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segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O mito do Consenso de Washington - uma das falacias academicas mais persistentes

Vagando pela internet em torno de questões de interesse direto, sempre relacionadas com políticas econômicas dos governos, acabei caindo, literalmente, sobre um link relativo a um de meus próprios artigos, ainda disponível no site de uma instituição de ensino de MG (Dom Total), com a qual colaborei tempos atrás.
Como se refere a um tema de permanente atualidade -- uma vez que professores ineptos continuam falando bobagens sobre o tema -- permito repostar esse text antigo, de 2008, mais ainda relevante.
Paulo Roberto de Almeida

Colunas Paulo Roberto de Almeida

09/10/2008

O mito do Consenso de Washington


Caberia registrar, com efeito, que as famosas regras de política econômica – na verdade, tão desconhecidas quanto vilipendiadas – jamais teriam assumido a importância que podem ter assumido no debate político-midiático do continente se o fato de elas terem sido elaboradas (não necessariamente aplicadas concretamente) e divulgadas a partir da “capital do Império” não trouxesse esse estigma de nascimento.
Continuando minha série sobre as “falácias acadêmicas”, pretendo agora tratar do segundo mito mais abusado dos últimos 20 anos, aquele que pretende que, em algum momento, a América Latina se dobrou a um conjunto de injunções vindas de Washington e aplicou esse pacote “neoliberal” com uma inconsciência ingênua que teria beirado a irresponsabilidade. Esse “pacote” de prescrições relativas à condução macroeconômica nos países latino-americanos recebeu o nome – inclusive porque ele foi auto-atribuído – de “Consenso de Washington” (doravante: CW). Os problemas reais e supostos do CW – e o mito daí decorrente – começam justamente por esse “acidente geográfico”, não puramente circunstancial, posto que reveladores de uma coincidência infeliz: o selo de origem o condenou a ser visto, desde o início, com desconfiança, quando não o situou no limite da rejeição e do repúdio ideológico por parte de toda uma categoria de “produtores acadêmicos”.

Caberia registrar, com efeito, que as famosas regras de política econômica – na verdade, tão desconhecidas quanto vilipendiadas – jamais teriam assumido a importância que podem ter assumido no debate político-midiático do continente se o fato de elas terem sido elaboradas (não necessariamente aplicadas concretamente) e divulgadas a partir da “capital do Império” não trouxesse esse estigma de nascimento, quase um pecado original, que praticamente converteu o CW numa entidade virtual, numa figura metafísica, geralmente vazia de conteúdo, mas inacreditavelmente repleta de ataques condenatórios e de slogans acusatórios que beiram o ridículo, pela superficialidade das diatribes e a inconsistência das acusações.

Leio, por exemplo, num livro do marxista paquistanês, mas exilado em Londres desde sempre, Tariq Ali, recentemente editado no Brasil, Piratas do Caribe (Rio de Janeiro: Record, 2008), o seguinte trecho: “A América Latina é um continente em que uma alternativa essencialmente social-democrata ao capitalismo neoliberal está crescendo a partir das bases e contaminando a política por todos os lados.” (p. 9)

Como alternativa, Tariq Ali se refere aos atuais “piratas” do Caribe: Hugo Chávez, da Venezuela, Daniel Ortega, da Nicarágua, Rafael Correa, do Equador, e Evo Morales, da Bolívia. Os dois últimos, aliás, seriam dificilmente enquadráveis na categoria “piratas do Caribe”, mas podemos deixar esse outro acidente geográfico de lado e ir ao essencial, uma vez que esse livro representa uma condenação explícita do CW e um libelo contra as políticas e medidas econômicas identificadas com tal “receituário neoliberal”. O mais surpreendente no livro de Tariq Ali – provavelmente decepcionante para o governo brasileiro – é a condenação formal da administração em curso no Brasil, como estando justamente identificada com o CW. O que afirma Ali, que deve descontentar absolutamente os governantes atuais do Brasil?

“Há uma ironia no fato de que tanto seus aliados em Washington e na Europa quanto seus opositores em casa concordam em ver Lula como um Tony Blair tropical. Como seu equivalente inglês [Ali escreveu quando Blair ainda era o primeiro-ministro britânico], está pronto a agradar praticamente em qualquer nível, cercado de assessores e camaradas totalmente leais ao CW e corruptos até a alma”. (p. 53) [Lula] “De fato se tornou um Tony Blair tropical, sucedendo a Tatcher protagonizada por Fernando Henrique Cardoso.” (p. 54)

Acredito que muitos no Brasil, e em outros países da América Latina, tenderiam a concordar com o que escreveu Tariq Ali, uma vez que os “manifestos de oposição” contra a política econômica do governo Lula – muitos deles circulando pouco tempo depois da inauguração do governo – receberam significativo volume de assinaturas, demonstrando grande adesão nas faculdades de ciências sociais aplicadas e de humanidades em geral. [Para uma visão geral dos argumentos mais recorrentes nesses manifestos, e uma crítica a eles, remeto a meu artigo: “Onde foram parar os manifestos econômicos de oposição?”, Espaço Acadêmico, nº 41, outubro de 2004. Acredito, também, que a rejeição demonstrada por esses acadêmicos à política econômica do governo brasileiro atual – e, de forma geral, aos supostos ditames do CW – represente, em primeiro lugar, uma ignorância parcial ou total do que sejam, efetivamente, as medidas de política econômica preconizadas no tão famoso quanto desconhecido consenso.

Em vista dessa realidade, pretendo, no presente ensaio, apresentar o CW em sua integralidade original e discutir, em seguida, alguns exemplos práticos de sua aplicação (ou falta de) em países selecionados, tratando inclusive de alguns casos considerados paradigmáticos. Estes estão muito próximos de nós, sendo representados, respectivamente, pelo Chile – como suposto exemplo de adesão ao CW – e pela Argentina, que seria um eloqüente exemplo de seu fracasso. O mesmo Tariq Ali, por acaso, afirma o seguinte sobre a Argentina: “A Argentina é um caso interessante a ser estudado. O seu colapso foi uma mensagem para o mundo como um todo, não apenas para a América Latina. Se você seguir os ditames de Washington, isso é o que pode acontecer também com você.” (p. 57). Tariq Ali está, obviamente, equivocado sobre o que ocorreu exatamente na Argentina, mas o seu “indiciamento” constitui, aliás, um típico exemplo da superficialidade, dos equívocos e da ignorância sobre o CW, de resto fartamente exibidos por outros críticos em nossas academias.

Tendo já abordado, parcialmente com base nas regras do CW, da suposta adesão do Brasil ao que seria o “neoliberalismo” desenhado em Washington – ver meu artigo “A indiscutível leveza do neoliberalismo no Brasil: uma avaliação econômica e política da era neoliberal”, Espaço Acadêmico, nº 10, março de 2002, pretendo dispensar aqui um novo tratamento do caso brasileiro, pelo menos em detalhe. Vamos ao que interessa, portanto, em relação a essas famosas regras.

As famosas regras do Consenso de Washington, em versão resumida

Trata-se de dez regras de ajuste econômico, formalizadas por ocasião de um seminário realizado em Washington, no final dos anos 1980, ao cabo de dez anos de reformas econômicas conduzidas em diversos países da América Latina. O encontro tentava, justamente, fazer o balanço do que, exatamente, tinha sido aprendido na região (e fora dela) como experiência prática da penosa fase de crises recorrentes dos anos (e décadas) anteriores, ademais dos problemas estruturais e características sistêmicas desde sempre: inflação renitente, emissionismo irresponsável, choques do petróleo, crise da dívida, moratória, desequilíbrios cambiais e de balanço de pagamentos, pobreza generalizada, desigualdades extremas etc.

O que ocorreu, portanto, não foi uma decisão dos órgãos oficiais de Washington, vinculados de alguma forma à elaboração de “prescrições” de política econômica – que seriam as duas “sisters in the woods”, FMI e BIRD, e o Departamento do Tesouro dos EUA –, mas sim um “resumo-síntese” de um consenso puramente acadêmico, que não pretendia ser apresentado como “receituário” obrigatório de implementação de políticas econômicas “neoliberais. Tratava-se apenas como um trabalho de reflexão e uma colaboração intelectual ao esforço de ajuste e de reformas.

O CW deve, portanto, ser entendido exatamente pelo que ele foi, ou é, e não pelo que seus supostos inimigos ideológicos pretendem que ele seja: uma contribuição ao esclarecimento de políticas que “deram certo”, não um “pacote” imposto desde o alto. Este é o quadro situacional e o contexto intelectual pelos quais devem ser avaliados o CW – e seus desenvolvimentos posteriores – e como tais considerados em qualquer trabalho de avaliação que se pretenda fazer em torno dele, como o que agora se empreende. Vamos, agora, à sua substância.

Resumidamente, ele toca nos seguintes pontos: disciplina fiscal, reorientação das despesas públicas, reforma tributária, liberalização financeira e comercial, taxa cambial, abertura aos investimentos estrangeiros, privatização, desregulação e garantia de contratos e direitos de propriedade. Caberia recordar, desde já, que as regras do CW não foram estabelecidas por economistas liberais para orientar governos desejosos de uma política econômica “ortodoxa”. Trata-se de um conjunto de prescrições de política econômica, formalizadas a posteriori – como acontece geralmente com os modelos econômicos, que nada mais são do que a formalização genérica de uma experiência passada, geralmente bem-sucedida, pois raramente se constroem modelos a partir de fracassos –, para tentar sintetizar o que estava acontecendo com países como Chile e México, que desde o início dos anos 1980 tentavam enquadrar-se no chamado mainstream economics, depois de décadas de políticas erráticas e experiências substitutivas.

O autor das propostas foi o economista John Williamson, que, num artigo intitulado “O que Washington entende por reforma da política [econômica]”,[1] fazia o balanço de quase dez anos de ajuste na América Latina, depois da crise da dívida externa, em 1982. Os países mais avançados nesse processo de ajuste eram o Chile e o México. Ao contrário do que muitos pensam, portanto, foram as políticas já adotadas de forma independente por países da região que serviram de “modelo” para que o economista, a partir das medidas concretas de política econômica de seus governos, apresentasse seu esquema de “receitas bem-sucedidas de ajuste”. Essas receitas cobriam dez áreas de reformas econômicas e políticas, nomeadamente as seguintes:

1) disciplina fiscal;

2) prioridades nas despesas públicas;

3) reforma tributária;

4) taxa de juros de mercado;

5) taxa de câmbio competitiva;

6) política comercial de integração aos fluxos mundiais;

7) abertura ao investimento direto estrangeiro;

8) privatização de estatais ineficientes;

9) desregulação de setores controlados ou cartelizados;

10) direitos de propriedade.

Em sua versão original, as regras enunciadas por Williamson pouco se ocupavam de equilíbrio no balanço de pagamentos, da liberalização financeira, de desregulação bancária, não implicavam a diminuição do papel do Estado (como acusam, sem razão, muitos críticos apressados) e não necessariamente condicionavam o sucesso dessas políticas à manutenção de uma baixa taxa de inflação. John Williamson afirmava expressamente que suas regras eram mais “instrumentos de política”, do que um conjunto de objetivos ou resultados que devessem ser elevados à categoria de dogma. Elas estavam longe, portanto, de representar um remédio para economias doentes, pois que tinham sido concebidas como um conjunto de princípios para, justamente, manter as economias latino-americanas em estado “saudável”, sem a necessidade de correções de rumo brutais, com intervenção do FMI e pacotes de ajuda “impostos de fora”.

Em relação à acusação de que essas regras condenavam as economias latino-americanas à recessão, cabe registrar que o CW nunca pretendeu, nem poderia, ser um “receituário de desenvolvimento”; ele estava unicamente destinado a fornecer “instrumentos de política econômica” para facilitar o processo de reformas e de ajuste num momento de crise, como era o caso da dívida externa. Esses instrumentos deveriam, assim, fornecer as condições mínimas da estabilidade, após a qual políticas especificamente desenhadas para estimular ou facilitar o desenvolvimento econômico deveriam ser concebidas e implementadas pelos governos da região.

As regras do Consenso de Washington, explicadas em detalhe

Vejamos agora cada um dos pontos de maneira mais argumentativa.

1. Disciplina fiscal


Todos aqueles que conhecem a história econômica da América Latina têm presente o quadro de descalabro financeiro cercando as finanças públicas da maior parte dos países. Na verdade, nem precisaria conhecer essa história trágica para saber que desequilíbrios orçamentários levam à acumulação de dívida pública, sustentada em emissões contínuas de títulos governamentais, daí à elevação dos juros e a um ciclo infernal de novas emissões apenas para cobrir o serviço (juros) da dívida. Basta considerar apenas o orçamento doméstico, ou suas próprias receitas e despesas, para saber que déficits contínuos na conta corrente produzem uma conta salgada que corre o risco de se tornar inadministrável. Como, a rigor, governos não vão à falência, e sempre possuem a capacidade de avançar sobre as rendas dos cidadãos e das empresas, o processo pode levar a conseqüências extremas, deixando uma “herança maldita” para o governo seguinte ou as futuras gerações.

Não se trata, propriamente, de um problema confrontando escolas econômicas ou orientações políticas distintas, ainda que o próprio Williamson se permita cutucar alguns crentes do “estímulo fiscal”. Diz ele que “os crentes de esquerda no estímulo keynesiano, por meio de grandes déficits orçamentários, são quase uma espécie em extinção”. Trata-se, basicamente, da sustentabilidade das contas públicas, e aqui o ideal seria não permitir que o déficit orçamentário não excedesse uma dada relação entre a dívida pública e o PIB. Pelos critérios de Maastricht, como se sabe, o déficit orçamentário permitido é de, no máximo, 3% do PIB, sendo que a dívida pública não deveria exceder 60% do PIB. Talvez sejam relações razoáveis, mas tudo depende de como está sendo construído esse déficit – se for para investimento é obviamente melhor do que para novas despesas correntes continuadas – e de qual é o perfil da dívida em função do nível dos juros e do calendário de amortização.

Uma trajetória que contemple, por exemplo, aumentos generosos de salários para o funcionalismo público – em total desproporção do que se paga no setor privado – e criação de novos cargos públicos em função de critérios totalmente políticos, sem correspondência quanto ao nível e qualidade dos serviços públicos, pode constituir uma receita segura para uma bomba-relógio de natureza fiscal, da mesma forma como a concessão de aposentadorias e pensões em clara dissociação com os recolhimentos havidos na fase ativa dos beneficiários. O Brasil, justamente, parece enfrentar alguns desses problemas na presente fase, o que certamente vai ter repercussões mais graves alguns anos mais à frente. Tampouco adianta, como também se pratica por aqui, cobrir essas novas despesas buscando novas fontes de arrecadação ou aprofundando a “extração” fiscal sobre os contribuintes e as empresas: o único resultado desse tipo de medida é reduzir o espaço da poupança privada – que deveria ser usada para o investimento empresarial – o que obviamente terá efeitos negativos sobre a taxa de criação de empregos, de crescimento da renda e outros impactos que os economistas chamam de convite à irresponsabilidade política: inflação e fuga de capitais.

2. Prioridades nas despesas públicas

Deixando de lado despesas militares – que são consideradas um domínio da segurança nacional, fora, portanto, do alcance de simples tecnocratas – todas as outras despesas são passíveis de racionalização e, eventualmente, de redução, pela via dos ganhos de eficiência. Existem três fontes de gastos públicos que parecem inevitáveis em toda e qualquer circunstância: gastos previdenciários (supondo-se um regime de repartição, e não de capitalização); investimentos públicos, sobretudo em infra-estrutura; saúde e educação, considerados corretores de desequilíbrios existentes no mercado (devendo, portanto, beneficiar os mais pobres).

É óbvio, mesmo para o mais “direitista” dos economistas, que prioridade nas despesas públicas não quer dizer redução de gastos sociais, e sim eliminação ou pelo menos diminuição de outras despesas evitáveis, como os subsídios públicos. Existem muitos subsídios, diretos e indiretos, que poderiam ser cortados ou reduzidos, e nem todo mundo têm consciência de que eles existem. Quando o governo, por exemplo, escolhe não aumentar o preço da gasolina em compasso com a cotação do petróleo nos mercados internacionais, ele pode estar subsidiando o transporte da classe média, em detrimento do número muito maior que usa transporte público. Quando ele concede empréstimos governamentais a industrias “estratégicos”, aplicando uma taxa de juros que é a metade daquela que ele mesmo usa para remunerar seus títulos da dívida pública, ele está subsidiando uma categoria privilegiada da população.

Mas mesmo os gastos com saúde e educação podem estar profundamente distorcidos por um perfil exageradamente concentrado destes últimos na educação superior, por exemplo, que no Brasil contempla, como sabemos, muito mais recursos do que os alocados aos dois níveis anteriores. Da mesma forma, quando o governo permite que operações de mudança de sexo sejam cobertas pelo sistema geral de saúde pública ele pode estar, ipso facto, retirando recursos que poderiam ir para cuidados preventivos ou saneamento básico para populações de baixa renda.

3. Reforma tributária

Não existe, a rigor, nada de liberal no sistema tributário, um expediente a que recorrem todos os governos conhecidos desde a noite dos tempos. Trata-se de uma extração forçada, para fins supostamente públicos, mas cuja incidência repercute de modo diferenciado segundo a base escolhida e a forma de “captura” da renda pessoal.

Existem, basicamente, duas grandes formas de coleta de recursos pelo Estado: de maneira direta sobre a renda dos cidadãos individualizados (com uma aplicação progressiva das alíquotas definidas), e de maneira indireta sobre o consumo de todos os cidadãos (o que recomendaria taxar menos produtos básicos, que serão os mais amplamente, e talvez exclusivamente, adquiridos pelos mais pobres, e de forma mais “agressiva” produtos supérfluos ou de consumo conspícuo). Outras taxas são cobradas sobre serviços específicos, dependendo de quem os use (estradas, aeroportos, etc.).

Com relação ao imposto de renda, o consenso parece ser de que a base deveria ser ampla e as alíquotas marginais reduzidas (para evitar elisão e evasão fiscal, fuga de capitais, etc.). Por outro lado, impostos indiretos excessivos acabam penalizando os mais pobres de maneira desproporcional, que podem pagar mais impostos (em relação à renda pessoal) do que os ricos. Esse fenômeno é muito conhecido em vários países latino-americanos, mas poucos governos têm a coragem de enfrentá-lo, uma vez que os impostos sobre os consumos são mais fáceis de cobrar e passam quase despercebidos (quando sua incidência não está expressa no preço dos produtos). Não é preciso dizer nada sobre o imposto de transações financeiras, que é cumulativo ao longo da cadeia produtiva e, portanto, altamente irracional do ponto de vista social e da capacidade competitiva de um país.

4. Taxa de juros de mercado

Isto significa, simplesmente, que ela não dever ser manipulada pelos governos e sim determinada pelo equilíbrio da oferta e da procura por dinheiro na economia. Se o governo precisa fixar alguma taxa, que ela seja positiva (ou seja, superior à inflação, caso contrário provocaria fuga de capitais). Ela também deve ser moderada, de forma a estimular o investimento e, se possível, neutra entre os desejos dos poupadores por uma taxa estimulante e os dos investidores por uma taxa adequada ao seu retorno. Uma taxa muito “positiva” pode ter um efeito devastador sobre a dívida pública.

Um mercado de créditos extremamente concentrado ou cartelizado tende a produzir altas taxas de juros, razão pela qual um setor financeiro aberto à competição representa um bom estímulo à manutenção de taxas de mercado moderadas. Se o governo, por outro lado, pretende determinar de forma muito intrusiva o que os banqueiros podem ou devem fazer com seus depósitos – ou seja, estabelece muitas regras para o crédito direcionado a setores, ademais do alto volume de depósito compulsório – ele pode contribuir para juros anormalmente elevados.

5. Taxa de câmbio competitiva

Da mesma forma como os juros, o câmbio também deve ser determinado pelo mercado, o que parece coincidir com a escolha da vasta maioria dos países que adota o regime de flutuação de suas moedas. John Williamson diz preferir uma “taxa de câmbio em equilíbrio fundamental”, o que, no caso de um país em desenvolvimento, significa que ela deve ser “suficientemente competitiva para promover uma taxa de crescimento das exportações que faça a economia crescer à taxa máxima permitida pelo seu potencial de oferta, ao mesmo tempo em que mantém o déficit de transações correntes em uma proporção tal que possa ser financiado em bases sustentáveis”. Ele acrescenta que a taxa de câmbio não deveria ser mais competitiva do que essa relação; do contrário, ela poderia produzir pressões inflacionárias desnecessárias, assim como limitar os recursos disponíveis para o investimento doméstico.

Essa taxa de câmbio competitiva é o elemento essencial de uma política econômica orientada para fora, na qual as restrições de balanço de pagamentos são superadas essencialmente pelo crescimento das exportações, não por um programa de substituição de importações. Uma orientação para fora e exportações crescentes – sobretudo em setores não tradicionais – constitui uma fórmula de sucesso para uma economia dinâmica.

6. Política comercial de integração aos fluxos mundiais 

A visão mercantilista da maior parte dos políticos – em especial na América Latina – faz com que eles vejam com bons olhos as exportações, mas condenem como se fosse um pecado as importações. Na verdade, abertura às importações é relevante para ajustar o setor produtivo a um setor exportador que possa ser competitivo internacionalmente, do contrário o excesso de proteção penalizará a oferta doméstica e tornará o país mais pobre. Licenciamento de importações constitui, aliás, uma fonte inevitável de corrupção, cabendo tão somente um sistema tarifário transparente.

7. Abertura ao investimento direto estrangeiro

Como já indicado, a liberalização dos fluxos financeiros não é considerada uma prioridade. Em contrapartida, o fechamento ao investimento direto estrangeiro pode ser visto como propriamente contraproducente. O IED traz não apenas capital, mas conhecimento e é um grande indutor de ganhos de produtividade. Ele pode ser conseguido, também, por conversão da dívida; mas tende a ser desestimulado em virtude de reações nacionalistas que podem ser economicamente prejudiciais. Em geral, empresas estrangeiras contribuem muito mais para o desempenho exportador e, portanto, o IED é também um gerador de divisas.

8. Privatização de estatais ineficientes 
Como regra geral, empresas privadas são geridas de forma mais eficiente do que suas equivalente estatais, inclusive por uma questão de estímulos ligados ao lucro e pela falta de uma fonte fácil de recursos baratos. A privatização também traz ganhos fiscais diretos e indiretos, uma vez que o Estado se desobriga de fazer investimentos para os quais o seu Tesouro pode estar depauperado. Com exceção de muito poucos setores públicos (como o fornecimento de água, por exemplo), serviços “coletivos” podem ser fornecidos de maneira eficiente por empresas privadas, sob um regime de concessão monitorado por um sistema regulatório preferencialmente aberto a regras de competição em mercados relativamente abertos.

Não é necessário, tampouco, lembrar o assalto a empresas públicas conduzido por políticos ávidos por práticas clientelísticas, o que por sua vez redunda em desvios financeiros, quando não em corrupção aberta. Empresas públicas tendem a distorcer as condições de concorrência e as regras do jogo num setor determinado, em função do acesso que elas podem conseguir aos mecanismos decisórios do Executivo. Por fim, nas condições atuais de capacitação técnica e educacional dos recursos humanos e de amplo acesso a capitais e tecnologia, a rationale que presidiu ao estabelecimento de tantas estatais na América Latina e alhures – qual seja: a falta de capacidade técnica e de capitais no setor privado – não mais se justifica em bases racionais.

9. Desregulação de setores controlados ou cartelizados

A América Latina é uma das regiões mais reguladas e burocratizadas no plano internacional, com tantos controles estatais que o “capitalismo de compadrio” e os estímulos à corrupção aparecem quase como inevitáveis. Monopólios e cartéis, ou seja, falta de competição, são uma das fontes mais comuns de preços altos, má qualidade nos produtos e serviços, corrupção e comportamentos rentistas inaceitáveis numa economia moderna. A regulação não se exerce apenas no fornecimento de bens ou serviços, mas também no cipoal de regras que determinam a entrada e saída de capitais, a remessa de lucros, os fluxos de tecnologia sob licenciamento, o ingresso de investimentos diretos, a existência de barreiras à entrada em novas atividades, bem como taxas e contribuições de todo tipo.

Para exercer o devido controle – que ele mesmo se impôs – sobre todos esses setores, o Estado precisa contar com um exército de funcionários, nem sempre pagos adequadamente e, portanto, abertos, em princípio, a possibilidades de corrupção ou a condutas pouco transparentes. A desregulação não significa descontrole ou ausência de regras; ao contrário: ela costuma andar junto com agências reguladoras, criadas em função de uma visão de longo prazo das necessidades do país, não na perspectiva de um governo temporário, e mantidas de forma independente à equipe que ocupa por um tempo limitado os mecanismos do Estado.

10. Direitos de propriedade

O CW não pretende tanto se referir aqui à propriedade intelectual – embora esta também seja insuficientemente protegida na América Latina – quanto chamar a atenção para o respeito aos contratos e para a estabilidade de regras. A instabilidade jurídica aumenta os custos de transação e é responsável por uma perda concomitante do PIB da região. Juízes que pretendem fazer justiça social terminam por “criar” leis, em lugar de apenas interpretar e aplicar a legislação em vigor.

O que aconteceu, antes e independentemente do Consenso de Washington?
A “interpretação” deformada feita por certos setores acadêmicos na América Latina a propósito de processos de ajuste e reforma empreendidos por alguns países pretende que o CW tenha sido responsável por todos os problemas acumulados na região ou pelos desafios na agenda dos atuais governantes. Eles atribuem a “onda neoliberal” que percorreu alguns países desde o início dos anos 1980 a uma espécie de diretiva emitida em Washington e implementada de forma canônica por governos submissos ou suficientemente enfraquecidos economicamente para não resistir às pressões combinadas dos EUA e das entidades do capitalismo global.

Como vimos anteriormente, o CW foi, na verdade, estabelecido a posteriori, depois que alguns países decidiram se lançar na penosa via dos ajustes e da reforma, a começar pelo México – a primeira vítima da crise da dívida de 1982 – e depois pelo Chile – o que não tem nada a ver com a ditadura de Pinochet, orientada por uma visão anacrônica, tão dirigista e estatizante quanto certos modelos “desenvolvimentistas”, estimulados antes e depois desses experimentos inovadores. Como todo modelo, o CW é em grande medida artificial, consistindo numa tentativa de síntese das medidas que supostamente teriam resultado em desempenho econômico satisfatório nas fases seguintes. Trata-se, obviamente, de uma simplificação de uma complexa realidade e de um conjunto de variáveis bastante sensíveis a um “mix” determinado de políticas, que jamais pode se desenvolver da mesma forma em dois países diferentes.

Interpretações de processos complexos são naturalmente sujeitas a caução, na medida em que não se pode isolar experimentos reais para fins de simulação ou teste controlado. Espíritos ingênuos tendem a confundir o CW com essa coisa diáfana chamada neoliberalismo e este, a rigor, não tem quase nada a ver com o CW, pois eles pertencem a dois universos diferentes. Em todo caso, em qualquer discussão sobre o “neoliberalismo” latino-americano sempre são trazidos em evidência os casos da Argentina, como exemplo de “fracasso”, o do Chile, como modelo supostamente bem sucedido – embora nem sempre com medidas em sintonia com a “ortodoxia” presumida do CW – e, eventualmente, o do México, o país que, alegadamente, teria iniciado o ciclo de conversões “neoliberais” desde o início dos anos 1980.

O que parece evidente, numa análise prima facie, é que há uma concentração quase obsessiva sobre o caso argentino para “demonstrar” o fracasso das receitas “neoliberais” para promover crescimento e igualdade na América Latina. Não se pode analisar em profundidade o desenvolvimento do ciclo completo do ajuste e reformas nessa vasta região; mas se pode, ao menos, examinar o caso argentino, para verificar se ele se conforma, ou não, ao suposto modelo prêt-à-porter, que seria disseminado pelos “profetas” de Washington como via milagrosa para o crescimento sustentado.

Vejamos, portanto, como se pode avaliar a experiência argentina, em função dos mesmos critérios que orientaram a primeira versão do CW (existem, pelo menos, duas outras, mais centradas sobre as políticas sociais ou sobre o papel das instituições na implementação das políticas recomendadas). Como julgar a Argentina, por meio do benchmark das regras estabelecidas no CW?

O “neoliberalismo” argentino:

1) disciplina fiscal: a Argentina esteve longe de cumprir este requisito básico do CW, de que são prova os contínuos déficits provinciais – problema associado ao federalismo também presente em outros países –, bem como o crescimento irresponsável da dívida pública, até o ponto inevitável da ruptura e do calote;

2) prioridades nas despesas públicas: o governo do presidente Menem passou toda a primeira metade dos anos 1990 empenhado em modificar a Constituição para sustentar seu projeto de reeleição, embora não tenha obtido um mandato com a mesma extensão que pretendia;

3) reforma tributária: ela foi feita de forma parcial, tanto que a capacidade “extratora” do Estado argentino sempre foi muito baixa, comparativamente com a carga fiscal do Brasil, cuja burocracia da Receita sempre foi muito eficiente para fechar vários “buracos” na teia tributária;

4) taxa de juros de mercado: de fato, os juros foram liberalizados, mas os desequilíbrios crescentes acumulados do lado fiscal e a falta de competitividade dos produtos argentinos, por força de uma inflação ainda importante, levaram o Estado a aumentar progressivamente o nível dos juros, em descompasso com as necessidades de investimento no país;

5) taxa de câmbio competitiva: trata-se, provavelmente, da mais eloqüente negação de uma regra tida como essencial pelo autor do CW. A Argentina, ou melhor, o ministro Domingo Cavallo, fixou formalmente o valor do peso em dólar (1 por 1), no plano que teve início em 1991, preservando a mesma camisa de força durante dez anos seguidos. O regime de conversibilidade, assegurado por um sistema de “currency board”, constituiu, provavelmente, a mais significativa ruptura da Argentina com um elemento central do CW;

6) política comercial de integração aos fluxos mundiais: de fato, ocorreu uma significativa liberalização comercial ao início do processo de estabilização; mas os desequilíbrios cambiais e inflacionários acumulados ao longo do tempo levaram a forte perda de competitividade externa, o que determinou nova onda de protecionismo tarifário, de expedientes para-tarifários (como uma “taxa de estatística”, por exemplo), além de outros mecanismos defensivos (antidumping e salvaguardas extensivas);

7) abertura ao investimento direto estrangeiro: de fato ocorreu, numa primeira fase, mas inviabilizada depois pela alta valorização do peso e a perda de competitividade adquirida em função da amarra cambial;

8) privatização de estatais ineficientes: o processo ocorreu, nem sempre de forma transparente, ou aberta à concorrência pública, e os recursos auferidos não serviram de abatimento da dívida pública, que continuou numa trajetória de crescimento;

9) desregulação de setores controlados ou cartelizados: ela foi conduzida sem preparação ou planejamento adequados, processo que resultou em novos monopólios privados, não controlados por nenhuma agência reguladora;

10) direitos de propriedade: o “capitalismo de compadrio”, a transformação dos sindicatos em negócios rendosos para as máfias nele encasteladas e diversas outras práticas arbitrárias dos agentes públicos continuaram a alimentar um ambiente de negócios pouco propício a um crescimento sustentável no país platino.

Muito antes desses processos pouco condizentes com a estrita racionalidade econômica ocorrerem na Argentina, o Chile já tinha enveredado pelo caminho dos ajustes e da reforma, itinerário por certo facilitado pela ausência de “perturbações” democráticas, mas nem por isso isento de percalços próprios da ideologia militar, tão centralizadora, estatizante e dirigista quanto a ideologia econômica de outros regimes militares na região. Na verdade, o processo de “disciplinamento” econômico dos militares chilenos se deu apenas após uma grave crise bancária, a persistência de focos inflacionários importantes, alto desemprego e desequilíbrios no abastecimento alimentar, o que determinou o apelo a economistas identificados com a “escola de Chicago” e os princípios liberais da escola “austríaca” de Von Mises e Hayek.

O importante a registrar é que muito tempo antes de qualquer “consenso” se formar em Washington, ou de técnicos do FMI ou do Tesouro americano virem a Santiago – o que, aliás, nunca ocorreu, fora das visitas de trabalho do FMI para fins de artigo IV – formular recomendações ou prescrições de política econômica, o Chile já tinha decido empreender vasta reforma de seu sistema econômico, num sentido amplamente liberalizante. Em outros termos, foi o Chile quem deu a “receita” para a construção de um “modelo” de ajuste e reformas, não o contrário. Foram essenciais em seu processo de ajuste e reformas, a manutenção da disciplina fiscal, a liberalização comercial e financeira – o que não significou, em absoluto, liberdade completa para os capitais, mas, sim, mecanismos de esterilização dos fluxos puramente financeiros, como a famosa “quarentena” –, políticas de atração de investimentos diretos e uma cuidadosa gestão monetária que trouxe a inflação chilena a níveis “europeus”. Em suma, o Chile fez o seu “dever de casa”, mas isso não significou converter-se de forma acrítica ao “neoliberalismo”, seja lá o que isso queira dizer. O Chile de fato desregulou, privatizou, liberalizou, mas tudo isso de forma planejada, consciente e administrada pelo Estado.

A julgar pelo desempenho respectivo de cada um dos países, não é preciso lembrar quem acumulou crescimento ao longo de mais de dez anos – a ponto de ter sido chamado de “tigre” ou “puma” latino-americano – e quem soçobrou na crise e na moratória, derrubando presidentes como quem brinca com um castelo de cartas. Longe de representar uma “derrota” do neoliberalismo, como pretendem alguns, de forma totalmente equivocada, o caso argentino é um exemplo cabal de reformas incompletas, mal conduzidas ou de erros primários de gestão macroeconômica, a começar pelo câmbio fixo e pela indisciplina fiscal, em total desacordo com as prescrições – se houvesse – do CW. De outra parte, longe de representar qualquer tipo de “vitória” para o mesmo CW, o caso do Chile é um modelo de pragmatismo e de cautela da implementação de medidas – elas sim – ortodoxas de política econômica, que asseguraram seu crescimento durante praticamente toda a década de 1990 e a estabilidade do poder de compra de sua moeda.

Concluindo de forma inconclusiva: não existem soluções-milagre em economia

Como examinado ao longo deste breve ensaio analítico do famoso CW e sua não-aplicação, de fato, na maior parte dos paises latino-americanos, o panorama regional é suficientemente diversificado para descartar qualquer explicação simplista do tipo pretendido por certos “analistas acadêmicos” para o sucesso de alguns e o fracasso de outros. A Argentina não fracassou devido ao CW, assim como o Chile não foi bem sucedido devido a uma aplicação submissa de suas recomendações, ainda que muitas das “receitas” empregadas neste país andino guardem uma grande interface filosófica e prática com aquelas regras (mais de puro bom senso, ou de julgamento sereno das experiências econômicas bem sucedidas, do que de aplicação cega de alguma “pomada maravilha” macroeconômica).

Muito da “agitação intelectual” em torno do suposto neoliberalismo desses países não encontra, assim, suporte na realidade. Dessa forma, o mito do CW pode ser considerado uma criação da esquerda latino-americana, que precisava dispor de um novo inimigo ideológico, na figura do neoliberalismo, depois que outros velhos mitos – como, por exemplo, aquele preferido pelo mais “perfeito idiota latino-americano”, o escritor uruguaio Eduardo Galeano: o do subdesenvolvimento induzido pela dominação imperialista – entraram em desuso, por uso e abuso na fase anterior. O que sobrou, finalmente, de toda essa agitação em torno de um conceito que não merecia essa publicidade mal concebida e mal dirigida? Praticamente nada, a não ser: slogans de um lado, e silêncio do outro.

Isso não impediu, obviamente, o manancial de bobagens que continuam a ser disseminadas em torno de um suposto neoliberalismo dominador, que teria ocupado todos os desvãos das políticas econômicas dos países latino-americanos ao longo de duas décadas. Quando se vai examinar a realidade, a única constatação possível de ser extraída é que os supostos inimigos ideológicos do neoliberalismo e do CW não sabem do que estão falando, nem apresentam dados fiáveis para confrontá-los à realidade. Nessas condições, qualquer diálogo racional é impossível. Mas diálogo é provavelmente a última coisa que desejam os agitadores de slogans...

Paulo Roberto de Almeida é doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas (1984). Diplomata de carreira desde 1977, exerceu diversos cargos na Secretaria de Estado das Relações Exteriores e em embaixadas e delegações do Brasil no exterior. Trabalhou entre 2003 e 2007 como Assessor Especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Autor de vários trabalhos sobre relações internacionais e política externa do Brasil. 

domingo, 30 de dezembro de 2012

Ha-Joon Chang: o mau samaritano do nao desenvolvimento - Rodrigo Constantino e Paulo Roberto de Almeida

Recentemente, um aluno universitário que deve ter sido a vítima inocente de lições (lições??!!) mal dadas por algum professor universitário certamente convencido da perversidade do neoliberalismo e das benesses e bondades do dirigismo estatal e do protecionismo comercial, escreveu-me para criticar-me por algo que não fiz, mas que teria feito com prazer se colocado na mesma situação: uma resenha sobre um livro do economista coreano de Cambridge Ha-Joon Chang, um convertido tardio a outras más lições: as do cepalianismo prebischiano requentado dos anos 1950 e as do antineoliberalismo vulgar que começou a soterrar corações e mentes de milhares de universitários a partir dos anos 1990, quando se acreditava nessas más academias que o neoliberalismo e um suspeito complô dos autores do Consenso de Washington eram os responsáveis pelos fracassos, frustrações e pelo não desenvolvimento de nações em desenvolvimento, entre elas e principalmente as da América Latina, que nessa versão simplificadora e mistificadora teria sido impedida de se desenvolver pelos mesmos vorazes capitalistas centrais que a exploram há mais ou menos 500 anos.
Como ele me criticou pelo que não fiz, vou fazer o que ele não fez, e que pode ter escapado aos leitores dos muitos blogs que mantenho. Um deles é dedicado apenas a resenha de livros, e lá anda um pouco esquecido.
Portanto, vou postar aqui a resenha de Rodrigo Constantino de um dos livros desse mau economista que é Ha-Joon Chang, não sem antes esclarecer sobre um artigo meu, que desmantela suas pretendidas "lições" de história econômica

Paulo Roberto de Almeida:
Falácias acadêmicas, 5: o mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países pobres
Brasília, 21 janeiro 2009, 11 p. Continuação da série, tratando desta vez das teses do economista Ha-Joon Chang. 
Espaço Acadêmico (n. 93, fevereiro 2009; arquivo em pdf); 

Aqui vai a resenha de Rodrigo Constantino, já postada em outro blog meu: 

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O Mito do Protecionismo Esclarecido
Rodrigo Constantino

Uma coletânea de falácias econômicas. Assim pode ser resumido “Maus Samaritanos”, o novo livro do economista de Cambridge Ha-Joon Chang, que é também o autor de “Chutando a Escada”. Ele tomou emprestada essa expressão de Friedrich List, o economista do século XIX que defendia o nacionalismo mercantilista. O novo livro de Chang ataca o livre comércio e defende o protecionismo estatal, através tanto de subsidies como de tarifas alfandegárias. O prefácio da edição brasileira foi escrito por Luiz Carlos Bresser-Pereira, que foi ministro das Finanças durante o governo Sarney e adotou o congelamento de preços como meio para combater a inflação galopante. Bresser denomina a estratégia pregada por Chang de “novo desenvolvimentismo”. Na verdade, trata-se do velho mercantilismo de List.
A principal tese do livro é que os países atualmente desenvolvidos chegaram neste patamar de desenvolvimento graças ao protecionismo estatal, e não ao livre comércio. Uma vez no topo, eles pretendem “chutar a escada” e impedir o acesso aos demais países pobres. Contam com um grande e poderoso aparato de economistas neoliberais – os “maus samaritanos” – para defender essa estratégia. Assim, a privatização, a redução da burocracia, um banco central menos politizado, a meta de inflação, a abertura comercial e o equilíbrio orçamentário do governo seriam medidas prejudiciais aos países pobres, defendidas pelos neoliberais por auto-interesse ou ignorância. A “Trindade Profana”, representada pelo FMI, OMC e Banco Mundial, seria o principal mecanismo para derrubar essa escada de acesso ao desenvolvimento.
O desenvolvimentismo de Chang é muito similar ao nacionalismo de List, economista que representava o oposto daquilo que Adam Smith defendia. Contra a “mão invisível” do mercado, seria necessária a “mão benevolente” do governo. O protecionismo de Chang é o mercantilismo com um véu novo. Retirando o eufemismo, resta o velho dirigismo estatal, a crença de que o Estado deve assumir a locomotiva do desenvolvimento econômico. Friedrich List já dizia que somente onde o interesse dos indivíduos estivesse subordinado ao da nação, haveria desenvolvimento decente. A nação era vista como um ente concreto, com desejos e interesses, que justificavam inclusive o sacrifício dos indivíduos. Quem saberia dizer quais os verdadeiros interesses da nação? Com certeza, os “sábios”, entre eles List. A glória futura da nação valeria mais que tudo. Nesse aspecto ao menos, Hitler não foi muito criativo.
O nacionalismo de Chang parece um marxismo exportado para nações. Os países ricos exploram os países pobres. Portanto, as regras do jogo não podem ser iguais. Seria injusto, segundo o autor, tratar da mesma forma países desiguais. Os países ricos deveriam aceitar o protecionismo dos mais pobres sem reclamar, pois são mais ricos. Justiça, por esta ótica, é garantir um tratamento diferencial com base na renda. Um dos problemas disso é que o protecionismo não beneficia os países pobres, mas sim alguns grupos ricos desses países, à custa do restante do povo. É análogo ao próprio marxismo dentro de cada nação: atacar os mais ricos não favorece os mais pobres, e sim o contrário. Outro problema desse raciocínio é que o protecionismo seria, então, desejável dentro da nação também. Cada estado deveria proteger suas indústrias para garantir seu desenvolvimento. A lógica poderia continuar: cada bairro deveria fazer o mesmo, para estimular seu desenvolvimento. Afinal, o que há de tão especial no conceito de nação? No extremo, acaba-se na conclusão de que a auto-subsistência do indivíduo pode ser desejável.
Chang parece confundir correlação com causalidade. Ele cita que fases protecionistas e com intervenção estatal forte apresentaram bons resultados, enquanto reformas neoliberais geraram crises. A falácia desse raciocínio é que o crescimento desenvolvimentista apenas hipotecou o futuro. O autor chega a defender abertamente essa política, quando afirma que “faz sentido para um país em desenvolvimento ‘emprestar das gerações futuras’, assumindo déficits orçamentários para investir por seus próprios meios no presente e, portanto, acelerar o crescimento econômico”. Após uma era de crescimento artificialmente criado pelos gastos estatais sem lastro, um duro ajuste se faz necessário. Mas Chang prefere condenar o termômetro pela febre. Ele ataca os sintomas expostos pelo livre mercado, em vez das causas plantadas pelo desenvolvimentismo. Não obstante essa falácia estatística, resta questionar qual país não está em desenvolvimento. O autor trata os países mais desenvolvidos como países que chegaram ao patamar máximo de desenvolvimento, e não mais tivessem que se desenvolver.
O autor defende até mesmo os programas de substituição das importações, que nos remete ao caso brasileiro da “Lei da Informática”, que condenou o país ao atraso tecnológico. Como pode ser bom para o desenvolvimento de uma economia comprar verdadeiras carroças pelo preço de uma Ferrari? Chang defende ainda que uma inflação de até 40% ao ano pode ser desejável. Ele afirma: “A inflação baixa e a prudência do governo podem ser prejudiciais ao desenvolvimento econômico”. Dificilmente um brasileiro poderá concordar com isso, se tem alguma memória.
O caso da Coréia, terra natal de Chang, é freqüentemente citado no livro. Fica a impressão de que o protecionismo comercial seletivo e a clarividência do governo foram responsáveis pelo sucesso relativo do país, e não a maior abertura comercial e o investimento na educação, respeitando-se a meritocracia. As falhas do modelo coreano acabam transformadas pelo autor nas causas do sucesso. Nenhuma vez é citada no livro a palavra “chaebols”, por exemplo. O autor fala da ajuda estatal à Samsung, mas esquece que os grandes conglomerados ajudados pelo governo estiveram no epicentro da grande crise de 1997. O modelo da Coréia deu certo a despeito do protecionismo, não por causa dele.
Outra falácia comum praticada pelo autor chama-se non sequitur: de premissas verdadeiras, ele conclui coisas que não seguem delas. Se há protecionismo nos países desenvolvidos, então ele é causa do sucesso, afirma Chang. No livro, “aprendemos” que Taiwan, Cingapura, Irlanda, Estados Unidos, Inglaterra e Suíça são exemplos de sucesso do protecionismo esclarecido, e que Argentina, Brasil e Rússia são casos de fracassos do neoliberalismo. Quanta inversão!
O autor afirma que o livre-comércio pode trazer benefícios no curtoprazo, mas condena o país pobre no longo prazo. É justamente o contrário: proteger empresas nacionais pode gerar algum ganho artificial no curto prazo, mas sacrifica o desenvolvimento do país no futuro.
Como todo desenvolvimentista, o autor se coloca sempre do lado do poder. Ele parece acreditar que um “déspota esclarecido” irá decidir qual protecionismo é desejável, e tomar medidas sempre com o “bem-comum” em mente. O governante será clarividente e honesto, uma espécie de “rei filósofo” platônico. Chang chega a afirmar: “O desenvolvimento econômico requer pessoas como Henrique VII, que constroem um futuro novo, em vez de pessoas como Robinson Crusoé, que vivem o dia de hoje”. Em outras palavras, os indivíduos não conseguem, através da sua liberdade, gerar desenvolvimento econômico por conta própria. Eles precisam da sabedoria dos governantes, sob o auxílio dos conselheiros, Chang incluído. A arrogância vem à tona quando o autor diz: “O comércio é simplesmente muito importante para o desenvolvimento econômico para ser deixado por conta dos economistas do livre-comércio”. Ou seja, o comércio não deve ser livre, mas sim controlado pelos economistas “esclarecidos”, os desenvolvimentistas, como o próprio Chang. Apenas eles sabem quais são os “interesses da nação”, e estão dispostos a sacrificar seus próprios interesses por este fim.
O paternalismo está presente na mentalidade desenvolvimentista também. O governo é o pai que ama seu filho – o povo, e que irá cuidar dele. De fato, Chang usa a analogia para defender o protecionismo das “empresas nascentes”, alegando que cuida de seu filho de seis anos, protegendo-o da concorrência até sua maturidade. Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”, não faria uso de uma metáfora diferente. De fato, esses paternalistas são mesmo os “pais dos pobres”, já que suas políticas costumam parir muita pobreza.
Em um abuso da linguagem orwelliana, Chang chega a afirmar que, “paradoxalmente, a política de livre-comércio reduz a liberdade dos países em desenvolvimento que a praticam”. Bota paradoxo nisso! Como um povo pode perder liberdade ao receber mais liberdade para escolher de quem comprar os bens e serviços demandados, independente da nacionalidade do vendedor? Eis um mistério que somente o “duplipensar” pode explicar.
Chang entende os problemas da gestão estatal, como o uso do dinheiro da “viúva”, o orçamento ilimitado e a falta de incentivos adequados. Mas ele acha que o mesmo se dá no setor privado, na mesma escala. Para defender esta estranha premissa, ele cita exemplos de fracassos no setor privado, como a WorldCom, e supostos casos de sucesso de empresas estatais, como a Petrobrás e Embraer no Brasil, e a POSCO na Coréia. Ele apela para a falácia de usar alguns casos isolados para concluir algo generalizado. Além disso, ele ignora o custo de oportunidade, ou seja, como teriam sido utilizados os recursos drenados pelo governo para sustentar por tanto tempo essas estatais. Como já alertava Bastiat, existe aquilo que se vê e aquilo que não se vê. Para a Petrobrás atingir uma tecnologia de ponta em águas profundas, quanto custou ao país suas décadas de monopólio garantido pelo governo? Como estaria o setor atualmente se o governo tivesse permitido a livre concorrência desde cedo, incluindo empresas estrangeiras? O caso da Embraer é ainda mais enganoso: o governo sustentou a empresa deficitária por anos, e apenas com sua privatização ela realmente deslanchou. A POSCO foi privatizada como um conglomerado bastante ineficiente, que investia em diversos setores sem ligação alguma.
A inversão que Chang faz em relação ao foco no longo prazo é total. Para ele, apenas o governo tem esse foco, enquanto o capitalista quer somente o lucro imediato. É justamente o contrário. O político foca nas próximas eleições, pois precisa ser eleito para sobreviver como político; enquanto o capitalista foca na maximização do valor presente dos fluxos de caixa, muitas vezes distantes no tempo.
Para Chang, entre as principais causas da corrupção estão a baixa receita tributária do governo e os salários baixos dos funcionários públicos (que no Brasil ganham, na média, o triplo do que ganha o setor privado). Reduzir as regulamentações, a burocracia e a quantidade de recursos que transita pelo governo levaria a um aumento da corrupção! Ele diz com todas as letras: “A corrupção normalmente existe porque há muitas forças de mercado, não poucas”. A Rússia que o diga! Ou o Brasil também, um país com problema crônico de corrupção e um governo totalmente inchado. Chang  parece defender o uso de sanguessugas para curar a leucemia.
Chang se coloca como o “bom samaritano” em defesa dos países pobres, mas, na verdade, ele é apenas o defensor dos ricos dos países pobres. Seu discurso nacionalista e protecionista seria abraçado com empolgação pelos grandes empresários da FIESP, por exemplo, interessados em barrar a livre concorrência que vem de fora. Nenhum “lobista” dos grandes grupos de interesse dos países pobres poderia contar com um apoio mais sintonizado que aquele oferecido por Chang. Após expor tantas falácias, pode-se concluir apenas uma coisa: com “bons samaritanos” como o senhor Chang, os pobres dos países subdesenvolvidos não precisam de inimigos!