Nota preliminar: texto revisto e ampliado em 22/04/2017:
Roberto Campos, 100 anos: atualidade de suas ideias
Paulo Roberto de Almeida
As principais ideias
econômicas de Roberto Campos, elaboradas já no contexto de sua tese de mestrado
na George Washington University em 1947, foram sendo paulatinamente consolidadas
ao longo dos anos 1950, paralelamente a seus trabalhos no âmbito da Comissão
Mista Brasil-Estados Unidos e, imediatamente após, no quadro do BNDE, onde ele
começa a trabalhar desde o seu início, designado Diretor Econômico. O que então
caracterizava o seu pensamento era a mobilização da capacidade administradora
do Estado para acelerar o processo de industrialização, por meio do
planejamento indutivo e da atração de capitais estrangeiros, atuando na linha
de um projeto nacional de desenvolvimento guiado pela racionalidade de
resultados, antes que por um nacionalismo de intenções. Mas, por força de suas
leituras e registros empíricos sobre os processos inflacionários ocorridos em
outros países, Roberto Campos atribuía também grande importância à estabilidade
macroeconômica, ou seja, ao equilíbrio fiscal e à contenção da inflação.
Essa atitude já se
reflete no memorando que ele dirigiu ao ministro da Fazenda, em novembro de
1955, propondo uma solução “drástica e definitiva” do problema cambial, que
consistiria e se ter uma “desvalorização aberta”, revogando a paridade oficial
e “permitindo-se que tanto exportações quanto importações se liquidassem pelo
mercado livre”, ou seja, pioneiramente um regime de flutuação cambial (ver o Anexo
I das memórias, Lanterna na Popa, 4a,
edição, 2001, p. 1296). Com base nesse tipo de posicionamento eclético, Ricardo
Bielschowsky, no melhor estudo disponível sobre as ideologias econômicas no
período 1930-1964 (Pensamento Econômico
Brasileiro 1930-1964: o Ciclo Ideológico do Desenvolvimentismo),
classifica Roberto Campos como um desenvolvimentista liberal, com o que ele
estaria inteiramente de acordo, ou ainda como um desenvolvimentista não
nacionalista, rótulo, todavia, que o próprio Roberto Campos não aceitaria, por
se considerar tão patriota quanto qualquer outro brasileiro.
Foi também nessa época
que Campos analisou as posições contrastantes, nos planos teórico e prático,
entre dois grupos que defendiam visões divergentes sobre a inflação na América
Latina, cunhando os termos de “monetaristas” e “estruturalistas” para designá-los.
Seu principal trabalho a esse respeito foi publicado sob o título de “Duas
opiniões sobre a inflação na América Latina”, publicado originalmente em inglês
no volume coordenado por Albert O. Hirschman, Latin America Issues: essays and comments (New York: Twentieth
Century Fund, 1961), traduzido e
publicado no Brasil sob o título de Monetarismo
vs Estruturalismo: um estudo sobre a América Latina (Rio de Janeiro:
Lidador, 1967, p. 81-92). Num julgamento que se mantém por inteiro até os
nossos dias, Roberto Campos dizia:
Parece
prevalecer entre os “estruturalistas”, concomitantemente com uma atitude de
menosprezo [às] diretrizes monetárias, um conceito por demais limitado do que
seja uma política monetária e fiscal. (p. 91)
Tendo participado da formulação
do Plano de Metas de JK, e depois de planos de estabilização feitos com Lucas
Lopes, ministro da Fazenda de JK, e a pedido de Tancredo Neves, em 1961, quando
este se preparava para assumir o cargo de primeiro ministro no gabinete
parlamentarista de João Goulart, Roberto Campos adquiriu plena maturidade para
formular ele mesmo um projeto de reforma completo da economia brasileira, por
ele apresentado na primeira reunião de trabalho convocada pelo presidente
Castello Branco, em 23 de abril de 1964. Nesse documento, intitulado “A Crise
brasileira e diretrizes de recuperação econômica” – Anexo VII da Lanterna na Popa, p. 1353-1359 – Campos
formula uma abrangente análise da crise conjuntural, das perspectivas para
1964, examina as raízes do desequilíbrio econômico e propõe um elenco de
medidas corretivas, composto de combate à inflação (por medidas fiscais, de
ação sobre as expectativas, ação emergencial sobre a oferta), de reativação da
economia, de correção do desequilíbrio cambial e de inversão da crise de
motivação, para trazer de volta os investimentos e a criação de empregos, com
amplas reformas de estrutura.
Esse programa seria
aplicado de maneira coerente no PAEG, mas sem o caráter de ajuste recessivo que
economistas puramente monetaristas, ou então o próprio FMI, recomendavam, o que
confirma o caráter eclético do economista-diplomata. Ao final do governo
Castello Branco, Campos anunciava nova desvalorização cambial – de 23%, mas
afetando apenas as importações, que representavam 6% do PIB – e a criação do
cruzeiro novo, com corte de três zeros. A expansão dos meios de pagamentos
tinha passado de 86% de crescimento em 1964 a apenas 19% em 1966, o que
evidencia sua abordagem gradual de combate à inflação, sem os efeitos
recessivos de um forte ajuste.
Depois disso Roberto
Campos se retira do governo e continua seu trabalho de explicação didática da
economia por meio de seus livros – dois publicados com Mário Henrique Simonsen
– e de seus muitos artigos publicados de maneira regular nos grandes jornais de
São Paulo e Rio. Ele só volta realmente a propor um programa abrangente de
correção dos desequilíbrios econômicos quanto pronuncia seu discurso inaugural
no Senado Federal, em junho de 1983. Esse discurso, chamado de “As lições do
passado e as soluções do futuro” constituiu, segundo suas memórias, “talvez a
melhor peça que já escrevi, como síntese de problemas e propositura de
soluções”. A despeito disso, ele não tardou a reconhecer que a sua “capacidade
de análise e previsão era vastamente superior à [sua] capacidade de persuasão e
mobilização” (A Lanterna na Popa, p.
1073). A importância desse discurso merece que se detalhe suas propostas.
Minha
preocupação não era apenas fazer a anatomia da crise. Era propor a terapêutica
das soluções. Apresentei simultaneamente dez projetos de leis. Era um programa
de governo que, se adotado à época, teria contribuído para evitarmos a década
perdida. Os projetos se dividiam em quatro grupos:
1.
Medidas de flexibilização do mercado de trabalho e assistência ao desemprego:
-
Projeto de Lei n. 133: Reforma o Fundo de Assistência ao Desemprego e dispõe
sobre o auxilio ao desemprego (FAD);
-
Projeto de Lei n. 134: Estabelece a livre negociação salarial e dá outras
providências;
-
Projeto de Lei n. 135: Cria contratos de trabalho simplificados para facilitar
novas empresas;
-
Projeto de Lei n. 137: Cria nas empresas privadas, como alternativa à despesa
do empregador, disponibilidade remunerada e dá outras providências;
-
Projeto de Lei n. 140: Favorece as aposentadorias e a renovação de quadros;
-
Projeto de Lei n. 141: Agiliza as reduções da jornada de trabalho e
consequentes salários, para evitar dispensas de pessoal;
2.
Medidas para melhoramento da relação capital-trabalho:
-
Projeto de Lei n. 138: Dispõe sobre a distribuição eventual de lucros aos
empregados
3.
Medias relativas à privatização de empresas e serviços:
-
Projeto de Lei n. 139: Institui o programa de repartição de capital’
-
Projeto de Lei n. 136: Autoriza a delegação de previdência social às empresas
privadas;
4.
Medida de racionalização da estrutura de preços de combustíveis:
-
Projeto de Lei n. 142: Regulariza, sem aumento de incidências, o Imposto Único
sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos.
O
problema candente na época, que melancolicamente repontaria dez anos depois, no
momento em que escrevo estas memórias, era o do desemprego, com a agudização da
recessão, após o segundo choque do petróleo e a crise da dívida. (...) A
estagflação de hoje [1994] é, portanto, atribuível exclusivamente à incompetência
gerencial doméstica após a redemocratização. (p. 1076-1077)
Já seu discurso de
despedida do Congresso, realizado em janeiro de 1999 na Câmara dos Deputados,
representou um “melancólico pronunciamento”, uma confissão de fracasso, o de
toda uma geração, que não conseguiu retirar o Brasil de uma condição de pobreza
evitável para colocá-lo numa de prosperidade atingível, como ele mencionou em
mais de uma ocasião. No intervalo entre um e outro se situaram batalhas épicas
contra os descaminhos do desenvolvimento brasileiro, equívocos tremendos de
políticas econômicas e setoriais, contra as quais ele se posicionou
resolutamente em oposição, fazendo discursos de alerta e apresentando propostas
alternativas, mas sendo sempre derrotado pela conjuração de néscios, ao ter de
votar solitariamente, ou com apenas dois ou três colegas solidários no
liberalismo, contra leis e outras medidas adotadas cujo desastre previsível ele
anunciava com amargo sabor de desespero político e econômico.
Situam-se nesse universo
de estupidezes legais, desde sempre ou como novidades dentro do atraso mental
característico da classe política brasileira, o monopólio do petróleo, a lei de
informática, o nacionalismo comercial e tecnológico, o protecionismo tarifário,
o corporativismo dos mandarins do Estado contra a renda dos demais cidadãos, ou
súditos do ogro famélico que ele denunciava sem cessar, e sobretudo o conjunto
esquizofrênico de direitos e benesses concedidos no âmbito da Constituinte, que
ele já antecipava como uma receita segura para preservar a pobreza geral, inviabilizar
a formação de poupança para fins de investimento, destruir o equilíbrio das
contas públicas, produzir inflação e de modo geral manter o Brasil isolado da
economia mundial. Os inimigos continuam
os mesmos: nacionalismo rastaquera, protecionismo inibidor da inserção na
economia global, estatismo excessivamente intervencionista na atividade do
setor privado, patrimonialismo das elites, corporativismo institucional, enfim
o domínio da sociedade pelo Estado.
Registre-se que em todos
esses terrenos Roberto Campos tinha razão antes da adoção das políticas
equivocadas, durante a sua vigência desastrosa, e depois, quando depois de
provocar os previsíveis efeitos nefastos, elas foram, no todo ou em parte,
mudadas, eliminadas, parcialmente alteradas por revisões legais ou
constitucionais posteriores. Subsistem ainda diversas generosidades irracionais
do texto constitucional que continuam a produzir desequilíbrios nas contas
públicas, como ele antecipava de modo lógico e racional, sem precisar de muitas
provas empíricas para comprovar o acertado de suas críticas. Campos não apenas
teve razão durante todo o tempo, mas também viu antes de todos os demais as
consequências do caminho errado tomado pelo Brasil, e sobretudo viu mais e
melhor do que todos os seus contemporâneos.
Em meio aos problemas
econômicos acumulados ao longo de décadas, sem as reformas estruturais que ele
sempre preconizou, Roberto Campos tinha perfeita consciência do que era preciso
fazer para “desentortar” o Brasil e colocá-lo novamente numa trajetória de
crescimento sustentado com plena inserção econômica internacional. No famoso
discurso “Na curva dos Oitenta”, quando se comemorou o seu aniversário no
Copacabana Palace, em 17 de abril de 1997, ele já tinha dito que:
A
participação do Brasil nas duas primeira ondas sincrônicas de crescimento
[mundial] foi precedida de reformas. (...)
O
chamado ‘milagre brasileiro’, no final dos 60 e começo dos 70, foi precedido
das grandes reformas implantadas pelo governo Castello Branco, que eu chamarei
de ‘reformas de primeira geração’. (...)
Ao
contrário do que se passara na década dos 60, a dos 80 pode ser equiparada a
uma ‘contrarreforma’, pois o país marchou na contramão da história. A
redemocratização política em 1985 agravou, em vez de atenuar, o
intervencionismo econômico. E foi seguida de uma ladainha de erros. (...)
A
tarefa com que (...) todos nós nos defrontamos hoje é a realização das reformas
de segunda geração para desfazimento da contrarreforma da Constituição de 1988.
Essas reformas de segunda geração visam, além da estabilização monetária, à
reestruturação e redimensionamento do Estado. Reestruturação, pelas reformas
administrativa, fiscal e previdenciária. Redimensionamento, pela privatização
de empresas estatais e serviços de infraestrutura.
Estamos
num fim de século que é também fim de milênio. Tudo indica que se desenhe,
senão para o fim deste milênio, para o começo do novo, uma quarta onda de
crescimento. É importante que o Brasil dela participe. A quarta onda, além da
maior globalização dos mercados, trará inovações monetárias, como a moeda única
europeia, e inovações tecnológicas... Nossa preparação para a quarta onda
deveria incluir algumas reformas de terceira geração que se acavalariam com as
de segunda geração, formando uma corrente contínua.
Nossos
dois déficits estruturais são o déficit educacional e o déficit de poupança.
Nas reformas de terceira geração, devemos dar ênfase à educação básica e
vocacional, visando a pelo menos dobrar a escolaridade média da força de
trabalho. (...) O aumento da taxa de poupança implica corrigir-se a despoupança
do governo, pelo prosseguimento das reformas estruturais e da privatização. É
sobremodo urgente transformar-se a previdência social em fonte de capitalização
para o desenvolvimento do setor privado, que passará a ser o motor do crescimento.
(...) As outras reformas de terceira geração seriam a reforma política, para a compactação
dos partidos, cuja proliferação gera uma democracia disfuncional, e também a
reforma do Judiciário. (Lanterna na Popa,
4a, edição, 2001, p. 1429-1430).
Ao final da vida,
constatou que o mundo – mas apenas parcialmente o Brasil – estava mais parecido
com as suas ideias, uma constatação que seu colega francês Raymond Aron, colega
de ideias e de filosofia econômica, não teve a felicidade de fazer, por ter
falecido antes da implosão do socialismo. Mas registre-se igualmente que
Roberto Campos teve a duvidosa “felicidade” de morrer antes da ascensão ao
poder dos companheiros, que combinavam algumas das políticas erradas dos
“estruturalistas” que ele combatia nos anos 1950, com o pior do
intervencionismo estatal dos anos Geisel, sem ter a competência para
administrar políticas públicas como feito durante a era militar. Se ele
continuasse vivo durante toda a vigência do caos econômico criado pelas
políticas esquizofrênicas do lulopetismo, até o paroxismo da Grande Destruição
trazida não só pela velhíssima “Nova Matriz Econômica”, mas também pela
incompetência gerencial, inépcia administrativa e inacreditável corrupção
megalomaníaca dos aloprados do partido neobolchevique, Roberto Campos poderia
ter morrido deprimido, ao contemplar tamanha destruição de riqueza em tão pouco
tempo.
De forma similar, um ano
depois de seu discurso de despedida das atividades parlamentares, Roberto
Campos publicou um novo e contundente artigo – por isso mesmo não recolhido em
sua última antologia, Na Virada do
Milênio, que é de 1998 – cujo título é apropriadamente “Repetindo o óbvio”
(9/01/2001; transcrito neste link de meu blog: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/04/roberto-campos-repetindo-o-obvio-9012000.html), no qual ele diz claramente, com todas as letras que
“nosso grave
subdesenvolvimento não é só econômico ou tecnológico. É político.” Ele listava
então todas as graves deficiências da arquitetura institucional e da legislação
político-partidária que atuavam como poderosos entraves ao desenvolvimento do
país, muitas das quais são objeto dos atuais debates sobre reforma
político-eleitoral. Ele terminava esse artigo num tom de lamentação que se
aplica ainda hoje:
O mundo está cansado de esperar pelas “reformas” brasileiras. E de
ouvir lamentações sobre a nossa pobreza. Há muito, exceto em regiões desérticas
da África ou gravemente sobrepovoadas da Ásia, a pobreza deixou de ser uma
fatalidade. É um acidente histórico de povos que preferem externalizar a culpa
em vez de fabricar seu próprio destino.
Não há mais nenhum motivo
para duvidar: Roberto Campos continua atual, em seus diagnósticos dos erros
cometidos pelas lideranças políticas e econômicas, em seus alertas sobre os
desastres potenciais das políticas em vigor, em suas prescrições de urgentes reformas
estruturais e em suas antecipações de possíveis caminhos que nos retirariam da
pobreza evitável para nos lançar na construção da riqueza possível.
Paulo Roberto de Almeida (Brasília, 21 de abril de 2017)
Organizador e autor do livro O
Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos
(Curitiba: Appris, 2017).
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