Repetindo o óbvio (09/01/2000)
*Roberto de Oliveira Campos
Aceito
o risco de parecer repetitivo. Diante das grandes questões que
preocupam mais no nosso país, a originalidade do articulista fica em
segundo lugar. Estamos atravessando dias pesados, um ambiente de
insatisfações e sombras. Os mais jovens sentem-se angustiados diante das
incertezas do futuro, da ameaça de desemprego, de falta de horizontes.
Os mais velhos tentam lembrar-se daqueles períodos em que o Brasil não
atravessava um estado de crise permanente. Salvo alguns breves anos do
começo do Plano Real, parte da Era Kubitschek e o otimismo do "milagre
econômico" do fim dos anos 60 - que, no entanto, foi tisnado pela
situação política de exceção -, todo o resto de nossa História
contemporânea é um confuso mosaico de problemas e condições
institucionais instáveis.
Não
chegamos felizmente ao extremo dos gulags, campos de extermínio,
"limpezas étnicas" e coisas que tais. Nossos chamados "anos de chumbo",
comparados às experiências de outras nações (e certamente aos "anos de
aço" dos regimes comunistas), pareceriam antes de papel de cigarro
metalizado. Se afundamos numa situação crítica injustificável, é por
nossa própria culpa, por falta coletiva de bom senso e de
responsabilidade.
O
público exprime sua perplexidade naquela conhecida anedota de como
Deus, tendo presenteado nossa geografia com uma abundância de vantagens
materiais, colocou no Brasil, como contrapeso, um "povinho ruim". Essa
autodepreciação está errada. O trabalhador brasileiro, ainda que
subinstruído, é diligente e flexível, como as empresas estrangeiras são
as primeiras a reconhecer. Os engenheiros e gerentes especializados têm
em alguns casos nível bastante alto. Somos a oitava economia do mundo e
temos conseguido adaptar-nos a mudanças tecnológicas complexas.
Falta-nos reduzir os excessivos contrastes em matéria de educação,
informação e saúde - demanda social justa, mas não um impedimento real
ao nosso desenvolvimento tecnológico ou industrial.
A
verdade é que nosso grave subdesenvolvimento não é só econômico ou
tecnológico. É político. Somos um gigante preso por caguinchas dentro de
estruturas disfuncionais. A máquina político-administrativa que rege
hoje nossos destinos é uma fábrica de absurdas distorções cumulativas. O
regime presidencialista e o voto puramente proporcional, cada um dos
quais, já de si, dificilmente funcionam bem, transformam-se, quando
combinados, numa crise quase ininterrupta. O presidencialismo americano,
que nos serviu de modelo, é conjugado ao voto distrital, e a federação é
autêntica, porque foram os Estados que a criaram, enquanto que no
Brasil estes resultaram do desfazimento do império unitário.
Não
é que os políticos só pensem em si ou sejam "corruptos" de nascença.
Essa é uma visão popular deformada. A maioria é dedicada e séria. Mas o
deputado, o senador, o prefeito, o governador e, obviamente, o
presidente têm de ser eleitos, ponto de partida do qual não há
escapatória. Nas eleições proporcionais de hoje, os deputados são
obrigados a catar votos por todo o Estado, garimpando aqui e ali - um
processo caro e tremendamente incerto, porque eleitor em geral não sabe
como discriminar entre dezenas de representantes eleitos. Como é que o
eleitor médio vai se lembrar de quem propôs medidas ou leis, para poder
avaliar quem merece o seu voto? Um americano ou um inglês pode falar no
"seu" deputado: sabe exatamente quem ele elegeu e tem como cobrar
respostas ao representante do "seu" distrito. O alemão, com um sistema
misto, tem o "seu" deputado distrital e também o da lista do seu
partido. E, como o regime é parlamentarista, pode cobrar de ambos.
No
Brasil, cobrar o quê? De quem? Mal acaba de ser eleito por um partido, o
deputado ou senador se sente à vontade para mudar de partido. Não
existe sanção. A eleição presidencial então é sempre um trauma violento,
agravado pela percepção de que o vencedor passará a controlar a máquina
pública, os mecanismos de dar ou negar favores. Gerir a coisa pública
é, entre nós, um contínuo varejo. Dá para estranhar que, desde o início
da República, raros tenham sido os governos que não se envolveram em
conflitos com o Congresso, com riscos de descontinuidade institucional?
Contra um sistema tão ruim, tanto faz se os políticos são santos ou
bandidos. Num ônibus sem freios, o perigo de desastre é o mesmo para
todos. Há perto de três séculos e meio, Colbert, o famoso ministro
protecionista da França monárquica, assim se lamentava na Carta de Luís
XIV aos funcionários e ao povo de Marselha (26 de agosto de 1764):
"Como
desde a morte de Henrique IV temos tido só exemplos de carências e
necessidades, precisamos determinar como aconteceu que, durante tão
longo tempo, não tenhamos tido, se não abundância, pelo menos uma renda
toleravelmente satisfatória..." Colbert põe a culpa no sistema fiscal e
afirma que piores do que os muitos corruptos foram aqueles altos
funcionários "cuja incompetência prejudicou mais o Estado e o povo do
que os roubos pessoais". Entre os vícios da burocracia fiscal da época,
Colbert lista os seguintes: "Consumir com despesas correntes as receitas
ordinárias e extraordinárias dos dois próximos anos..." e "negligenciar
as receitas gerais ordinárias afazendadas, dedicando-se ativamente à
busca de fontes de renda extraordinárias..."
Colbert
se revelou um reformista e desenvolvimentista avant la lettre. Mas a
França já estava politicamente entalada, e ele não conseguiu realizar
sua "reforma fiscal". O mundo está cansado de esperar pelas "reformas"
brasileiras. E de ouvir lamentações sobre a nossa pobreza. Há muito,
exceto em regiões desérticas da África ou gravemente sobrepovoadas da
Ásia, a pobreza deixou de ser uma fatalidade. É um acidente histórico de
povos que preferem externalizar a culpa em vez de fabricar seu próprio
destino.
Nenhum comentário:
Postar um comentário