Se São Paulo, a maior cidade do Brasil, tivesse sido fundada às margens do rio Acre e não do Tietê/Pinheiros, neste momento pelo menos quatro milhões dos seus 11 milhões de habitantes estariam fora das suas casas ou tendo que conviver com a água dentro delas. Seria uma tragédia de dimensão internacional.
Rio Branco está vivendo quase em silêncio — e com pouco interesse nacional ou mesmo regional — essa situação. As águas do rio Acre quase se nivelaram ao recorde da cheia de 1997. A diferença é insignificante: um centímetro.
Com um agravante inédito: em agosto do ano passado o rio sofreu a sua seca mais crítica. A lâmina d'água era de 1,57 metros, bem abaixo da menor marca até então, a da grande seca amazônica de 2005, quando o nível ainda foi a 1,64 metros.
De agosto de 2011 até dois dias atrás o crescimento do rio Acre foi de mais de 10 vezes: chegou a 17,65 metros. Subiu, portanto, 16 metros (o equivalente a um prédio de cinco andares), espraiando-se por grande parte do perímetro urbano e causando todo tipo de prejuízo.
Quase 15% da cidade ficaram às escuras, o que significaria deixar mais de um milhão e meio de paulistanos sem luz por dias seguidos para evitar acidentes com fios eletrificados, que costumam matar os desatentos.
Os efeitos são ainda mais sentidos porque a capital abriga quase metade dos 750 mil habitantes do Acre e a maior parcela da riqueza do Estado, dois terços dela baseadas em serviços.
Mas o Acre está muito longe do foco da opinião pública brasileira para que a gravidade da cheia possa sensibilizar e mobilizar a solidariedade nacional — menos ainda, a oficial.
Se os brasileiros não sabem o que acontece do outro lado do país, os que lá estão nem sempre costumam estar próximos para a ajuda. Os recursos designados pelo governo local equiparam-se ao que foi gasto no carnaval, quando, literalmente, as águas rolaram.
O Acre responde por 0,2% do PIB brasileiro. E só é brasileiro há pouco mais de um século. Em 1904 o barão do Rio Branco, patrono da diplomacia verde-amarela, comprou os 252 mil quilômetros quadrados que pertenciam à Bolívia para encerrar a guerra liderada pelo gaúcho Plácido de Castro pela emancipação desse território, que já era brasileiro de fato.
O Acre é tão longínquo que o presidente Evo Morales se concedeu o direito de ironizar a pacificação da zona conflagrada feita pelo barão, o primeiro dos grandes e ainda o maior diplomata do Brasil. Disse que compramos o Acre pelo preço de um cavalo, ou menos.
O governo brasileiro não contestou o humor negro do presidente Morales, que violentou todas as versões do fato histórico. Parece que os falsos estadistas de hoje consideram que ficar o Acre não foi um bom negócio;
Não foi pouca terra como pode parecer a que compramos. O Acre se tornou o 16º maior Estado brasileiro, com 11 unidades federativas abaixo de sua grandeza física, o Distrito Federal no meio.
Mas sua população é menos de 0,4% da soma dos brasileiros e sua riqueza, a metade desse valor. Ou seja: do físico ao econômico, passando pelo social, o Acre cai na hierarquia de valores. Quase sai da lista.
Torna-se um produto exótico quando se constata que são muitos os que conhecem Chico Mendes e Marina Silva, sem atentar, contudo, para o contexto que lhes deu origem. Sabem deles sem entendê-los.
É a marca da relação da metrópole com a colônia, do centro com a periferia. O que conta é o polo dominante. O resto é derivativo. That's all folk, como apregoa a abertura das fitas de desenho animado do Pica-Pau.
Ir — em menos de um ano — de um extremo de estiagem a outro extremo de inundação dá uma medida do que é a Amazônia, região configurada pela maior bacia hidrográfica do planeta. O elemento definidor dessa paisagem é a água. Não "a água" genericamente falando, como cenário decorativo. É a água enquanto protagonista. É assim há milênios. Mas pode deixar de ser assim.
Não que a transformação seja súbita ou possa ser prontamente diagnosticada com o surgimento de acontecimentos excepcionais, como sendo hecatombes e dilúvios.
Para minimizar a cheia acreana atual alguém lembrou que as tropas de Plácido de Castro atravessaram o rio Acre a cavalo, em algum ponto onde agora está Rio Branco (o rio Branco, aliás, fica no outro extremo da Amazônia, em Roraima, banhando Boa Vista, a confundir ainda mais os estudantes de geografia e história).
É verdade: outras cheias ou secas monumentais já existiram antes. O que parece novo é a frequência com que elas estão se repetindo, amiudando-se. Pode não ser uma catástrofe inevitável, mas certamente será uma catástrofe se os sinais de alerta forem ignorados.
A maioria das cidades surgiu à beira de um rio. Mas na Amazônia a dimensão da hidrografia requer atenção especial. Qualquer mudança mais significativa deve ser considerada e bem estudada para que o homem se adapte da melhor maneira à natureza.
Não tem sido esta a regra de procedimento. Muito pelo contrário: o homem segue seu caminho, na busca de novas fontes de riqueza, e vai mudando o que encontra pelo caminho. Acaba com as indispensáveis matas ciliares (que serão podadas ainda mais pelo pretendido novo Código anti-Florestal), dá fim à proteção vegetal das encostas, troca a densa mata nativa por precária pastagem — e assim segue a cornucópia da destruição.
Na Amazônia (e na Terra em geral) há o efeito bumerangue. Se lança-se a agressão, ela retornará contra quem a lançou. Os desmatamentos indiscriminados terão eco. É só acompanhar seu rastro.
As cheias começaram neste ano mais cedo. Não apenas no Acre: em toda a Amazônia. Um observador superficial pode contrapor outro fato a esse: também o refluxo começou mais cedo, já que o rio Acre apresentou ligeira baixa nos últimos dois dias.
Esse movimento, porém, pode ser ilusório. Ele antecede um novo movimento de enchimento. Por isso os moradores das áreas atingidas pela subida e descida das águas, que tem ciclo semestral no interior da região, ficam atentos e apreensivos. É muito cedo para comemorar.
Na Amazônia de vastas distâncias e grandezas continentais, a natureza ainda é a personagem principal. Mesmo que seja para desfazer, em muito menos tempo, o que fez durante largos períodos, quando o homem não era a hipótese em que se tornou. Improvável, aliás.
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