfação em conviver com um corpo de funcionários de reconhecida competência e espírito público. Eu espero aqui transmitir algumas ideias essenciais a respeito da nova política externa brasileira. Tenho e terei, como sempre em minha vida pública, os olhos voltados para o futuro e não para os desacertos do passado.
Primeira diretriz:
1. A diplomacia voltará a refletir de modo transparente e intransigente os legítimos valores da sociedade brasileira e os interesses de sua economia, a serviço do Brasil como um todo e não mais das conveniências e preferências ideológicas de um partido político e de seus aliados no exterior. A nossa política externa será regida pelos valores do Estado e da nação, não do governo e jamais de um partido. Essa nova política não romperá com as boas tradições do Itamaraty e da diplomacia brasileira, mas, ao contrário, as colocará em uso muito melhor. Medidas que, em outros momentos, possam ter servido ao interesse nacional, quero dizer, podem não ser mais compatíveis com as novas realidades do país e com as profundas transformações em curso no cenário internacional.
Segunda diretriz:
2. Estaremos atentos à defesa da democracia, das liberdades e dos direitos humanos em qualquer país, em qualquer regime político, em consonância com as obrigações assumidas em tratados internacionais e também em respeito ao princípio de não ingerência.
Terceira diretriz:
3. O Brasil assumirá a especial responsabilidade que lhe cabe em matéria ambiental, como detentor na Amazônia da maior floresta tropical do mundo, de uma das principais reservas de água doce e de biodiversidade do planeta, assim como de matriz energética limpa e renovável, a fim de desempenhar papel proativo e pioneiro nas negociações sobre mudança do clima e desenvolvimento sustentável. Lembro que, se fizermos bem a lição de casa, poderemos receber recursos caudalosos de entidades internacionais interessadas em nos ajudar a preservar as florestas e as reservas de água e biodiversidade do planeta, uma vez que o Brasil faz a diferença nessa matéria.
Quarta diretriz:
4. Na ONU e em todos os foros globais e regionais a que pertence, o governo brasileiro desenvolverá ação construtiva em favor de soluções pacíficas e negociadas para os conflitos internacionais e de uma adequação de suas estruturas às novas realidades e desafios internacionais; ao mesmo tempo em que se empenhará para a superação dos fatores desencadeadores das frequentes crises financeiras e da recente tendência à desaceleração do comércio mundial. O comércio mundial está se contraindo a galope, eu diria.
Quinta diretriz:
5. O Brasil não mais restringirá sua liberdade e latitude de iniciativa por uma adesão exclusiva e paralisadora aos esforços multilaterais no âmbito da Organização Mundial do Comércio, como aconteceu desde a década passada, em detrimento dos interesses do país. Não há dúvida de que as negociações multilaterais da OMC são as únicas que poderiam efetivamente corrigir as distorções sistêmicas relevantes, como as que afetam o comércio de produtos agrícolas. Mas essas negociações, infelizmente, não vêm prosperando com a celeridade e a relevância necessárias, e o Brasil, agarrado com exclusividade a elas, manteve-se à margem da multiplicação de acordos bilaterais de livre comércio. O multilateralismo que não aconteceu prejudicou o bilateralismo que aconteceu em todo o mundo. Quase todo mundo investiu nessa multiplicação, menos nós. Precisamos e vamos vencer esse atraso e recuperar oportunidades perdidas.
Sexta diretriz:
6. Por isso mesmo, daremos início, junto com o Ministério da Indústria, Comércio e Serviços, com a cobertura da CAMEX e em intensa consulta com diferentes setores produtivos, a um acelerado processo de negociações comerciais, para abrir mercados para as nossas exportações e criar empregos para os nossos trabalhadores, utilizando pragmaticamente a vantagem do acesso ao nosso grande mercado interno como instrumento de obtenção de concessões negociadas na base da reciprocidade equilibrada. Nada seria mais equivocado, errôneo, nesta fase do desenvolvimento brasileiro, do que fazer concessões sem reciprocidade. Não tem sentido.
Sétima diretriz:
7. Um dos principais focos de nossa ação diplomática em curto prazo será a parceria com a Argentina, com a qual passamos a compartilhar referências semelhantes para a reorganização da política e da economia. Junto com os demais parceiros, precisamos renovar o Mercosul, para corrigir o que precisa ser corrigido, com o objetivo de fortalecê-lo, antes de mais nada quanto ao próprio livre-comércio entre seus países membros, que ainda deixa a desejar, de promover uma prosperidade compartilhada e continuar a construir pontes, em vez de aprofundar diferenças, em relação à Aliança para o Pacifico, que envolve três países sul-americanos, Chile, Peru e Colômbia, mais o México. Como disse Enrique Iglesias, muito bem observado, não podemos assistir impassíveis à renovação de uma espécie de Tratado de Tordesilhas, que aprofundaria a separação entre o leste e o oeste do continente sul-americano. Em relação ao México, será prioritário aproveitar plenamente o enorme potencial de complementaridade existente entre nossas economias e hoje das nossas visões internacionais.
Oitava diretriz:
8. Vamos ampliar o intercâmbio com parceiros tradicionais, como a Europa, os Estados Unidos e o Japão. A troca de ofertas entre o Mercosul e a União Europeia será o ponto de partida para avançar na conclusão de um acordo comercial que promova maior expansão de comercio e de investimentos recíprocos, sem prejuízo aos legítimos interesses de diversos setores produtivos brasileiros. Como disse o ministro Mauro, houve a troca de ofertas, nós vamos agora examinar quais são as ofertas da União Europeia. Com os Estados Unidos, nós confiamos em soluções práticas de curto prazo para a remoção de barreiras não tarifárias, que são, no mundo de hoje, as essenciais. No mundo de hoje não se protege, do ponto de vista comercial, com tarifas. Se protege com barreiras não-tarifárias. Quero dizer que o Brasil nesse sentido é o mais aberto do mundo. Nós não temos nenhuma barreira tarifária, ao contrário de todos os outros que se apresentam como campeões do livre comércio. Com os Estados Unidos, confiamos em soluções práticas de curto prazo, eu repito, para a remoção de barreiras não tarifárias, e de regulação que entorpecem o intercâmbio. Daremos igualmente ênfase às imensas possibilidades de cooperação em energia, meio ambiente, ciência, tecnologia e educação.
Nona diretriz:
9. Será prioritária a relação com parceiros novos na Ásia, em particular a China, este grande fenômeno econômico do século XXI, e a Índia. Estaremos empenhados igualmente em atualizar o intercâmbio com a África, o grande vizinho do outro lado do Atlântico. Não pode esta relação restringir-se a laços fraternos do passado e às correspondências culturais, mas, sobretudo, forjar parcerias concretas no presente e para o futuro. Ao contrário do que se procurou difundir entre nós, a África moderna não pede compaixão, mas espera um efetivo intercâmbio econômico, tecnológico e de investimentos. Nesse sentido, a solidariedade estreita e pragmática para com os países do Sul do planeta terra continuará a ser uma diretriz essencial da diplomacia brasileira. Essa é a estratégia Sul-Sul correta, não a que chegou a ser praticada com finalidades publicitárias, escassos benefícios econômicos e grandes investimentos diplomáticos. É importante ter a noção clara de que os diferentes eixos de relacionamento do Brasil com o mundo não são contraditórios nem excludentes, sobretudo dado o tamanho da nossa nação. Um país do tamanho do Brasil não escolhe ou repele parcerias, busca-as todas com intensidade, inspirado no seu interesse nacional. Vamos também aproveitar as oportunidades oferecidas pelos foros inter-regionais com outros países em desenvolvimento, como por exemplo os BRICS, para acelerar intercâmbios comerciais, investimentos e compartilhamento de experiências. E, com sentido de pragmatismo, daremos atenção aos mecanismos de articulação com a África e com os países árabes.
Décima diretriz:
10. Nas políticas de comércio exterior, o governo terá sempre presente a advertência que vem da boa análise econômica, apoiada em ampla e sólida consulta com os setores produtivos. É ilusório supor que acordos de livre comércio signifiquem necessariamente a ampliação automática e sustentada das exportações. Só há um fator que garante esse aumento de forma duradoura: o aumento constante da produtividade e da competitividade. Se alguém acha que basta fazer um acordo e abrir, que isso é condição necessária suficiente, está enganado. É preciso investir no aumento constante da competitividade e da produtividade. Daí a ênfase que será dada à redução do custo Brasil, mediante a eliminação das distorções tributárias que encarecem as vendas ao exterior e a ampliação e modernização da infraestrutura por meio de parcerias com o setor privado, nacional e internacional. O custo Brasil hoje é da ordem de 25%, ou seja, uma mercadoria brasileira idêntica a uma mercadoria típica média dos países que são nossos parceiros comerciais, custa, por conta da tributação, dos custos financeiros, dos custos de infraestrutura, dos custos tributários, 25% a mais. Imagine-se o desafio que nós temos por diante. E apenas assumi o ministério, eu me dei conta, conversando com nosso Embaixador na China, o Roberto Jaguaribe, do esforço de nossas embaixadas para atrair investimentos nestes setores básicos da economia. O Roberto estava trabalhando inclusive para seduzir os capitais chineses a virem ao Brasil, investir em parceria com o Estado brasileiro nas obras de infraestrutura. Esse esforço será multiplicado, tenho certeza, com sucesso.
Aqui encerro as diretrizes, mas se eu tivesse que acrescentar uma a mais, me alongar, que valeria a pena se alongar, eu citaria uma que temos que cumprir, colaborando com os ministérios da Justiça, da Defesa e da Fazenda, no que se refere à Receita Federal: a proteção das fronteiras, hoje o lugar geométrico do desenvolvimento do crime organizado no Brasil, vamos ter isso claro, que se alimenta do contrabando de armas, contrabando de mercadorias, que é monumental, e do tráfico de drogas. Em especial, nos empenharemos em mobilizar a cooperação dos países vizinhos para uma ação conjunta contra essas práticas criminosas que tanto dano trazem ao nosso povo e à nossa economia.
Por último, não menos importante, quero reafirmar meu compromisso com as comunidades brasileiras no exterior e o bom funcionamento de nosso serviço consular. Continuaremos a dar atenção prioritária à garantia dos direitos dos cidadãos brasileiros, onde quer que eles estejam.
Dirijo-me agora ao corpo de funcionários do ministério. Nós vamos recuperar a capacidade de ação do Itamaraty, acreditem. Num período de grandes transformações e, por que não dizer, incertezas no cenário internacional e de promissoras mudanças internas, a nossa diplomacia, não tenho dúvida, terá de, gradualmente, atualizar-se e inovar, e até mesmo ousar, promovendo uma grande reforma modernizadora nos objetivos, métodos e técnicas de trabalho. A diplomacia do século XXI não pode repousar apenas na exuberância da retórica e no tom auto-laudatório dos comunicados conjuntos. Precisa ter objetivos claros e ser a um só tempo discurso político e resultado concreto.
Os diplomatas brasileiros despertam o orgulho do país e o respeito dos parceiros do Brasil no exterior. Quero valorizar a carreira diplomática, assim como as demais carreiras do serviço exterior. Respeitar o critério do mérito. Não discriminar em favor dos amigos do rei ou de correligionários de um partido político. Quero progressivamente retirar o Itamaraty da penúria de recursos em que foi deixado pela irresponsabilidade fiscal que dominou a economia brasileira nesta década. Quero reforçar a casa, e não enfraquecê-la. Vamos restaurar o orgulho das novas gerações em servir ao Itamaraty e, sobretudo, ao Brasil. A Casa será reforçada, e não enfraquecida. E no Governo do Presidente Temer, o Itamaraty volta ao núcleo central do governo.
Meu programa de ação corresponderá à minha tradição na vida pública: trabalhar muito, apresentar e receber ideias, tomar iniciativas, delegar responsabilidades, cobrar resultados e promover negociações efetivas, bem como ter presença marcante, longe de cumprir um calendário de visitas inócuas, para “cumprir tabela”.
Estes são compromissos que apresento hoje. Este é o convite que faço a todos os servidores desta Casa, a fim de que façamos um esforço comum para valorizar o Itamaraty e pelo êxito de um governo que enfrentará, como todos sabemos, desafios imensos, mas que criará, se Deus quiser, as condições para a reconstrução do sistema político, o fortalecimento da representatividade da nossa democracia e a volta do crescimento da produção e do emprego.
Muito obrigado, mãos à obra, vamos em frente.