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sexta-feira, 21 de abril de 2017

Roberto Campos: atualidade de suas ideias - Paulo Roberto de Almeida

Nota preliminar: texto revisto e ampliado em 22/04/2017:
 
Roberto Campos, 100 anos: atualidade de suas ideias

Paulo Roberto de Almeida


As principais ideias econômicas de Roberto Campos, elaboradas já no contexto de sua tese de mestrado na George Washington University em 1947, foram sendo paulatinamente consolidadas ao longo dos anos 1950, paralelamente a seus trabalhos no âmbito da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e, imediatamente após, no quadro do BNDE, onde ele começa a trabalhar desde o seu início, designado Diretor Econômico. O que então caracterizava o seu pensamento era a mobilização da capacidade administradora do Estado para acelerar o processo de industrialização, por meio do planejamento indutivo e da atração de capitais estrangeiros, atuando na linha de um projeto nacional de desenvolvimento guiado pela racionalidade de resultados, antes que por um nacionalismo de intenções. Mas, por força de suas leituras e registros empíricos sobre os processos inflacionários ocorridos em outros países, Roberto Campos atribuía também grande importância à estabilidade macroeconômica, ou seja, ao equilíbrio fiscal e à contenção da inflação.
Essa atitude já se reflete no memorando que ele dirigiu ao ministro da Fazenda, em novembro de 1955, propondo uma solução “drástica e definitiva” do problema cambial, que consistiria e se ter uma “desvalorização aberta”, revogando a paridade oficial e “permitindo-se que tanto exportações quanto importações se liquidassem pelo mercado livre”, ou seja, pioneiramente um regime de flutuação cambial (ver o Anexo I das memórias, Lanterna na Popa, 4a, edição, 2001, p. 1296). Com base nesse tipo de posicionamento eclético, Ricardo Bielschowsky, no melhor estudo disponível sobre as ideologias econômicas no período 1930-1964 (Pensamento Econômico Brasileiro 1930-1964: o Ciclo Ideológico do Desenvolvimentismo), classifica Roberto Campos como um desenvolvimentista liberal, com o que ele estaria inteiramente de acordo, ou ainda como um desenvolvimentista não nacionalista, rótulo, todavia, que o próprio Roberto Campos não aceitaria, por se considerar tão patriota quanto qualquer outro brasileiro.
Foi também nessa época que Campos analisou as posições contrastantes, nos planos teórico e prático, entre dois grupos que defendiam visões divergentes sobre a inflação na América Latina, cunhando os termos de “monetaristas” e “estruturalistas” para designá-los. Seu principal trabalho a esse respeito foi publicado sob o título de “Duas opiniões sobre a inflação na América Latina”, publicado originalmente em inglês no volume coordenado por Albert O. Hirschman, Latin America Issues: essays and comments (New York: Twentieth Century Fund, 1961), traduzido e publicado no Brasil sob o título de Monetarismo vs Estruturalismo: um estudo sobre a América Latina (Rio de Janeiro: Lidador, 1967, p. 81-92). Num julgamento que se mantém por inteiro até os nossos dias, Roberto Campos dizia:
Parece prevalecer entre os “estruturalistas”, concomitantemente com uma atitude de menosprezo [às] diretrizes monetárias, um conceito por demais limitado do que seja uma política monetária e fiscal. (p. 91)

Tendo participado da formulação do Plano de Metas de JK, e depois de planos de estabilização feitos com Lucas Lopes, ministro da Fazenda de JK, e a pedido de Tancredo Neves, em 1961, quando este se preparava para assumir o cargo de primeiro ministro no gabinete parlamentarista de João Goulart, Roberto Campos adquiriu plena maturidade para formular ele mesmo um projeto de reforma completo da economia brasileira, por ele apresentado na primeira reunião de trabalho convocada pelo presidente Castello Branco, em 23 de abril de 1964. Nesse documento, intitulado “A Crise brasileira e diretrizes de recuperação econômica” – Anexo VII da Lanterna na Popa, p. 1353-1359 – Campos formula uma abrangente análise da crise conjuntural, das perspectivas para 1964, examina as raízes do desequilíbrio econômico e propõe um elenco de medidas corretivas, composto de combate à inflação (por medidas fiscais, de ação sobre as expectativas, ação emergencial sobre a oferta), de reativação da economia, de correção do desequilíbrio cambial e de inversão da crise de motivação, para trazer de volta os investimentos e a criação de empregos, com amplas reformas de estrutura.
Esse programa seria aplicado de maneira coerente no PAEG, mas sem o caráter de ajuste recessivo que economistas puramente monetaristas, ou então o próprio FMI, recomendavam, o que confirma o caráter eclético do economista-diplomata. Ao final do governo Castello Branco, Campos anunciava nova desvalorização cambial – de 23%, mas afetando apenas as importações, que representavam 6% do PIB – e a criação do cruzeiro novo, com corte de três zeros. A expansão dos meios de pagamentos tinha passado de 86% de crescimento em 1964 a apenas 19% em 1966, o que evidencia sua abordagem gradual de combate à inflação, sem os efeitos recessivos de um forte ajuste.
Depois disso Roberto Campos se retira do governo e continua seu trabalho de explicação didática da economia por meio de seus livros – dois publicados com Mário Henrique Simonsen – e de seus muitos artigos publicados de maneira regular nos grandes jornais de São Paulo e Rio. Ele só volta realmente a propor um programa abrangente de correção dos desequilíbrios econômicos quanto pronuncia seu discurso inaugural no Senado Federal, em junho de 1983. Esse discurso, chamado de “As lições do passado e as soluções do futuro” constituiu, segundo suas memórias, “talvez a melhor peça que já escrevi, como síntese de problemas e propositura de soluções”. A despeito disso, ele não tardou a reconhecer que a sua “capacidade de análise e previsão era vastamente superior à [sua] capacidade de persuasão e mobilização” (A Lanterna na Popa, p. 1073). A importância desse discurso merece que se detalhe suas propostas.
Minha preocupação não era apenas fazer a anatomia da crise. Era propor a terapêutica das soluções. Apresentei simultaneamente dez projetos de leis. Era um programa de governo que, se adotado à época, teria contribuído para evitarmos a década perdida. Os projetos se dividiam em quatro grupos:
1. Medidas de flexibilização do mercado de trabalho e assistência ao desemprego:
- Projeto de Lei n. 133: Reforma o Fundo de Assistência ao Desemprego e dispõe sobre o auxilio ao desemprego (FAD);
- Projeto de Lei n. 134: Estabelece a livre negociação salarial e dá outras providências;
- Projeto de Lei n. 135: Cria contratos de trabalho simplificados para facilitar novas empresas;
- Projeto de Lei n. 137: Cria nas empresas privadas, como alternativa à despesa do empregador, disponibilidade remunerada e dá outras providências;
- Projeto de Lei n. 140: Favorece as aposentadorias e a renovação de quadros;
- Projeto de Lei n. 141: Agiliza as reduções da jornada de trabalho e consequentes salários, para evitar dispensas de pessoal;
2. Medidas para melhoramento da relação capital-trabalho:
- Projeto de Lei n. 138: Dispõe sobre a distribuição eventual de lucros aos empregados
3. Medias relativas à privatização de empresas e serviços:
- Projeto de Lei n. 139: Institui o programa de repartição de capital’
- Projeto de Lei n. 136: Autoriza a delegação de previdência social às empresas privadas;
4. Medida de racionalização da estrutura de preços de combustíveis:
- Projeto de Lei n. 142: Regulariza, sem aumento de incidências, o Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos.

O problema candente na época, que melancolicamente repontaria dez anos depois, no momento em que escrevo estas memórias, era o do desemprego, com a agudização da recessão, após o segundo choque do petróleo e a crise da dívida. (...) A estagflação de hoje [1994] é, portanto, atribuível exclusivamente à incompetência gerencial doméstica após a redemocratização. (p. 1076-1077)

Já seu discurso de despedida do Congresso, realizado em janeiro de 1999 na Câmara dos Deputados, representou um “melancólico pronunciamento”, uma confissão de fracasso, o de toda uma geração, que não conseguiu retirar o Brasil de uma condição de pobreza evitável para colocá-lo numa de prosperidade atingível, como ele mencionou em mais de uma ocasião. No intervalo entre um e outro se situaram batalhas épicas contra os descaminhos do desenvolvimento brasileiro, equívocos tremendos de políticas econômicas e setoriais, contra as quais ele se posicionou resolutamente em oposição, fazendo discursos de alerta e apresentando propostas alternativas, mas sendo sempre derrotado pela conjuração de néscios, ao ter de votar solitariamente, ou com apenas dois ou três colegas solidários no liberalismo, contra leis e outras medidas adotadas cujo desastre previsível ele anunciava com amargo sabor de desespero político e econômico.
Situam-se nesse universo de estupidezes legais, desde sempre ou como novidades dentro do atraso mental característico da classe política brasileira, o monopólio do petróleo, a lei de informática, o nacionalismo comercial e tecnológico, o protecionismo tarifário, o corporativismo dos mandarins do Estado contra a renda dos demais cidadãos, ou súditos do ogro famélico que ele denunciava sem cessar, e sobretudo o conjunto esquizofrênico de direitos e benesses concedidos no âmbito da Constituinte, que ele já antecipava como uma receita segura para preservar a pobreza geral, inviabilizar a formação de poupança para fins de investimento, destruir o equilíbrio das contas públicas, produzir inflação e de modo geral manter o Brasil isolado da economia mundial.  Os inimigos continuam os mesmos: nacionalismo rastaquera, protecionismo inibidor da inserção na economia global, estatismo excessivamente intervencionista na atividade do setor privado, patrimonialismo das elites, corporativismo institucional, enfim o domínio da sociedade pelo Estado.
Registre-se que em todos esses terrenos Roberto Campos tinha razão antes da adoção das políticas equivocadas, durante a sua vigência desastrosa, e depois, quando depois de provocar os previsíveis efeitos nefastos, elas foram, no todo ou em parte, mudadas, eliminadas, parcialmente alteradas por revisões legais ou constitucionais posteriores. Subsistem ainda diversas generosidades irracionais do texto constitucional que continuam a produzir desequilíbrios nas contas públicas, como ele antecipava de modo lógico e racional, sem precisar de muitas provas empíricas para comprovar o acertado de suas críticas. Campos não apenas teve razão durante todo o tempo, mas também viu antes de todos os demais as consequências do caminho errado tomado pelo Brasil, e sobretudo viu mais e melhor do que todos os seus contemporâneos.
Em meio aos problemas econômicos acumulados ao longo de décadas, sem as reformas estruturais que ele sempre preconizou, Roberto Campos tinha perfeita consciência do que era preciso fazer para “desentortar” o Brasil e colocá-lo novamente numa trajetória de crescimento sustentado com plena inserção econômica internacional. No famoso discurso “Na curva dos Oitenta”, quando se comemorou o seu aniversário no Copacabana Palace, em 17 de abril de 1997, ele já tinha dito que:
A participação do Brasil nas duas primeira ondas sincrônicas de crescimento [mundial] foi precedida de reformas. (...)
O chamado ‘milagre brasileiro’, no final dos 60 e começo dos 70, foi precedido das grandes reformas implantadas pelo governo Castello Branco, que eu chamarei de ‘reformas de primeira geração’. (...)
Ao contrário do que se passara na década dos 60, a dos 80 pode ser equiparada a uma ‘contrarreforma’, pois o país marchou na contramão da história. A redemocratização política em 1985 agravou, em vez de atenuar, o intervencionismo econômico. E foi seguida de uma ladainha de erros. (...)
A tarefa com que (...) todos nós nos defrontamos hoje é a realização das reformas de segunda geração para desfazimento da contrarreforma da Constituição de 1988. Essas reformas de segunda geração visam, além da estabilização monetária, à reestruturação e redimensionamento do Estado. Reestruturação, pelas reformas administrativa, fiscal e previdenciária. Redimensionamento, pela privatização de empresas estatais e serviços de infraestrutura.
Estamos num fim de século que é também fim de milênio. Tudo indica que se desenhe, senão para o fim deste milênio, para o começo do novo, uma quarta onda de crescimento. É importante que o Brasil dela participe. A quarta onda, além da maior globalização dos mercados, trará inovações monetárias, como a moeda única europeia, e inovações tecnológicas... Nossa preparação para a quarta onda deveria incluir algumas reformas de terceira geração que se acavalariam com as de segunda geração, formando uma corrente contínua.
Nossos dois déficits estruturais são o déficit educacional e o déficit de poupança. Nas reformas de terceira geração, devemos dar ênfase à educação básica e vocacional, visando a pelo menos dobrar a escolaridade média da força de trabalho. (...) O aumento da taxa de poupança implica corrigir-se a despoupança do governo, pelo prosseguimento das reformas estruturais e da privatização. É sobremodo urgente transformar-se a previdência social em fonte de capitalização para o desenvolvimento do setor privado, que passará a ser o motor do crescimento. (...) As outras reformas de terceira geração seriam a reforma política, para a compactação dos partidos, cuja proliferação gera uma democracia disfuncional, e também a reforma do Judiciário. (Lanterna na Popa, 4a, edição, 2001, p. 1429-1430).

Ao final da vida, constatou que o mundo – mas apenas parcialmente o Brasil – estava mais parecido com as suas ideias, uma constatação que seu colega francês Raymond Aron, colega de ideias e de filosofia econômica, não teve a felicidade de fazer, por ter falecido antes da implosão do socialismo. Mas registre-se igualmente que Roberto Campos teve a duvidosa “felicidade” de morrer antes da ascensão ao poder dos companheiros, que combinavam algumas das políticas erradas dos “estruturalistas” que ele combatia nos anos 1950, com o pior do intervencionismo estatal dos anos Geisel, sem ter a competência para administrar políticas públicas como feito durante a era militar. Se ele continuasse vivo durante toda a vigência do caos econômico criado pelas políticas esquizofrênicas do lulopetismo, até o paroxismo da Grande Destruição trazida não só pela velhíssima “Nova Matriz Econômica”, mas também pela incompetência gerencial, inépcia administrativa e inacreditável corrupção megalomaníaca dos aloprados do partido neobolchevique, Roberto Campos poderia ter morrido deprimido, ao contemplar tamanha destruição de riqueza em tão pouco tempo.
De forma similar, um ano depois de seu discurso de despedida das atividades parlamentares, Roberto Campos publicou um novo e contundente artigo – por isso mesmo não recolhido em sua última antologia, Na Virada do Milênio, que é de 1998 – cujo título é apropriadamente “Repetindo o óbvio” (9/01/2001; transcrito neste link de meu blog: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/04/roberto-campos-repetindo-o-obvio-9012000.html), no qual ele diz claramente, com todas as letras que “nosso grave subdesenvolvimento não é só econômico ou tecnológico. É político.” Ele listava então todas as graves deficiências da arquitetura institucional e da legislação político-partidária que atuavam como poderosos entraves ao desenvolvimento do país, muitas das quais são objeto dos atuais debates sobre reforma político-eleitoral. Ele terminava esse artigo num tom de lamentação que se aplica ainda hoje:
O mundo está cansado de esperar pelas “reformas” brasileiras. E de ouvir lamentações sobre a nossa pobreza. Há muito, exceto em regiões desérticas da África ou gravemente sobrepovoadas da Ásia, a pobreza deixou de ser uma fatalidade. É um acidente histórico de povos que preferem externalizar a culpa em vez de fabricar seu próprio destino.

Não há mais nenhum motivo para duvidar: Roberto Campos continua atual, em seus diagnósticos dos erros cometidos pelas lideranças políticas e econômicas, em seus alertas sobre os desastres potenciais das políticas em vigor, em suas prescrições de urgentes reformas estruturais e em suas antecipações de possíveis caminhos que nos retirariam da pobreza evitável para nos lançar na construção da riqueza possível.

Paulo Roberto de Almeida (Brasília, 21 de abril de 2017)
Organizador e autor do livro O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Appris, 2017).

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