Poucas revistas acadêmicas de prestígio reconhecido conseguem, no Brasil, superar o efêmero, ou o conjuntural de uma geração, para projetar-se de forma constante no cenário intelectual do país. A
Revista Brasileira de Política Internacional (
http://www.scielo.br/rbpi), que já adentrou, na cronologia humana, na temporalidade de três gerações, firmou-se e vem consolidando uma história de longevidade raras vezes registradas no mercado editorial dedicado a esse setor especializado das humanidades, o das relações internacionais. Neste campo, ela é, não apenas a mais longeva, mas a melhor, a mais completa e a mais prestigiosa das revistas que cobrem essa área ainda relativamente rarefeita no Brasil.
Seu itinerário não foi, contudo, uniforme, ou tranquilo, até que ela conseguisse alcançar, na última década, um padrão de qualidade que a coloca entre os melhores e mais qualificados periódicos científicos nesse universo especializado de publicações. Ela nasceu dentro da pequena comunidade que, no Rio de Janeiro de meados dos anos 1950, se dedicava aos temas das relações internacionais e da política externa do Brasil, o que compreendia tribunos de Estado, intelectuais de renome, servidores públicos, entre eles vários diplomatas, políticos cosmopolitas e magistrados interessados nas grandes questões da política, do direito e da economia mundiais.
Em 1958, quando ela foi criada por iniciativa de alguns “empreendedores de relações internacionais”, o universo editorial dedicado ao ambiente externo e à política externa do Brasil não contemplava praticamente nenhuma revista especializada, salvo publicações gerais exibindo eventualmente artigos dentro dessa área: era o caso, por exemplo, da revista da mais antiga instituição acadêmica do Brasil, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (fundado em 1838), das revistas militares e de algumas poucas outras – como a Brasiliense, ou os Cadernos do Nosso Tempo, que desapareceriam mais adiante – que traziam bem mais artigos de opinião do que pesquisas dotadas de sério embasamento empírico ou conceitual. Os próprios relatórios do Ministério das Relações Exteriores há muito tinham deixado de exibir a mesma qualidade dos relatórios da antiga Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, do Império, ou os da velha República, e praticamente desapareceram no seu formato tradicional no decorrer da década seguinte.
A RBPI constituiu, assim, o mais importante empreendimento intelectual do seu campo, não ainda, naquela época, dotado dos padrões existentes em revistas similares da Europa ou dos Estados Unidos, mas já engajada na confecção de artigos originais, no estímulo à produção intelectual dos próprios diplomatas, na coleta e publicação de importantes textos oficiais da diplomacia brasileira, bem como de simples resenhas de livros da área ou de notas de conjuntura sobre atividades relevantes da diplomacia oficial. Sem se identificar, ou se confundir, com o Itamaraty, a RBPI representava, nesse sentido, um importante elo de ligação entre o corpo profissional do MRE e a comunidade brasileira e estrangeiro voltada para o estudo e debate de temas relativos à política externa. Esse vínculo não afetava em nada sua total autonomia editorial, inclusive quanto à escolha dos temas que seriam abordados a cada número (trimestral).
Os anos da “Política Externa Independente” representaram uma precoce fase de sucesso enquanto empreendimento editorial de política internacional e de diplomacia do Brasil, um prestígio e um vínculo preferencial entre os dois “estabelecimentos” que a crise política do início dos anos 1960 e o golpe militar de 1964 viriam abalar e em parte comprometer durante vários anos. Ocorreu certa retração dos diplomatas participando na e da revista, pois estes passaram a considerar com maior cuidado político a elaboração de artigos de opinião para a
RBPI, identificada com aquela fase pioneira de busca da plena autonomia na formulação e implementação da política externa, num período em que os critérios de segurança primavam conjunturalmente sobre os de desenvolvimento e participação no ambiente efervescente dos anos 1960. A
RBPI teve a companhia temporária (por apenas três números, entre 1965 e 1966) de um outro empreendimento, a revista
Política Externa Independente, que, por acaso, também foi dirigida por um dos nomes mais prestigiosos da intelectualidade brasileira, o historiador José Honório Rodrigues, que durante vários anos nessa década, também foi o diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI –
http://www.ibri-rbpi.org), ao mesmo tempo em que se exercia como editor, aliás excelente, da
RBPI.
O outro grande nome dessa fase pioneira, mas que se devotou inteiramente à revista durante suas primeiras três décadas no Rio de Janeiro, foi obviamente Cleantho de Paiva Leite, membro da assessoria especial do governo constitucional de Getúlio Vargas (1951-54), fundador e executivo do IBRI, um dos primeiros representantes do Brasil no BID e animador intelectual e generoso financiador da RBPI durante a sua fase de relativo declínio dos anos 1970 aos 80. Seu falecimento, em 1992, quase constituiu, também, uma ameaça de morte para a revista, finalmente salva ao ser transferida para Brasília, no ano seguinte, por um pequeno grupo de acadêmicos e diplomatas, que se empenhou em resgatar toda a sua memória pregressa – atualmente disponível em formato digital – e em implementar um programa de elevação dos seus padrões editoriais, até que ela alcançasse, já na segunda década do novo milênio, um status e uma qualidade comparáveis aos das melhores revistas internacionais conhecidas. Dois nomes estão associados a essa fase brasiliense da RBPI: o professor titular de história das relações internacionais da UnB, hoje aposentado, Amado Luiz Cervo, primeiro editor, por dez anos, nessa segunda fase, e, em especial, o professor Antonio Carlos Lessa, responsável pelo processo de verdadeira internacionalização da revista, que agora pode estar vivendo sua terceira e melhor fase.
Exibindo atualmente indicadores de excelência editorial no plano internacional, a RBPI promete consolidar-se cada vez mais como a revista por excelência nessa área no Brasil, com uma interface externa, na região e fora dela, cada vez mais intensa e frutífera. Seu corpo editorial testemunha a amplitude dessa internacionalização e a escolha criteriosa dos artigos científicos que serão publicados, agora em fluxo contínuo, reforçam essas características dos últimos anos e do futuro previsível. Como antigo colaborador em sua primeira fase, como um dos responsáveis pela seu renascimento em Brasília, e como parte intelectualmente interessada no seu fortalecimento internacional, nesta nova fase, sinto orgulho de ter ajudado a RBPI a consolidar-se como uma revista essencial ao estudo das relações internacionais nas últimas seis décadas, e mais além, haja visto, também, seu forte conteúdo histórico e, anteriormente, documental. Quem quer que empreenda pesquisas sobre as relações internacionais e sobre a política externa brasileira desde a segunda metade do século XX até os nossos dias tem, na RBPI, um instrumento incontornável de referência e uma fonte indispensável para a leitura de ensaios de qualidade sobre esse universo cada vez mais relevante nas humanidades do Brasil. Ela é a mais antiga, a mais completa, a melhor revista do gênero no país.
Longa vida à RBPI ao início do seu sexagésimo ano de publicação continuada.
Sobre o autor
Paulo Roberto de Almeida é editor-associado da Revista Brasileira de Política Internacional. Diplomata de carreira, é diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Ministério das Relações Exteriores do Brasil (paulomre@gmail.com).
Como citar este artigo
Mundorama. "RBPI: itinerário de uma revista essencial, por Paulo Roberto de Almeida".
Mundorama - Revista de Divulgação Científica em Relações Internacionais,. [Acessado em 25/04/2017]. Disponível em: <
http://www.mundorama.net/?p=23514>.
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