Meu amigo Carlos Henrique Cardim, grande intelectual, colega diplomata (embaixador) e professor de Ciência Política na UnB, tomou posse, no dia 11 de abril de 2017, como o mais novo membro da Academia Brasiliense de Letras.
Seu discurso de posse, que reproduzo abaixo é um verdadeiro monumento à inteligência, mas melhor ainda do que o texto escrito foi o seu discurso falado, entremeado e entrecortado por clins d'oeil para a plateia, ênfases nas expressões, sorrisos para a audiência e toda a simpatia exarada durante o pronunciamento.
Paulo Roberto de Almeida
Carlos Henrique Cardim
Discurso
de posse na Academia Brasiliense de Letras
Brasília, D.F, 11 de abril de 2017.
A Quarta Montanha
"No Brasil, há 4 montanhas, a
serem conquistadas. A primeira educação, a segunda economia, a terceira política,
e a mais elevada e íngreme das 4, a montanha da cultura". Pensamento
atribuído ao Presidente Juscelino Kubitscheck.
A realização plena de uma vida, no
Brasil, na visão de JK, passa apor 4 conquistas, chegando ao quarto patamar, o
planalto da cultura. Realização não para se vangloriar, para posar de superior,
mas para poder criar mais livre, poder compartilhar, poder dar e poder receber.
As Academias de Letras, as Academias de
Ciências, os Institutos de Estudos estão nesta quarta montanha. Acompanhados, é
claro, de suas bibliotecas.
A escalada da quarta montanha leva a um
"plateau", onde existe a possibilidade de ver, de teorizar, como
disse Augusto Comte, de formular "doutrina que explicaria o conjunto do
passado e obteria (...) a presidência mental do futuro".
Melhor disse De Gaulle, ao repetir
várias vezes, em sua vida pública: "Quando tudo vai mal e quando se
procura uma decisão, há que olhar para o cume. Lá não há engarrafamentos".
Este é um dos muitos pensamentos do grande líder francês que estão no seu
diálogo com André Malraux, no notável livro "Quando os robles se
abatem". E que esclarecem o De Gaulle interior. É uma obra que tem pouco
precedentes, porque Voltaire se esqueceu da conversação que teve com Frederico,
assim como Diderot a que teve com Catarina II.
Desta clareza de visão deriva,
igualmente, a responsabilidade do intelectual e do político sobre os resultados
e conseqüências práticas de suas idéias. Como sublinhou Max Weber, a ética da
convicção deve estar acompanhada da ética a responsabilidade.
Por falar em responsabilidade do
intelectual, lembro aqui a recomendação muito concreta de Ortega y Gasett que
todo acadêmico tem o dever de traduzir, ou promover a tradução, de pelo menos 1
livro importante por ano para sua sociedade.
Por fim, sobre o tema da
responsabilidade do intelectual,, é sempre bom destacar o momento no famoso
"Mito da Caverna" de Platão, no qual o indivíduo que saiu da caverna
e começa a ver o mundo real, com dores nos olhos ainda acostumado à escuridão, resolve voltar para
contar a seus históricos companheiros da caverna as maravilhas dos
descobrimentos que está a fazer. Este é um momento de forte generosidade, porque ele poderia ter
decidido seguir caminho sozinho e solitário. É o sentimento de compromisso em
compartir o bem alcançado que o faz dar
os passos de volta para contar aos amigos aquilo novo que está conhecendo.
"o
gesto primário".
O ato de posse na Academia Brasilense
de Letras tem marca própria e especial, por se tratar de cerimônia com dois
sentidos ao mesmo tempo.
Primeiro sentido é, como disse Lúcio
Costa no seu projeto de Brasília, "gesto primário de quem assinala um
lugar ou dele toma posse, dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja o
próprio sinal da cruz". Posse da cidade-capital. A maioria dos que estão
aqui têm duas cidades: a natal e Brasília.
Segundo sentido, é posse em instituição
criada há cerca de 50 anos, em 1968, por grupo de intelectuais - Almeida
Fischer, Hermes Lima e Cândido Mota Filho, entre outros - para promover o
estudo da nossa língua e de contribuir para a elevação cultural do povo
brasileiro.
Agradeço, inicialmente, os colegas da
Academia Brasilense de Letras pela indicação de meu nome para integrar o seu
convívio. Agradeço em particular o Presidente da AbrL, Professor Carlos Fernando
Mathias de Souza e o Padre José Carlos Brandi Aleixo, pela gentileza de aceitar
falar em nome da Academia para me receber.
A Academia Brasiliense de Letras tem a
missão de ser uma das entidades fundadoras da cidade-capital. Ao fundar,
também, funde talentos e aspirações vindas de todos os cantos do país.
A partir do novo centro do país recebe,
cria e irradia patrimônio cultural local e nacional.
Vir para Brasília, no meu caso, como
somente diplomata, no começo, igualmente, significou vir para o interior
profundo do país, e potencialmente ir para o exterior, para o mundo. Dois
movimentos em uma só ação.
A Academia, local de amizade, cume da
quarta montanha, ponto de encontro de leituras, forja do novo, é também local gerador
de tradição. Sinto-me bem ao fazer parte desta tradição.
Como bem disse San Tiago Dantas,
"o primeiro requisito da cultura é a memória".
No mesmo diapasão, quero sublinhar
frase de Alceu Amoroso Lima que gostaria fosse o mote principal deste discurso:
"O passado não é o que passou.
É
o que ficou do que passou".
Celebração em ... Moscou!
Quero, inicialmente, explicar aos meus
colegas acadêmicos e à amigas e amigos presente, o motivo do atraso em marcar a
cerimônia de minha posse. Nos últimos dois anos, 2015 e 2016, tive 3 cirurgias
nos dois olhos: duas por cataratas, e uma terceira por causa de descolamento de
retina no olho esquerdo, considerada a mais complicada operação oftalmológica e
com risco real de cegueira..
Graças a Deus, e aos médicos Dr. Carlos
Eduardo Arieta e Emerson Fernandes de Sousa e Castro, recomendados pelos amigos
Antonio Roberto Batista e Dante Alário Júnior, e, "last but not
least", o cuidado de Rosa, as cirurgias foram exitosas e após
convalescência estou em fase final de recuperação.
Em se tratando de reunião na Academia
de Letras da capital federal, tomo a liberdade de narrar, neste ambiente de
amizade, fato que me ocorreu, após ter confirmado o sucesso na cirurgia de
descolamento de retina. O médico liberou-me para viagens, inclusive internacionais,
no final de 2015. Fui a Moscou representar o Brasil na Reunião dos Ministros de
Ciência e Tecnologia dos BRICS.
Ao final do encontro, resolvi assistir
um espetáculo no Teatro Bolshoi, e tive a sorte de encontrar um bom ingresso,
na terceira fila da platéia. O programa desta noite era a ópera de Tchaicovsky
"Iolanda". Pouco conhecida esta obra, para meu espanto, trata
justamente da questão da visão. É a história de uma princesa cega de nascença,
que está prometida para um príncipe, que por sua vez está interessado em outra
mulher... Acontece, no entanto, que um companheiro do príncipe se apaixona pela
princesa cega, e com ela deseja se casar. Confessa isso ao príncipe que
compreende a situação, que é também boa para ele, e autoriza e abençoa o casamento
de seu amigo.
E eu lá, na terceira fileira, com este
enredo, com a música sublime de Tchaicovski, tocada pela orquestra e o bailado
e os cenários do Bolschoi... Encantamento estético e impacto do tema!
Chega ao momento final desta
desconhecia e impactante ópera para mim. Mas, aí vem o instante culminante. A
cena do casamento. A princesa, após várias tentativas de cura da cegueira,
inclusive com um mago do Oriente, tem o diagnóstico da impossibilidade de cura
pela medicina, mesmo a esotérica. Somente, diz o mago do Oriente, uma suprema
força de vontade da princesa, e a intervenção divina poderá curá-la.
Cena final. Na cerimônia de casamento,
a princesa começa a ver! Tchaicovsky coroa sua obra com forte hino de ação de
graças a Deus pelo dom da visão! E eu lá na terceira fila! Não poderia haver
melhor celebração para mim que benção do grande compositor russo! Esta
coincidência, óbvio com a mão oculta do
Senhor, foi para mim a dádiva gratuita de um verdadeiro milagre em Moscou.
Ao narrar este episódio ao colega
Embaixador Marcos Azambuja. Ele, com seu conhecido senso de humor, disse-me:
"Que beleza Cardim! Mas esta sua história me faz lembrar resposta do
Senado Vitorino Freire, quando foi questionado sobre sua operação de
descolamento de retina por jornalista à procura de manchete. Como todo
político, Vitorino acreditava que homem
público não deve falar de seus problemas de saúde. Assim respondeu à indagante
jornalista: "Você entendeu errado o boato. O que tive foi um deslocamento
de rotina; e não um descolamento de retina...".
No meu caso tive os dois. Minha viagem
à Rússia já era a quarta em quatro anos.
Posso dizer que Moscou entrou na minha rotina internacional.
Tão firme como os tipos gráficos.
Conheci a Academia Brasiliense de
Letras (ABrL) pelas mãos de Waldemar Lopes (1911-2006), em 1974. Em visita ao
amigo, em Brasília, encontrei-o, em sua casa, preparando o próximo número da
revista da ABrL. Fazia a diagramação do texto, ultimava o projeto gráfico da
capa e dava uma revisão geral do material. Foi um encontro, basicamente, de
dois humildes e entusiastas cultores da edição de livros e revistas.
Waldemar Lopes é um nome metade pessoa,
metade instituição como dizia Machade Assis definindo os Senadores do Império.
Dispensa maiores apresentações aqui.
A relação de amizade, apesar da
diferença de idade, e admiração surgiram a partir de grupo de estudantes em São
Paulo,que eu fazia parte, reunidos em torno de uma entidade nossa: o
"Centro Latino Americano de Coordenação Estudantil CLACE". Um dos membros
da entidade, o hoje Professor Eiiti Sato, ganhou prêmio de concurso organizado
pela OEA sobre o tema do Pan-Americanismo. Desta data em diante desenvolveu-se
entre o Dr. Waldemar Lopes e os componentes do CLACE forte relação de amizade.
Waldemar e eu tínhamos um passado
tipográfico. Ele, no município de Quipapá, em Pernambuco, em 1926, na fazenda
da família, "Novo Horizonte", que tinha pequena gráfica -
provavelmente caso único no Brasil - onde Waldemar editava um jornalzinho
semanário "O Ideal". Eu, em São Paulo, onde participava ativamente de
entidade cultural com colegas jovens, publicávamos vários jornais estudantis, e
tínhamos, também, uma pequena gráfica.
Nossa amizade era tão firme como o
chumbo dos tipos gráficos.
É motivo de alegria e celebração para
mim ter Waldemar Lopes como "padrinho" nesta Casa das Letras de
Brasília.
Em 1976, entrei para o Itamaraty, e vim
servir em Brasília. A partir desta data, pude desfrutar mais amplamente do
convívio com Waldemar e sua esposa Iraci Lopes.
Waldemar era um construtor de encontros
no sentido que Romano Guardini expôs em seu livro sobre Sócrates.
Guardini, ao comentar os
relacionamentos humanos e a dificuldade de verdadeira comunicação e autêntico
diálogo entre as pessoas, destacava a importância dos indivíduos que logram
estabelecer em torno de si áreas de real encontro com o outro. Assim se
expressava: "Nem todas as personalidades facilitam na mesma medida o que
se pode chamar de ´encontro`, pois esse supõe um caráter especial. Um homem pode
possuir qualidades admiráveis, mas tão peculiares, que estabeleçam uma barreira
entre ele e quem se lhe aproxime. Outros logram influir mais intensamente, mas
somente através de suas criações, enquanto eles mesmos, pessoalmente, se
retiram de todo. Por outro lado, estão aqueles que cativam, humanamente, mas
que, além disso, nada significam". Para Guardini o homem que possibilita o
"encontro" é um tipo raro e não abundante na história, e se
caracteriza por "essa força do tocante e do comovedor na mais intensa medida"
Foi por este "tipo raro e não
abundante" que tive a sorte de conhecer amigos futuros como Walter Costa
Porto, parceiro em tantas empreitadas culturais, editoriais e políticas.
A lembrança de Waldemar Lopes tem tudo
a ver com o espírito da Academia de ser ponte entre gerações.
A Cadeira número 11.
A mesa e a cadeira são símbolos
marcantes da vida intelectual. O grande mestre Miguel Reale costumava dizer:
"Vida intelectual é mesa!". Esta cadeira, número 11, da Academia
Brasiliense de Letras, cujo patrono é Farias Brito, já foi ocupada por Hamilton
Nogueira, e por José Carlos de Almeida Azevedo.
Hamilton de Lacerda Nogueira (1897 -
1981) nasceu em Campos, no Estado do Rio de Janeiro, em 1897. Formado em
Medicina, teve papel de liderança no movimento leigo católico, no Centro Dom
Vital. Iniciou a vida política, elegendo-se Senador à Assembléia Nacional
Constituinte, pelo então Distrito Federal, em 1946, pela UDN, União Democrática
Nacional. Foi Deputado Federal, nas Legislaturas de 1959 e 1963. Integrou o
MDB. Escreveu ensaios sobre Jackson Figueiredo, Freud, Dostoiewski, Conrad e
uma crítica sobre Macunaíma, elogiada
por Mário de Andrade. Poliglota, aos 60 anos começou a estudar hebraico, chinês
e dinamarquês, dedicando-se à pintura. Em 1948, indicou o nome de Oswaldo
Aranha para o Prêmio Nobel da Paz.
José Carlos de Almeida Azevedo
(1932-2010) foi oficial da Marinha do Brasil, Doutor em Física pelo MIT (EUA),
Vice-Diretor do Instituo de Pesquisa da Marinha, e Reitor da UnB de 1976 a
1985. Joaquim Nabuco, em Balmaceda, assinala,
nos membros da Marinha, "sua simpatia pelas idéias e pelas coisas que ele
sabe ser universais, porque as encontrou à volta do Globo, nas diversas escalas
do seu navio". Dedicado ao tema da educação é autor do livro Omissão da Universidade?. Participou
ativamente do debate de questões pedagógicas, por meio de artigos nos jornais
"Folha de S. Paulo", "O Estado de São Paulo" e "O
Globo".
Foi Reitor da UnB, no período de
transição política no Brasil, particularmente, na fase comandada pelo Ministro
da Justiça Petrônio Portella, sob a liderança do Presidente Ernesto Geisel. Lembro-me
o Presidente chileno, o notável político Patrício Aylwin, assinalar que o
processo de transição "é uma delicada obra de relojoaria política".
Com avanços e recuos, fase tensa na qual o novo, apesar de vigoroso, ainda é
frágil, e o arcaico, apesar de superado, ainda não desapareceu. No bem sucedido
caso brasileiro da transição, o que ficou foi um avanço da sociedade, acima de
nomes singulares, superior, ao que Marco Maciel tanto criticava, "a
excessiva fulanização da política brasileira".
Azevedo sempre esteve preocupado em
atingir padrões de alta qualidade em seu labor universitário. Além da qualidade,
teve também como prioridade a quantidade. Ou seja, aliar qualidade com
quantidade era seu maior desafio. Exemplo
desta prioridade, foi o acordo firmado entre a UnB e a Open University
britânica, para assimilar a metodologia do ensino à distância, e lançar no
Brasil os primeiros cursos de extensão nessa modalidade de educação, produzidos
pelo Decanato de Extensão e pela Editora UnB, nas áreas de Ciência Política e
Relações Internacionais.
O Reitor Azevedo sempre deu apoio total
à edição de livros pela UnB, com projeto próprio e em co-edições. Implantou-se,
assim, a Editora UnB como a primeira "academic press" no Brasil, no
estilo da Harvard, Oxford e Cambridge. Quando se fala em implantar uma editora,
deve-se ter em mente o número mínimo de 500 títulos em seu fundo editorial. De
1978 a 1985, a Editora UnB alcançou marca de cerca de 700 títulos, entre obras
publicadas e negociadas. Nesse
contexto, foram convidados destacados nomes brasileiros e estrangeiros para
virem a Brasília participar dos "Encontros Internacionais da UnB",
como por exemplo, Karl Deutsch, Raymond Aron, Maurice Duverger, Norberto
Bobbio, Gilberto Freyre, Afonso Arinos, Miguel Reale, John Kenneth Galbraith,
Robert Dahal e Richard Leakey.
Destaca-se, igualmente, a promoção pela
UnB em 1976 de importante encontro acadêmico internacional reunindo cerca de 25
grandes nomes acadêmicos, de variadas tendências - conservadores, liberais,
socialistas e marxistas - presidido pelo Embaixador Roberto Campos.
A respeito da contribuição cultural da
Editora UnB, sublinho um título, entre dezenas de expressiva relevância: a tradução
por primeira vez para o português da obra de Max Weber Economia e Sociedade, o maior clássico das Ciências Sociais do
século XX. Ao ler, recentemente, texto de 1957 de Hermes Lima, um dos
fundadores de nossa Academia, verifiquei as constantes referência do mestre
bahiano a Weber. Lembrei-me que, nos anos 1970, estudei Weber pela gloriosa
edição do Fondo de Cultura Economica do México, fundado em 1934, cujas edições,
à época em que fiz faculdade, constituíam verdadeira "universidade de
ciências sociais na América Latina".
A contribuição editorial e de
atividades de extensão da UnB, no período de 1976 a 1985, tem sido considerada
por analistas como passos relevantes no processo de abertura democrática no
Brasil.
No período de 1978 a 1983 ocupei os
cargos de Decano de Extensão da Universidade de Brasília (UnB), e Presidente do Conselho Editorial da Editora
da UnB.
A capital vai, assim, se construindo
como cidade universitária, também. José Bonifácio, que a batizou com o nome de
Brasília, defendia que a primeira universidade brasileira deveria ser instalada
em São Paulo por ser mais saudável para os alunos e professores do que o Rio de
Janeiro. Hoje, José Bonifácio preferiria, sem dúvida, Brasília.
Sócrates sertanejo.
Farias Brito (São Benedito, Ceará, 1862
- Rio de Janeiro, 1917) abre o primeiro capítulo, de sua obra Finalidade do Mundo, com a afirmação de
que "As duas manifestações fundamentais do espírito humano na marcha geral
da sociedade são a política e a filosofia. A política dá em resultado o
direito; a filosofia dá em resultado a moral. (...) moral é fim da
filosofia".
Fica evidente o patrocínio de Sócrates
ao pensador cearense que vê no sábio ateniense seu maior patrono espiritual e
intelectual. Na visão socrática de Farias Brito, a filosofia era um aprendizado
existencial da morte, e o reconhecimento racional de que "só sei que nada
sei". Diz ele "tudo em minha vida está subordinado a esse
pensamento".
Nas
palavras de Nestor Victor, Farias Brito era "um sertanejo que se fez sábio
e um sábio que achou melhor ser um santo. Saiu, por isso, um filósofo à maneira
de Sócrates, filósofo principalmente para conhecer-se a si mesmo e aprender a
morrer, no que ainda traduziu a tristeza ensimesmada do homem do sertão".
Um
encontro com Karl Popper.
Sócrates é o primeiro clássico.
Fundador do pensar no Ocidente. Karl Popper, um dos maiores filósofos do século
XX, considera "A Apologia de Sócrates", o melhor texto da Filosofia.
Tivemos, eu e o Padre Aleixo, o
privilégio de um encontro com Popper, em sua residência em Londres. Lembro-me
que, no jardim enquanto tomávamos chá com o Mestre, fiz um comentário para
Popper elogiando a bela e enorme árvore a nosso lado. Popper, então me
respondeu: "Você tem razão. É uma linda árvore. Plenamente crescida e
realizada. Minha mulher e eu a plantamos, quando comecei a dar aulas na "London
School of Economics LSE", no anos
40. Lecionava Filosofia dda Ciência. Veja só: Hoje a árvore está completa. E eu
tenho mais dúvidas e perguntas do que há 40 anos atrás !".
Era o eco do ensinamento de Sócrates:
"tudo que sei é que nada sei".
Farias
Brito, Pará e Platão.
Essa profunda afinidade de Farias Brito
e Sócrates tem uma passagem bastante curiosa. Como foi dito, Farias passou
relevante etapa de sua vida em Belém do Pará, de 1902 a 1909. Nesse período,
publica o terceiro volume de Finalidade do Mundo e a obra A Verdade como Regra das Ações. Além de
advogar, dá aulas de Filosofa na Faculdade de Direito.
A profícua produção acadêmica de Farias
Brito em Belém desmente a tão propalada tese que no fundo é um preconceito
sobre a dificuldade dos climas quentes e tropicais para a tarefas superiores do
pensamento.
Ainda como desmentido ao preconceito, assinalo
que, em 1980, após 70 anos da passagem de Farias Brito por Belém, a
Universidade Federal do Pará (UFPA) inicia uma publicação que honra a vida
cultural do Brasil: a tradução do grego por Carlos Alberto Nunes das obras
completas de Platão. É iniciativa a nível das melhores editoras universitárias
do mundo como Oxford, Harvard, Cambridge e "Belles Letres". O
primeiro volume com a "Apologia de Sócrates", ganhei do então Senador
e ex-Reitor da UFPA, Aluisio Chaves. Chamou-me a atenção que o "Corpus Platonicum"
fosse editado dentro da "Coleção Amazônica", na "Série Farias
Brito" da UFPA. Traço provinciano? Não, na verdade, homenagem ao semeador
da generosa e forte semente das idéias filosóficas em solo paraense. Como disse
Djacir Menezes: "Como historiador e expositor dos sistemas da filosofia
moderna foi realmente excepcional".
Língua
e Filosofia.
Barreto Filho, em introdução à obra de
Farias Brito, detectou com argúcia que: "Para
que um povo possa se ligar intimamente ao trabalho filosófico universal é
necessário, antes de mais nada, que alguém pense na sua língua o que já foi
pensado por outros. A linguagem é instrumento não só de transmissão, mas de
assimilação de idéias, e cada língua corresponde a uma mentalidade que, para
pensar, necessita desse sistema próprio de expressão. A linguagem filosófica,
mais trabalhada em Portugal por um Manuel Bernardes ou um Frei Heitor Pinto,
era de extrema penúria no Brasil. Não conseguimos formar nenhum centro de
estudos filosóficos, e o positivismo acabou proscrevendo das nossas escolas o
próprio ensino da filosofia. Nesse longo hiato, encerrado pelas nossas atuais
faculdades de Filosofia, Farias Brito é o solitário detentor entre nós da
tradição filosófica. Repensou por si mesmo todas as doutrinas e formou um
instrumento de expressão adequado para fixá-las e transmiti-las".
Destacar a relação entre língua e
Filosofia é a melhor maneira de terminar este discurso na "Academia
Brasiliense de Letras", que prevê em seus Estatutos, entre seus objetivos
principais, o de cultivar a língua.
Certa vez indagaram a Confúcio - por
sinal contemporâneo de Sócrates - qual deveria ser a primeira tarefa de um governante.
Ao que o mestre respondeu: "Definir as palavras". Laborar e
encontrar, como queria Gustave Flaubert, "le juste mot". A palavra
certa. Com as palavras de nossa língua não somente pensamos, mas também
construímos o presente e o porvir.
No início desta oração, lembrei a frase
de Alceu Amoroso Lima: "O passado
não é o que passou. É o que ficou do que passou". Inspirado por Tristão de
Athayde, cujos artigos me guiaram na adolescência, e por Brasília, a capital da
esperança, nas palavras de André Malraux, ouso dizer que "O futuro não é o
que virá. Será o que plantarmos no presente". Plantarmos com pensamentos e
palavras na nossa língua.
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