Em face do entusiasmo ingênuo do governo Lula em relação à "parceria estratégica" entre o Brasil e a China, eu formulava, em 2005, alguns argumentos realistas quanto a essa possibilidade.
Creio que continuo pensando o mesmo, e o que mudou não dependeu de meu julgamento. A China reduziu o número de pobres, por suas políticas de crescimento acelerado, e só não conseguiu obter o status de economia de mercado na OMC por oposição dos grandes parceiros, pois ela tinha direito a alcançar essa condição em 2015 ou 2016.
O artigo foi publicado em Mundorama, mas não consigo encontrar mais o link, por isso o reproduzo aqui, sem qualquer pretensão à originalidade ou novidade.
Paulo Roberto de Almeida
Brasilia, 25 de junho de 2019
A China e seus interesses nacionais:
algumas reflexões histórico-sociológicas
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília, 20 de junho de 2005.
A China não tem e não quer ter parceiros, estratégicos
ou de qualquer outro tipo. A China é, para todos os efeitos, o seu próprio e
único parceiro; ela quer continuar assim e acha que se basta a si mesma. Talvez
ela tenha razão.
A China sempre foi uma nação sozinha, isolada e
solitária, tanto nos contextos regional e internacional, como do ponto de vista
de seu próprio desenvolvimento econômico e social, historicamente baseado num
desperdício inacreditável de homens e de recursos materiais, com a elite
dirigente consumindo esses fatores sem controle de ninguém e de nada, nem do
próprio meio ambiente. Esse processo continua e deve continuar a ocorrer do mesmo
jeito, hoje talvez até de forma ainda mais intensa, já que ela pode “mobilizar”
recursos de outros países.
A China produziu, em eras passadas, algumas poucas e
boas ideias, teve um mandarinato relativamente eficiente, em termos de
“burocracia weberiana” e se tornou a maior economia planetária com base numa
espécie de entropia míope. Mas até o século 18, pelo menos, ela continuou a ser
a maior economia planetária, não tanto pelas interações (que eram poucas), mas
pela sua própria “massa atômica”. Quanto ela deixou de ter ideias, ou quando as
ideias dos outros foram mais poderosas, pois que apoiadas em canhoneiras, ela
foi humilhada, dominada e esquartejada. Isso feriu fundo a autoestima e o
orgulho nacionais dos chineses.
Os chineses conseguiram, depois de décadas de lutas
(mais intestinas do que contra os inimigos externos, pois que ninguém consegue
dominar a China), reverter a decadência e tomar novamente seu destino em mãos.
Não tem a mínima importância histórica, ou estrutural, que essa retomada tenha
sido feita sob o domínio do comunismo, um modo de produção absolutamente
“passageiro” na história milenar da China. Com comunismo ou com o socialismo de
mercado, o novo mandarinato de burocratas e de membros da nova nomenklatura trabalha para confirmar o
destino secular da China, que é o de novamente se tornar a maior economia
planetária e ditar suas regras para os “bárbaros” do exterior.
A China está operando essa volta a um lugar de
preeminência econômica no planeta (a segurança militar é mera decorrência
disso), mas os atuais imperadores e mandarins têm consciência de que ela não
mais poderá fazer isso isoladamente, como ocorreu até o século 18, pois as
condições do mundo mudaram. A China assumiu plenamente o conceito de
interdependência econômica global, mas como ocorre com o famoso moto
orwelliano, num mundo totalmente interdependente, alguns são mais
interdependentes do que outros.
A China quer e vai ser interdependente à sua maneira,
isto é, acomodando-se a regras às quais ela não mais pode se furtar, mas
interpretando-as à sua maneira, e distorcendo-as para seu melhor conforto e
segurança. Isto se aplica em quase todos os terrenos de interesse substantivo,
mas especialmente às regras de comércio internacional e de investimentos
estrangeiros. A China não pretende à dominação do mundo, mas ela não pretende
mais que o mundo, ou seja, o círculo das superpotências, a domine mais. Isso
não vai ocorrer e a China sabe que tem de conviver com as superpotências, mas
não quer se submeter às regras existentes (que aliás nem são ditadas por essas superpotências,
mas decorrem do processo de globalização capitalista).
A preocupação principal dos atuais imperadores e
mandarins chineses é assegurar emprego (e, portanto, comida) a meio bilhão de
chineses pobres, que podem, à falta de condições mínimas (mas mínimas mesmo) de
existência, perturbar a paz no Império do Meio, e com isso afetar o poder e a
dominação dos atuais dirigentes. Etapa importante nesse processo é transformar
a China na principal fábrica planetária, aliás a única maneira de acomodar algo
como 400 ou 500 milhões de chineses que precisam de emprego (e que não os terão
nem na agricultura nem nos serviços).
Como ela só pode fazer isso construindo o seu próprio
capitalismo manchesteriano (que certamente deixaria Engels de queixo caído), a
China “precisa” destruir empregos no resto do mundo, pois essa é a única
condição de sobrevivência de algumas dezenas, talvez centenas de milhões desses
chineses “flutuantes”. Por coincidência, essa é também a “missão histórica” que
lhe foi atribuída, atualmente, pela globalização capitalista, um processo
impessoal, não controlado por nenhum país ou conjunto de corporações, mas que
corresponde à “lógica” do sistema atual de alocação de investimentos e de
organização espacial da produção de mercadorias.
Como a China trabalha com aportes ilimitados de homens e
capital (com alguma limitação em outros recursos produtivos, como os de know-how e ciência básica), ela não terá
nenhuma dificuldade em manter esse ritmo alucinante de destruição de empregos
em todo o resto do mundo pelas próximas duas gerações pelo menos (ou seja, pelo
próximo meio século). A China está ascendendo rapidamente na escala de
agregação de valor, não apenas publicando exponencialmente em revistas
científicas, mas passando da simples cópia e adaptação tecnológica para a
inovação completa, já tendo chegado também ao design e marcas. Seu catch-up promete ser ainda mais
impressionante do que o do Japão e da Coréia do Sul e provavelmente não haverá
nada comparável na história econômica mundial.
Com tudo isso, a China vai agir exatamente como sempre
agem os centros da economia mundial: organizando sua própria periferia de
“abastecimento”, que ela espera poder controlar da forma como fazem os
imperialismos modernos: não pela via extrativista, mas por redes de negócios
centrados em circuitos financeiros próprios, chineses. A China vê o Brasil como
o abastecedor prioritário de produtos alimentícios e de outras commodities para sua gigantesca máquina
industrial. Ela também pretende inundar o Brasil (e já o está fazendo) de
produtos manufaturados correntes.
O Brasil não conseguirá bater a China no terreno da
indústria tradicional, isto é, aquela da segunda revolução industrial: ele será
fragorosamente batido, como estão sendo todas as demais potências industriais. As
indústrias brasileiras, se desejarem sobreviver no mundo manchesteriano-chinês,
deverão fazer como todas as outras: avançar na concepção e desenho e mandar
fabricar na China. Só assim elas conseguirão sobreviver enquanto empresas, do
contrário perecerão corpos e bens. Vão-se os operários e sobram os engenheiros.
Quanto mais cedo esse processo começar, tanto melhor para as empresas
brasileiras candidatas à sobrevivência no mundo darwinista chinês.
Alguma renda extra será possível obter nos projetos
conjuntos de fornecimento energético alternativo e nos produtos intensivos em
recursos naturais, como corresponde às vocações ricardianas do Brasil. Países como
o Brasil não devem alimentar grandes “planos estratégicos” em relação à China:
a China fará aquilo que ela pretende fazer, segundo o seu interesse nacional, e
não se deixará demover por nenhuma promessa de “aliança estratégica” ou
qualquer outro arranjo que contemple interesses supostamente simétricos. Melhor
fazer o que corresponde ao interesse nacional, sem esperar resposta ou gestos
correspondentes de parceiros como a China.
Incidentalmente, a concessão do status de “economia de mercado” não deve alterar muito o panorama
geral e seu desenvolvimento inexorável: ela só atrapalha os desejos
protecionistas de alguns ramos da indústria brasileira, tendo uma incidência
setorial em mercados de trabalho específicos. Talvez constitua um exercício
útil do ponto de vista do cenário serial
killer que virá mais adiante, quando a China for plenamente integrada ao
regime gattiano normal (o que ocorrerá até 2015). A concessão desse status representou apenas uma
antecipação do que ocorrerá inexoravelmente no terreno econômico. Ela obriga as
empresas brasileiras a correrem um pouco mais rápido, o que talvez não seja
mau, pois elas estavam se acostumando com muita proteção e nenhum desafio,
desde 1995, pelo menos.
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
20 de junho de 2005.
565. “A China e seus
interesses nacionais: algumas reflexões histórico-sociológicas”, Meridiano 47 (Brasília,
IBRI, n. 59, jun. 2005, p. 10-12; link: http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/2135/1888). Relação de Trabalhos n. 1443.