Los hermanos, siempre tan hermosos...
Transcrição e modernização da ortografia destas “memórias” por Paulo Roberto de Almeida,
a partir de manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo próprio.
Rio de
Janeiro, 2 de maio de 1910
Pronto! Acabo de confirmar ao Senhor
Presidente, que me havia interrogado a esse respeito, que o Brasil participará
das comemorações do assim chamado “centenário da independência argentina” (com
aspas, comme il faut), neste próximo
10 de maio, com uma delegação normal, isto é, por meio do nosso próprio
ministro em Buenos Aires, e não com alguma embaixada especial ou enviado
extraordinário. A decisão, é bom que se diga, foi só minha, e a considero
plenamente justificada, como expliquei ao Senhor Presidente. Meus auxiliares,
todavia, me dizem, desde já algum tempo atrás, quando, refletidamente, tomei
tal decisão, que se trata de um erro monumental. Alguns deles, inclusive,
parecem ter ficado abalados com o que chamam de descortesia gratuita de minha
parte, enfim, mais uma demonstração de birra pouco diplomática vis-à-vis nuestros hermanos...
Curiosa essa menção a erro, porque isto me
lembra de uma frase à propos, que já
ouvi há muito tempo, de um desses nuestros
hermanos justamente, mas já não sei dizer de quem, de onde ou quando: He cometido un error fatal! Y el peor es que
no sé cual...
Talvez eu também tenha cometido algum erro
fatal, mas não sei dizer exatamente qual, embora minha impressão sincera é a de
que o equívoco está com eles, não comigo. O erro, terrível, no dizer de meus
auxiliares – que se desesperam com esta minha decisão – teria sido representado
pelo fato de não termos enviado nenhuma delegação especial, representando a
nação brasileira, às comemorações oficiais do centésimo aniversário do 10 de maio
argentino, quando tantos países o fizeram. Muitos outros países, justamente,
designaram plenipotenciários especiais, alguns a nível de ministros de relações
exteriores, uns poucos até com o deslocamento de seus chefes de governo, o que
me parece um pouco exagerado, mais
laissons cela à leur critère. Chacun
est maître de ses décisions...
Descarto qualquer erro de minha parte, mas
como não posso externar minha opinião au
grand large, o faço aqui para a posteridade (e a devida fidelidade a esta
musa sempre tão conspurcada que atende pelo nome de História). A sinceridade é
uma dessas virtudes que, infelizmente, poucos homens públicos podem externar em
todas as circunstâncias.
Qual erro cometi, afinal, já que não vejo
nenhum em minha decisão de não ver nesse dia nada de realmente extraordinário?
Seria o 10 de maio uma efeméride suscetível de mudar dramaticamente o curso da
História, na mesma categoria dessas de que me ocupei largamente no passado? (É
bem verdade que me ocupei também, nas efemérides, de fatos corriqueiros, mas
isso foi mais por distração do que por verdadeiro culto a essa musa, que no
entanto respeito e venero, como uma das minhas preferidas, ao lado daquela que
comanda aos prazeres da mesa, se por acaso existir uma tão gourmande quanto eu...)
Os argentinos estão festejando, com orgulho
indevido em minha opinião, o 10 de maio de 1810, que é quando nossos vizinhos
acreditam que “conquistaram” a sua independência da Espanha (ou de Napoleão,
sejamos mais claros). O fato, absolutamente verdadeiro, é que no 10 de maio de
1810, não foi proclamada nenhuma independência argentina. Nada aconteceu nesse
dia, a não ser o reconhecimento, pelo cabildo de Buenos Aires, de algo
absolutamente fáctico, tão evidente que sequer havia necessidade de qualquer
proclamação em torno disso: o trono de Espanha, o legítimo, tornou-se obviamente
vacante – mas não foi nesse dia – em função da “destituição”, de seu real cargo,
de um desses Bourbons que os próprios franceses tinham se esforçado para
colocar no trono de Espanha um século antes. Mais uma querela dos Pirineus...
Eles, os argentinos, que nisso são
equivocadamente seguidos por meus auxiliares, acreditam que sua independência
começou nesse dia – eles comemoram, na verdade, duas ou três datas, dependendo
da utilidade – quando ela só se firmou, de verdade, muito tempo depois, mais
até do que seu orgulho nacional o permitiria. Ela de fato só ocorreu, e mesmo
assim de maneira passavelmente confusa, depois que San Martin andou fazendo
valer o que de fato vale na vida das nações: a crítica das armas, não as armas
da crítica. Estas, como grande parte do palavrório dos diplomatas, se traduzem
muitas vezes em declarações chorosas, que falam da “opressão dos invasores”, ou
da “usurpação do trono”, enfim, essas frases ocas, em que comprazem nossos
colegas de carreira.
Todas essas construções intencionais, de
uma pré-ciência de “momentos históricos”, de fato delineados a posteriori, servem apenas para
alimentar os mitos nacionais, quando a realidade é que a soberania e a
independência de uma nação só se garantem na ponta dos sabres, como afirmava o
velho Bismarck, ou numa eventual carga de cavalaria, como parecia preferir seu colega
de conquistas, o general Moltke. Seja como for, esses nuestros hermanos, siempre tan hermosos, inventaram o mito do 10 de
maio apenas para ter precedência sobre nossa própria independência, e querem
que acreditemos nisso. Sinto muito, mas não caio nessa peta!
Se me permito aqui parafrasear o general
Roca, nosso amigo sincero – dos poucos que temos naquele país de arrogantes
gaúchos que se creem ingleses dos pampas – eu diria que muitas coisas nos unem,
mas algumas nos separam (mas isso eu não posso afirmar de público). Já não me
refiro ao esporte bretão, que parece começar a empolgar multidões dos dois
lados do Prata, mas sim a interesses concretos, com destaque para o equilíbrio
de nossas forças navais, cruciais na nova conformação dos fatores de guerra que
teve início pela construção dos primeiros dreadnoughts
pela Royal Navy. Não acredito que possamos levar muito longe essa insana
competição por encouraçados cada vez maiores e poderosos, inclusive porque o
nosso pobre orçamento não o suportaria (e esta é uma das poucas razões pelas
quais apoio esse difícil pacto ABC, quando preferia ter apenas o Chile como
aliado constante e fiel, junto a nosso grande irmão do norte, um pouco
inconstante, este).
Os argentinos são, sem sombra de dúvida,
muito mais ricos do que nós; aliás, mais até do que vários europeus (e, ouvi
dizer, até mais do que os franceses, que cunharam a frase, muito frequente em
suas operetas, de riche comme un argentin...).
Nossos vizinhos podem, portanto, se permitir essas loucuras com seus orçamentos
militares, ainda que a quebra do Barings – quando eu começava a me ocupar,
justamente, do nosso conflito em torno de Palmas – comprove que, mesmo assim,
nem tudo é possível de se fazer com o dinheiro alheio. Os pobres venezuelanos,
aliás, sabem muito bem disso, ao terem tido de suportar o peso de canhoneiras
estrangeiras, porque um desses coronéis malucos que frequentemente se apossam
do poder naquele confuso país andino e caribenho se recusou a cumprir com suas
obrigações financeiras, algo que nosso Império, sempre tão endividado, jamais
chegou a cogitar. Se tivemos de negociar nosso último funding loan em termos que não foram certamente os mais flâteurs para nossa dignidade nacional,
foi porque um bando de bárbaros do sertão nos obrigou a levar uma guerra frustrante,
em quatro sucessivas expedições, que consumiu nossos parcos recursos do café,
como antes já tinha ocorrido com a maldita guerra contra o ditador Solano
Lopez.
Pois bem, voltando às “comemorações do 10
de maio”, imagino que um dos meus críticos argentinos – me refiro ao
inacreditável Estanislao Zeballos – possa estar agora falando de mim: “Maldito barón” – com b minúsculo, para me
diminuir um pouco mais – “siempre depreciando a nuestra patria, como si Brasil
no fuera una porqueria, un cambalache, yá lo sé...”. Foi ele mesmo que nos
levou a esta situação absurda de competição naval, com sua agressividade
militarista tão desproporcional quanto às supostas ameaças do Brasil e do
Chile, que o próprio presidente José Figueroa Alcorta teve de demiti-lo em meio
ao seu mandato. Zeballos nunca engoliu o que continua a chamar de
“desmembración” do território argentino, mas que foi apenas um laudo impecável
do presidente americano, em face de meus argumentos absolutamente fundamentados
na história – e na nossa boa cartografia lusitana – em defesa do nosso pedaço
das Missões. O mesmo belicoso Zeballos, quando ministro, queria controlar
nossas aquisições de fragatas na Europa, e até “dividi-las” com eles (o
absurdo!), mas nunca hesitou em exigir de seu próprio presidente aumentos
fabulosos das compras militares argentinas, como tampouco se eximiu de propor a
preparação de suas forças navais para eventualmente ocupar o Rio de Janeiro
pela força.
Como querem, agora, que eu conceda em enviar
uma delegação de alto nível a um país que falseia sua história, que mantém
sonhos ridículos de grande potência e que, além do mais, reincide num
protecionismo renitente, que prejudica nossas legítimas exportações de açúcar e
de algodão? Como querem meus auxiliares que eu me disponha a assinar um acordo
de comércio preferencial com nossos vizinhos – concedendo-lhes as mesmas
vantagens que eu concedi às farinhas americanas – se eles continuam a comprar
quantidades ínfimas do nosso precioso café? Não! No que depender de mim, não
haverá acordo comercial de nenhum tipo com os argentinos, até que eles nos
reconheçam como uma nação tão merecedora de consideração como aquela que eles
estão sempre tão dispostos a conceder à velha Albion, que eles, também
ridiculamente, estimam ser o seu modelo a imitar, ainda que não exibam toda a
pompa e circunstância da Corte de St. James.
Sei que o dileto amigo Julio Roca sempre
propugnou por uma estreita união dos dois países, afirmando, ao nosso Campos
Salles que, ao desenvolver “laços da mais íntima amizade”, Brasil e Argentina,
juntos, seriam “ricos, fortes, poderosos e livres”. Pode ser que, um dia, de
fato cheguemos a essa situação, de sólidos vínculos entre nossas duas
economias, mas não antes que nuestros hermanos
abandonem sua ideia de preeminência militar, mesmo que continuem mais ricos do
que nós por certo tempo ainda. Atualmente, eles quase se igualam à riqueza
americana, mas essa situação pode não perdurar, e o Brasil chegará a ser também,
um dia, rico e poderoso, se para tal lhe ajudarem o descortino e a capacidade
intelectual de nossos líderes, hoje, infelizmente, tão carentes de educação
econômica e tão pouco propensos a educar o povo, como preconizou para a
Argentina, tão justamente, o genial Sarmiento. Quando teremos um intelectual
como ele, entre nós?
Esse dia chegará, estou seguro, mas
certamente não será do meu tempo; talvez dos meus netos, mas sobre isso falarei
um outro dia...
Rio de
Janeiro, 2 de Maio de 1910
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