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Boletim
da ADB (ano 19, n. 76, janeiro-fevereiro-março 2012, p. 26-29; ISSN: 0104-8503;
link: www.adb.org).
Nota Liminar
Dentre os muitos papéis
deixados pelo Barão no momento de sua morte, na mais completa desordem,
encontrava-se um curioso caderno, que permaneceu obscuro durante muito tempo, cuja
transcrição foi realizada com alguma dificuldade por este organizador, que
esforçou-se ademais por colocar o texto numa ortografia a mais possível moderna.
As anotações manuscritas do Barão, algumas datadas, outras simplesmente
localizadas no espaço (a maior parte do Rio, outras de Petrópolis), foram
feitas sem maiores indicações quanto às circunstâncias exatas de sua redação, a
não ser alguma referência à agenda diplomática corrente, o que permite definir,
em princípio, um momento provável de redação; elas foram feitas sequencialmente
pelo Barão nos três anos seguintes ao seu aniversário de 1909, em momentos
diversos e com humores diferentes, mas sem o cuidado de manter a estrita
cronologia de um diário “normal”.
Ou seja, o conteúdo do volume
em questão não conforma exatamente o que poderíamos chamar de “memórias”, no
sentido corrente do termo. O Barão provavelmente pretendia – ao sentir o peso
dos anos e o acúmulo de responsabilidades, depois de tantos presidentes a que
serviu – deixar um testemunho sobre seu pensamento profundo – e verdadeiro – sobre
os temas com os quais se entretinha. Rio Branco sentia necessidade de
expressar-se de alguma outra forma que os telegramas e ofícios que mandava
preparar sobre temas diversos, que as notas que redigia à intenção dos
presidentes a que serviu – e eles foram muitos, mesmo que não pretendesse
continuidade nas suas funções – ou que os muitos artigos de imprensa que
redigiu ao longo dos anos, alguns até assinados com algum nom de plume, que ele escolhia ao sabor do momento, para
defender-se de, ou atacar, algum inimigo concreto ou imaginário que ele
detectava em certos editoriais e artigos de opinião não assinados.
As notas e inscrições
rápidas do “caderno escolar” do Barão são, assim, mais uma espécie de “exercícios
filosóficos” sobre as relações internacionais do Brasil, do que propriamente um
registro fiel de sua labuta cotidiana à frente da chancelaria. Ele talvez
quisesse utilizar os rascunhos do caderno como a hipotética base futura de um
verdadeiro volume de “memórias póstumas”, se o tempo e uma aposentadoria
tranquila lhe tivessem permitido retomá-los em condições de lazer e de dedicação
integral a tal tipo de empreendimento. Disso não temos certeza, pois nenhuma
indicação concreta nessa direção foi deixada no caderno ou em qualquer um dos
muitos papéis – numerosos, desordenados, alguns até incompreensíveis, fora do
contexto em que foram criados e deixados ao léu – amontoados em seu gabinete de
trabalho (e de residência, podemos dizer) ao longo dos muitos anos que passou
naquele casarão da rua Larga.
Mas os elementos
especificamente formais desse “caderno íntimo” do Barão interessam ao público
de hoje em dimensão menor do que seu conteúdo propriamente político, e
diplomático. O Barão tinha, sim, ademais dos cuidados triviais com a diplomacia
corrente, uma visão de futuro para o Brasil, uma grande estratégia que ele não
conseguiu formalizar em algum livro de história diplomática ou de síntese das
relações internacionais do país, mas que ele provavelmente pretendia redigir a
partir destas notas que, graças a um conjunto fortuito de circunstâncias, passamos
agora a revelar...
Paulo Roberto de Almeida
Responsável pela transcrição e modernização da
ortografia,
a partir de manuscritos encontrados nos papéis
deixados pelo Barão;
títulos e intertítulos dos capítulos sob
responsabilidade do organizador.
[Por que decidi
escrever estas memórias?]
Petrópolis,
20 de Abril de 1909
Escritores são, em geral,
fantasistas notórios; alguns deles, inclusive, chegam a ser mentirosos, o que,
aliás, é próprio do seu ofício. Por isso, decidi rabiscar eu mesmo estas
linhas, resumindo, embora a largos traços, a minha vida. Mirando-a retrospectivamente,
não posso deixar de julgá-la bem-vivida, até agraciada pela Sorte, essa
madrasta que nos persegue os passos, pensando causar-nos troças a cada etapa de
nosso itinerário terrestre. Mas não pretendo lhe deixar esse prazer: ubique, eu mesmo cuido de minhas
memórias, sobretudo se elas tratam da pátria!
Também o faço porque
alguns dos meus colaboradores, e até os senadores da República, vêm se
mostrando incomodados com a falta de relatórios da minha gestão à frente do
Itamaraty, uma decisão que tomei desde o dia da posse, naquele, agora
longínquo, dia de dezembro de 1902, numa das mais importantes inversões da
minha já longa trajetória de vida. Sete anos atrás, não sabia se era justa a
minha decisão de trocar a absorvente vida diplomática na capital da Alemanha
imperial por esta cidade ainda cheia de mosquitos, de doenças endêmicas, com
sua quota excessiva de miasmas, o que me obriga a subir regularmente a serra em
direção ao meu chalé de montanha.
Não pretendo desculpar-me
com meus colegas diplomatas pela falta dos relatórios anuais: pelo menos não
corro o risco de lhes amarrotar a autoestima. Por isso, deixo o julgamento
definitivo de meus atos aos historiadores do futuro, que por certo saberão
encontrar o que buscam nos muitos documentos já acumulados em minha gestão;
talvez até encontrem estas notas – que não sei quando terminarei – entre as
pilhas de papéis que locupletam, na mais perfeita desordem, as várias mesas de
meu gabinete. On n’est jamais si bien
servi que par soi-même. Mais, passons...
Também quero deixar agora
consignadas, neste mês de abril de 1909, as razões que me levaram a recusar, de
maneira peremptória, firme e irrevogável, o generoso oferecimento de uma
candidatura, praticamente vitoriosa, à presidência da República, certamente o cargo
mais honroso que um homem público pode desejar, em qualquer país, em qualquer
época. Confesso, tanto intimamente, quanto aos que lerem estas linhas em algum
tempo do futuro, que não tenho a menor vontade – não digo de disputar eleições,
já que estas, no Brasil, são feitas a bico de pena, e o candidato saído da
convenção dos congressistas já é uma aceitação nacional – de assumir um cargo
que me obrigará a tratar com os mesmos políticos que, no íntimo, eu desprezo,
que considero particularmente medíocres ou que julgo incapazes e incompetentes
para conduzir um Brasil atrasado à posição que ele mereceria ocupar na cena
internacional.
O próximo presidente da
República será, provavelmente, esse marechal teimoso como uma mula, mas
timorato nas decisões, e que hesitou diversas vezes em lançar-se ao cargo,
quando todos sabem que minhas preferências – a despeito das diferenças que
acumulamos desde a conferência da Haia – estariam naquele brilhante advogado
baiano, arrogante e vaidoso em suas pretensões de jurista internacionalista,
ainda assim melhor preparado do que a mula fardada que se prepara para dirigir
um país difícil como o Brasil. E talvez eu já não tenha mais forças para
fazê-lo...
Minha aspiração – sem
pretender chocar os que lerem estas minhas memórias desabusadas, algumas
décadas mais à frente – é a de que o Brasil possa dispor, no futuro, de homens
políticos mais bem preparados para o cargo, tribunos competentes e educados,
estadistas comprometidos com a dignidade das causas nacionais, sem essas nódoas
de corrupção que nos maculam internacionalmente, sem o peso da ignorância
abissal que infelizmente ainda marca muitos dos aventureiros e oportunistas que
procuram cargos públicos, alguns inclusive por razões inconfessáveis. No
momento, quero apenas estar em paz com minha consciência, mesmo sabendo que
minha recusa em aceitar a candidatura à presidência praticamente colocará nesse
mais alto cargo da República, em lugar de um jurista pretensioso, um militar
que pode aprofundar o desmantelamento de nossas instituições de Estado,
propenso como ele parece ser a continuar com essas viciosas políticas de
intervenções nos estados. Não quero ser parte dessas vergonhas nacionais e
pretendo encerrar minha gestão tão pronto o presidente Affonso Penna apenas
termine a sua. Tenho ainda a resolver negociações já em curso de tratados de
limites com o Peru e com o Paraguai, e antecipo uma concessão adicional ao
Uruguai, para dar por encerrada minha obra de fixação definitiva de todas as
nossas fronteiras. Depois disso abandono fraques e polainas, tão incômodos no
calor carioca, e coloco definitivamente as chinelas...
(...)
[Militares e intelectuais: tão diferentes, tão
semelhantes...]
Rio
de Janeiro, 15 de novembro de 1910
O novo presidente da República, o
Marechal Hermes da Fonseca, tomou posse hoje, numa cerimônia assez simple, feita de assinatura de
livros de posse, dois discursos rápidos e poucas congratulações. Fui
reconduzido nas mesmas funções em seu gabinete (que aliás ainda não está todo
constituído), como tinham anunciado alguns meses antes os auxiliares do
presidente eleito, mesmo sem ter me consultado, o que refletem duas coisas: ou
benemerência sincera, em relação a meus serviços à frente desta Secretaria de
Estado, ou arrogância desmedida, de quem se julga mestre de tudo e de todos.
O Marechal o fez a despeito de meus
protestos de desprendimento ao cargo, o que eu já tinha demonstrado de sobejo.
Como todos sabem, a candidatura à esta presidência me foi oferecida, de
bandeja, se ouso dizer, mais de um ano atrás, coincidindo a pressão política em
favor do lançamento de meu nome com o meu natalício dos 64 anos; creio ter
feito muito bem em recusar. A despeito de ter uma eleição praticamente
assegurada, uma vez que o congresso do partido ratifica o nome do candidato,
nunca gostei, de fato, da vida política, pois acho os homens dessa sorte muito
enfatuados, e dispostos a prometer qualquer coisa aos políticos que os elegem,
o que apenas confirma meu desgosto da vida política. Sim, porque no Brasil não
são os eleitores que determinam a vida política do país, e sim é o atual
sistema de partidos estaduais que decide quem serão os “representantes” do
povo.
Não fosse isso, dois outros fatores
contribuiriam para me afastar desse mundo de pequenas trapaças e grandes
enganações, como é a política no Brasil: as intervenções nos estados, o que vem
gerando tensões insuportáveis não apenas no meio político, mas também no
Judiciário; e o fato de termos uma Constituição contraditória, que permite tudo
aos estados – depois de décadas de centralização monárquica – e lhes deixa numa
situação de virtual liberdade, para contrair dívidas e conduzir os seus
negócios como se fossem verdadeiros países soberanos; isso vai acabar por
tornar periclitante a própria federação que os republicanos quiseram criar,
contra os sãos princípios do Império.
Acresce a isso o fato de que eu
sempre vi com muita simpatia a candidatura do Doutor Ruy ao cargo supremo da
Nação, destino que lhe parece estar reservado em algum momento do nosso futuro,
a despeito mesmo dessas frustrações que hão de ser temporárias. Não obstante os
pequenos desentendimentos que ambos tivemos ao longo de todos esses anos de
turbulências republicanas, a começar pela negociação com os bolivianos e,
depois, o affaire Drago-Porter na
segunda conferência da Haia, eu considero o jurisconsulto baiano um dos homens
mais preparados para governar um país quase ingovernável como o Brasil. E, apesar
disso, de todas as suas qualidades e de suas propostas altamente necessárias
num país de pouca inteligência política como o Brasil, o grande civilista Ruy
foi derrotado pelo militarista Hermes, o que demonstra que, depois de tantas
desventuras com seus caudilhos militares nas repúblicas irmãs do continente,
nosso país também se deixa seduzir pelo charme pouco discreto dos homens da
farda.
Explica talvez a vitória de Hermes –
certamente conseguida à custa do famoso “bico de pena” – o fato de ser sobrinho
do Marechal que inaugurou esse sistema anárquico em nosso país, quando
estávamos tão bem na condição de única monarquia do Novo Mundo, uma verdadeira
república neste continente de caudilhos, como aliás disse de nós um presidente
venezuelano. Os militares de nossos turbulentos vizinhos sempre interferiram
nos negócios internos desses países, talvez à falta de grandes ameaças à
soberania nacional, como soe acontecer na Europa: por aqui eles cuidam mais dos
soldos do que dos soldados inimigos; como os políticos relutam em aumentar-lhes
a paga...
No Brasil, eu os respeito, mas de
forma nenhuma os venero, pois sei que muita gente no partido militar tem
inclinações que beiram o despotismo, como já nos demonstrou sobejamente aquele
marechal das Alagoas, que disse que iria responder à bala qualquer intromissão
de estrangeiros nos assuntos do seu governo. Não é coisa que se faça,
obviamente, sequer que se diga, pelo menos não de público, ainda mais quando os
estrangeiros já estavam de fato envolvidos na infeliz guerra fraticida que
sacudiu esta bela capital, pelo fato de alguns dos bravos da marinha, que
lutavam contra a ditadura do dito marechal, se terem homiziado em barcos
estrangeiros. A “diplomacia” do Marechal não foi diplomacia nem aqui nem no
Império chinês e Deus nos livre de um dia cair numa ditadura de marechais como
esse de olhar mortiço, de língua solta e de sabre ainda mais folgado (se não
são os canhões, que ele não hesita em mandar disparar, contras seus próprios
companheiros). Espero que este Marechal que agora começa seu quadriênio, e que
me tem amarrado ao seu governo, não tenha as mesmas ideias liberticidas...
Enfim, se o Ruy não vencer em alguma
próxima eleição, em vista da sua idade, que bate com a minha (com 4 anos de
vantagem), pode ser que o Brasil não tenha mais nenhum candidato dessa estatura
intelectual nem nos próximos cem anos. Com efeito, olhando-se o panorama de
miséria educacional brasileira, não se pode esperar por algum outro sábio do
porte do Ruy antes de muito tempo; não quero tripudiar sobre o ensino do nosso
Colégio D. Pedro II, onde já fui professor e conheço a qualidade dos seus
mestres, mas o quadro da cultura em geral, e o da cultura política em
particular, é lamentável. O ambiente político no Brasil tende a recrutar as
piores vocações, os seres mais oportunistas, as inteligências mais medíocres,
se nisso não vai nenhuma contradição.
Em contraste, os militares não são
melhor dotados em inteligência, mas são mais bem organizados, dispõem, em todo
caso, de uma máquina bem azeitada que, com exceção de algumas áreas da nossa
magistratura, justamente (e nem todas, pois também frutas podres existem nesses
meios), pode oferecer-lhes as condições ideais para que se ocupem das mais
variadas funções no Brasil, pela razão, ou pela força, como dizem os chilenos.
De fato, os únicos bons matemáticos e engenheiros que temos neste país são os
que saem das escolas militares, pois no ambiente civil o que temos é uma
pletora de bacharéis em direito. Como digo sempre, quem cria a riqueza de um
país são os seus engenheiros e homens de ciência, pois a única coisa que, em
geral, produzem os bacharéis e os intelectuais é o déficit público.
[A continuar...]