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sexta-feira, 21 de junho de 2024

Um futuro pior que o passado? Reflexões na antevéspera do bicentenário da independência - Rubens Ricupero (palestra na ABL)

 Um futuro pior que o passado? Reflexões na antevéspera do bicentenário da independência

Rubens Ricupero

Ciclo: O que falta ao Brasil?

Academia Brasileira de Letras, 29 de agosto de 2019.

 

Ao Brasil falta muito, quase tudo, para ser o sonho intenso de que fala o nosso hino. Uma lista exaustiva das carências nos aproximaria do infinito. O problema maior, no entanto, não é a ausência de muitas coisas desejáveis. O pior é que nos privamos da única condição indispensável para um dia conquistar o que nos falta. Perdemos a esperança, isto é, a confiança de que o futuro nos trará remédio às agruras do presente, da mesma forma que antes o presente costumava superar problemas do passado. Vivemos um déficit agudo de esperança. E sem esperança, não existe possibilidade de construir o futuro.

O sentimento tem precedentes, geralmente em momentos de profunda desestabilização das instituições e das pessoas, como na súbita derrubada da monarquia. Joaquim Nabuco temia até o desmembramento do país ou a perda da noção de liberdade. O visconde de Taunay chegava a sentir “intensa vergonha de não ter morrido!” Silveira Martins comparava o Brasil ao que Diderot escrevera da civilização russa: “um fruto que apodrecera antes de amadurecer”. 

O regime de Pedro II que esses brasileiros confundiam com o melhor Brasil possível possuía aspectos respeitáveis. Era, contudo, um país de pouco mais de 14 milhões de habitantes, a maioria analfabeta, com expectativa de vida inferior a 30 anos, muitos recém-saídos da escravidão e abandonados à própria sorte. 

Houve depois outras fases de abatimento, mas a versão mais grave data de poucos anos atrás, de 2015/16, o instante em que começou a desfazer-se a ilusão de que o país tinha dado certo. Guardadas as proporções, o naufrágio da hegemonia do PT cumpre na história brasileira função análoga ao do colapso do comunismo no mundo. Para melhor explicar a afirmação, peço licença para transcrever na íntegra uma observação de Emmanuel Levinas sobre o sentido do fim do comunismo.

O jornal La Stampa lhe havia perguntado, pouco antes de sua morte em 1995, se pensava que esse acontecimento havia sido uma grande vitória para a democracia e o filósofo respondeu:

  “Não, penso que as democracias perderam e muito. Apesar de todos seus horrores, seus excessos, o comunismo havia sempre representado a esperança [...]de uma ordem social mais equitativa. Não é que os comunistas tivessem uma solução ou estivessem preparando uma, ao contrário. Existia, no entanto, a ideia de que a História possuía um sentido, uma direção e que viver não era insensato, absurdo. [...]. Não creio que haver perdido essa ideia para sempre seja uma grande conquista espiritual.[...]. Acreditávamos saber para onde ia a História e que valor dar ao tempo. Agora caminhamos sem rumo, perguntando-nos a cada instante: ‘que horas são?’ De maneira fatalista, um pouco como se faz o tempo todo na Rússia: ‘que horas são?’ Ninguém sabe a resposta.” 

Se trocarmos a palavra “comunismo” por “petismo”, impressiona como o trecho parece retratar o que sucedeu no Brasil. Excessos à parte, o PT também expressava a esperança de uma sociedade mais justa. Obviamente, além do PT, muitos brasileiros partilhavam a mesma aspiração. Foi o PT, porém, que teve a oportunidade de tentar em mais de 13 anos de governo aplicar inúmeras políticas públicas para reduzir a desigualdade, outra semelhança com o comunismo “real” e seus mais de 70 anos no poder.

Lula dava a sensação de encarnar uma notável transformação da sociedade. As medidas de transferência de renda, as quotas raciais, o acesso dos pobres ao ensino superior, prometiam um futuro de superação da desigualdade extrema herdada do passado. Sem base financeira adequada, as fórmulas petistas se tornaram insustentáveis. Algumas concorreram poderosamente para desencadear, primeiro a crise fiscal, em seguida o gravíssimo colapso que prostrou a economia até este momento.

A associação que se estabeleceu entre a ruína das contas públicas e o combate às injustiças sociais abalou as fundações da crença de que somos capazes de superar a desigualdade. Após os sucessos do Plano Real, do crescimento do governo Lula, da conquista do grau de investimento, a debacle da economia trouxe de volta aos brasileiros o efeito psicológico desmoralizante do fracasso. 

A isso se somou o trauma do impeachment de Dilma, da condenação e prisão de Lula, de seu alijamento da campanha eleitoral de 2018, gerando contestações sobre a legitimidade democrática do poder. O pouco que sobrava do prestígio das instituições políticas se viu, ao longo de três intermináveis anos, estremecido pelas revelações quase diárias de escândalos pela Lava Jato, ela mesmo ora em vias de desmoralização devido a excessos e erros próprios, assim como à reação defensiva de setores políticos. 

O Brasil jamais tinha passado por retrocesso tão destrutivo na vida das pessoas por meio do desemprego, do aumento da pobreza, do desalento. Nem experimentara nada equiparável ao profundo impacto depressivo dos escândalos de corrupção que destruíram a autoestima de todo um povo. Em conjunto, essas desgraças simultâneas produziram efeito equivalente ao da guerra sobre uma sociedade até então poupada de catástrofes históricas como derrotas e ocupações estrangeiras. 

Tenho usado os verbos no passado a fim de situar no tempo o momento em que ocorreram as causas da situação que vivemos. Esse nosso passado próximo, contudo, não acabou de passar, é ainda o nosso presente. Neste mesmo instante, ele continua a nos fazer sofrer na persistência da estagnação econômica, do desemprego, do retrocesso social, da barbárie das prisões, da corrupção, da destruição da Amazônia, da degradação dos homens que nos desgovernam. A mais angustiante crise de nossa História se prolonga como obra de demolição em pleno andamento, como um work in progress. Agravada pelo advento de um governo retrógrado cujo único programa reside na demolição sistemática do passado.  

Se a analogia com o contexto externo for correta, deve-se esperar, também por aqui, uma transição dolorosamente longa até que desponte período histórico diferente. No mundo, o sonho de uma sociedade mais justa acabou antes que no Brasil. Uma de suas primeiras expressões foi o ensaio do pensador e jornalista norte-americano William Pfaff por volta de 1995/1996, que partia da pergunta: “E se não houvesse nenhuma razão de pensar que o futuro será melhor que o presente, ou, pior ainda, melhor que o passado?”

Desde o Iluminismo, acreditava-se que a História se encaminhava a um futuro que, retrospectivamente, daria sentido ao passado. Essa bela confiança tinha se evaporado. 

  Profético, o ensaio de Pfaff antecedeu as calamidades que se sucederiam nos anos seguintes. A lista é interminável: o genocídio de Ruanda, os massacres da Bósnia, os atentados do Onze de Setembro, a eterna guerra do Afeganistão, a invasão do Iraque, a proliferação do terrorismo, a guerra civil da Síria, a anarquia na Líbia, as massas desesperadas de refugiados, a devastadora crise financeira de 2008, o aumento da  desigualdade, a conquista do poder nos EUA  pelo mais reacionário dos populismos. 

A passagem para um novo milênio se cumpriu sob o signo da tragédia que voltou a pautar a História. Ubíqua, a crise da democracia liberal se manifesta por todo lado. Cobrem já boa parte da população mundial os regimes antiliberais, anticientíficos, negadores da mudança climática, hostis às elites intelectuais, à tolerância da diversidade, ao respeito do outro em matéria sexual ou cultural. 

Dos quatro centros do poder mundial, três – os EUA de Trump, a China do presidente vitalício Xi, a Rússia do czar Putin – colocam o egoísmo nacional acima de uma ordem internacional baseada em leis, movida pela busca do consenso. O quarto, a União Europeia, último reduto da democracia liberal, do bem-estar social, da defesa do ambiente, sofre da desunião, do Brexit, do populismo de direita na Itália, Hungria, Polônia.

Os regimes atuais, quer o capitalismo ocidental, quer a versão estatizante chinesa, são incapazes de resolver os três maiores problemas humanos: o aquecimento global, o aumento da desigualdade, o desemprego estrutural agravado pelos robôs e a inteligência artificial. A possibilidade de que a mudança climática se torne irreversível traz de volta a ansiedade pela sobrevivência individual que se sentia no final da Antiguidade. 

Coroando tudo, os ocidentais perdem a confiança na própria cultura, atacada com prepotência pelos adversários do liberalismo e da democracia. Batidos pelos chineses na expansão rápida da economia, amanhã, quem sabe, na vanguarda das tecnologias de ponta, americanos, europeus, temem a emergência, pela primeira vez em quinhentos anos, de uma superpotência não-ocidental. 

Como será o mundo do futuro? Que valores refletirá a partir da influência do poder chinês? Até que ponto a ordem mundial continuará a se inspirar no Iluminismo, na Declaração dos Direitos do Homem, na democracia? É possível confiar na evolução de um regime como o chinês que confina centenas de milhares de uigures em campos de lavagem cerebral, que não tolera a diversidade de Hong Kong? 

É nesse nevoeiro espesso de incertezas que se esconde o horizonte do futuro. Não foi muito diferente, cem anos atrás, quando o Brasil se aproximava do primeiro centenário. O mundo saia da Grande Guerra destroçado nas estruturas e nas almas. Em 1919, negociava-se o Tratado de Versalhes, Paul Valéry escrevia “nós civilizações sabemos agora que somos mortais [...] sentimos que uma civilização tem a mesma fragilidade que uma vida”.  

Os tempos não eram melhores que os de hoje. Basta lembrar que o ano do centenário da independência coincidiu com a marcha de Mussolini sobre Roma, a primeira conquista de um país pelo fascismo. A década de 1920 se encerraria com o colapso da Bolsa de Nova York e a Grande Depressão. A seguinte assistiria ao sinistro triunfo do nazismo, ao estalinismo, ao estalar da Segunda Guerra Mundial com o cortejo de horrores que se seguiu: o Holocausto, os campos de extermínio, as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. 

Nada disso impediu o Brasil de avançar. Ao completar cem anos de vida independente, a sociedade brasileira deu balanço no passado, espantando-se com o déficit. No sugestivo estudo que dedicou ao centenário, A nação faz cem anos, a Professora Marly Silva da Motta mencionava o severo juízo de Capistrano de Abreu, ao concluir em 1907 seus Capítulos de história colonial. O legado de três séculos de colônia teria sido a pobreza intelectual, moral e material, a inexistência de vida social, a incapacidade organizativa. A monarquia escravocrata não havia sido capaz de superar tal herança em 67 anos de crescimento modorrento.

O debate intelectual, jornalístico, antes e depois do centenário, produziria, em 1924, a coletânea À margem da história da República. Seu organizador, Vicente Licínio Cardoso, afirmava que o desafio de sua geração consistia em empreender “nova Obra de construção, ou seja, fixar [...] o Pensamento e a Consciência da Nacionalidade Brasileira”, tudo com maiúsculas. Nas palavras de Marly Motta, “ser moderna, eis a aspiração da sociedade brasileira às vésperas do Centenário da Independência”, embora a autora advirta que os diferentes atores tinham concepções diferentes da modernidade.

A diversidade marca, de fato, as manifestações do centenário, que se inauguram, em fevereiro, com a Semana de Arte Moderna de São Paulo, seguindo-se a fundação do Partido Comunista do Brasil, a do Centro Dom Vital, núcleo do pensamento católico conservador, por Jackson de Figueiredo, o sacrifício heroico dos 18 do Forte de Copacabana, primeira manifestação pública do Tenentismo, a Exposição Internacional de setembro, e a instituição, no último dia do ano, do imposto de renda!

O carcomido sistema político da República Velha não soube captar os sinais de que a sociedade ansiava por mudanças profundas: a greve geral de 1917, a pulsação dos movimentos artísticos, a inconformidade das baixas patentes do Exército com as fraudes eleitorais. Mostrou-se assim incapaz de deter o processo de autodestruição que culminaria na Revolução de 30. 

 Nascido com a Primeira República em 1889, Vicente Licínio Cardoso manifestava a decepção dos contemporâneos com os 35 anos do regime em palavras que parecem expressar os nossos sentimentos em relação aos 34 anos da Nova República: “A grande e triste surpresa de nossa geração foi sentir que o Brasil retrogradou. Chegamos quase à maturidade na certeza de que já tínhamos vencido certas etapas [...]resolv(ido) de vez certos problemas essenciais. E a desilusão, a tragédia [...] foi sentir quanto de falso havia nessas suposições”  

  Apesar do igual desapontamento, há uma evidente diferença entre a efervescência de 1922 e a desesperança de hoje. O contraste talvez se deva à crueldade do choque recente por haver sido precedido da ilusão de que o Brasil era “a maior história de sucesso da América Latina”, como afirmou a revista Economist na edição da fatídica capa do Cristo Redentor decolando, em novembro de 2009. Sem a mesma frustração de um tempo melhor, os brasileiros de 22 só viam, ao olhar para trás, um passado de atraso, ignorância, insucesso. A própria crise do sistema político vinha de longe, tornara-se crônica. O governo de Epitácio, que terminava em 22, até se comparava com vantagem aos anteriores, embora a situação não tardasse em se agravar com o advento de Artur Bernardes.  

O confronto entre o primeiro e o segundo centenário põe em evidência o inédito da experiência corrente: a de que, em alguns aspectos importantes, nosso presente é pior que nosso passado. Não se trata do vulgar sentimento de que “a nuestro parescer, cualquier tiempo pasado fue mejor”, como dizia Jorge Manrique nas Coplas por la muerte de su padre.       

Quem negaria, por exemplo, que os tempos atuais são piores que os da modernização do Estado e industrialização dos anos 1930 a 1950, aos “50 anos em 5” de JK, aos da Política Externa Independente de Jânio e San Tiago Dantas, aos 16 anos de estabilidade, crescimento, conquistas sociais de FHC e Lula? Se essa avaliação for julgada subjetiva, existe um critério mensurável indiscutível: o do crescimento econômico. 

Segundo o professor Rogério Furquim Werneck, entre 1940 e 1980, a economia apresentou taxa média de crescimento de 7% ao ano, expansão rápida e estável, pois, em 40 anos, apenas em um, (1942), registrou-se queda do produto. O longo período de crescimento, comparável aos asiáticos, permitiu multiplicar o PIB real por quinze. Apesar da população haver triplicado no período, o produto por habitante cresceu mais de cinco vezes!

Compare-se agora com as quatro décadas seguintes, de acordo com os dados do estudo da Goldman Sachs (maio de 2019) intitulado: Brasil: duas décadas perdidas em 40 anos. Poderia o país perder meio século? Afirma o estudo que “nas quatro décadas entre 1981 e 2020, o crescimento real do PIB per capita quase certamente ficará em menos de 0,8% ao ano na média; nesse passo, levará 87 anos para dobrar a renda per capita [...] em duas das últimas quatro décadas, o Brasil experimentou declínio de crescimento real do PIB per capita: a de 1980 e provavelmente a de 2010 [...] a próxima década poderia também ser perdida, nesse caso, o Brasil teria perdido meio século”. 

Esta última frase parece ecoar as palavras do barão de Cotegipe ao barão de Penedo sobre a guerra do Paraguai: “Maldita guerra, atrasa-nos meio século!” Um fracasso de 50 anos é assustador! É preciso martelar esses dados a fim de combater a complacência e reconhecer que estamos diante do maior desastre de desempenho coletivo de nossa história recente! 

Temos de admitir que o nosso presente é, sob esses aspectos, muito pior do que certas fases do nosso passado. Existem, claro, luzes que se contrapõem às sombras. Estes 40 anos de altos e baixos coincidem com a consolidação da democracia. Sem arbítrio nem poderes especiais, a democracia encontrou soluções a problemas criados ou agravados pelos militares: a crise da dívida externa, a inflação explosiva, a destruição dos direitos humanos, a ruina do Estado de direito. 

Nesse período, em especial nos 20 anos entre 1995 e 2015, alcançou-se a maior redução relativa da pobreza e da indigência de nossa História. O plano Real criou uma moeda estável, institui-se o ministério da Defesa para subordinar os militares ao poder civil, atingiu-se a universalização do ensino fundamental, os estudantes das classes CDE no ensino superior saltaram de 87 mil a 2,1 milhões, lançaram-se as bases de um serviço de saúde universal. 

Os progressos são reais, o problema é que, depois de gerar tais resultados, o sistema político-econômico mostra sinais de esgotamento, produzindo rendimentos decrescentes. Ora, se a estagnação se perpetuar, muitas conquistas se revelarão insustentáveis a longo prazo. Foi o que sucedeu na Argentina, onde os progressos educacionais e sociais vêm sendo gradualmente erodidos pela crise quase permanente. O bicentenário da independência argentina em 2016 encontrou a nação pior do que cem anos antes, no primeiro centenário, quando era a quinta maior economia do mundo. O decadentismo, o declínio secular, que nos habituamos a atribuir a nossos vizinhos do rio da Prata é, na verdade, doença contagiosa que já transpôs nossas fronteiras. 

A exemplo de cem anos atrás, a aproximação do segundo centenário fornece estímulo para reagir à doença antes que se torne crônica. Em 22, esse papel pioneiro correspondeu, em primeiro lugar, à Semana de Arte Moderna. Um século depois, ultrapassado o debate de 22 sobre a modernidade e a questão da identidade nacional, o que nos cabe é identificar razões para confiar que o futuro será melhor que o presente e superior aos melhores momentos do passado. Precisamos de razões plausíveis para recuperar o que perdemos devido aos sucessivos fracassos: a confiança em nossa capacidade de influenciar o futuro, de dar-lhe um sentido humano. 

O ponto de partida terá de ser a renovação da cultura, da filosofia, da literatura, das artes, como na Semana de Arte Moderna, na geração espanhola de 1898 e na experiência de outros povos. De 1922, o que ficou na memória coletiva foi a Semana de Arte Moderna. É por referência a Mário de Andrade, a Oswald, a Bandeira, a Drummond, a Villa Lobos, aos que vieram depois, que nos definimos na consciência de uma identidade bem diferente da que prevalecia anteriormente.

No campo das ideias, os sinais não são encorajadores. A novidade, se é que cabe tal palavra, é a versão brasileira requentada de fenômeno mundial, a seita de extrema-direita que mistura ideólogos pós-fascistas com iluminados, astrólogos, apocalípticos e lunáticos de todo o gênero. Em política, a polarização e radicalização da sociedade se aproximam dos níveis da véspera do golpe militar de 64. Consolida-se um quadro perverso que lembra o italiano no período em que o Partido Comunista se mantinha como primeira força de oposição, atingia um terço do eleitorado, mas não lograva romper esse teto. Dizia-se então que a Itália não era um país normal como os demais da Europa Ocidental pois não existia possibilidade de uma alternância democrática, que equivaleria à chegada do comunismo ao poder.

    A eleição brasileira de 2018 ajusta-se a essa descrição. O padrão se reproduzirá por muito tempo se não se romper a polarização entre extrema direita e PT, com o medo empurrando os segmentos médios na direção da direita. Superar o medo requer algo parecido ao compromisso histórico que se frustrou na Itália, isto é, a aliança entre o centro socialmente progressista e a esquerda democraticamente renovada. 

A eficácia econômica, a responsabilidade financeira, que tomaram o lugar da luta contra a miséria depois do colapso da era Dilma não bastarão se não forem acompanhadas de vida melhor para os marginalizados. A paixão capaz de galvanizar a sociedade brasileira só pode vir da busca da maior igualdade possível. Uma população dividida por profunda desigualdade de condições jamais se empolgará por ideais liberais de competição, eficácia, meritocracia, produtividade. Necessárias para tornar sustentável a economia, essas qualidades precisam ser conciliadas com forte redistribuição da propriedade e da renda.   

Nos anos 20, o vácuo criado no debate público pelo fim do abolicionismo começava apenas a ser ocupado pela “questão social”, sob impacto das greves operárias, dos primeiros sindicatos, da agitação dos jornais e elementos anarco-sindicalistas. Dos 17,5 milhões de habitantes de 1900, rurais e analfabetos na sua maioria, a população atingiria cerca de 31 milhões no ano do centenário. A partir de então acelera-se a dupla explosão demográfica e urbana, hoje em grande parte concluída, até chegar aos atuais 209 milhões, 86% vivendo em cidades. 

O crescimento concentrou-se maciçamente nos pobres. Deu nascimento às favelas, às gigantescas periferias que circundam as cidades, mesmo as pequenas do interior. Nelas se desenvolve um ator social novo, de cultura original até na religiosidade carismática e na expressão política. Esse ator novo exige um lugar ao sol na vida política, na economia, na cultura. A história dos últimos cem anos se confunde com o esforço de integração da periferia, das resistências aos avanços, dos políticos e partidos que tentaram canalizar a luta ou se beneficiar dela, Vargas, PTB, Lula, PT.

Ninguém se iluda, o aparecimento de um novo ator social e político tem sempre efeito desestabilizador. Assim sucedeu na Europa da Revolução Industrial, com as revoluções de 1830, 1848, da Comuna de 1871. Entre nós e no resto da América Latina não será diferente: não haverá paz, estabilidade, retomada do desenvolvimento sem a integração progressiva do novo ator como cidadão, produtor, consumidor, agente de cultura. 

Urge por isso dobrar a página desta anomalia monstruosa produzida pelo medo na última eleição, reabrindo o caminho para devolver a esperança a todos os brasileiros, em especial aos que mais carecem dela. Depois desta hora do poder das trevas, impõe-se dar sentido à História, recuperar o sentimento de que a vida humana no Brasil não é absurda e insensata. 

Nesse esforço cabem à renovação da cultura e aos intelectuais um papel insubstituível. Trata-se, com efeito, como escrevia Marcuse em O Homem Unidimensional, de fazer com que os extremos se encontrem, isto é, que a consciência humana mais evoluída se ponha a serviço da força humana mais explorada. 

Não está escrito nas estrelas que o nosso futuro será melhor ou pior que o presente e o passado. Sem o consolo das certezas ilusórias, depende apenas de nós, de nossa ação consciente, que os próximos cem anos revertam o declínio, garantindo-nos um futuro melhor que o presente e superior ao passado. Devemos devolver ao Brasil não uma esperança qualquer, mas aquela de que afirmava Walter Benjamin: “É apenas por causa dos que não têm esperança que a esperança nos foi dada”. 

                                      São Paulo, 17 de agosto de 2019. 

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Antonio Risério sobre a ideologia identitária: palestra na ABL

Transcrevo, da página do Antonio Risério no Facebook, o texto de sua palestra na Academia Brasileira de Letras, em data recente. Por acaso, seu texto me recordou um antigo artigo que eu fiz em 2004, sobre os perigos da ideologia do afrobrasileirismo, como uma possível forma de Apartheid, este aqui: 

1322. “Rumo a um novo apartheid? Sobre a ideologia afro-brasileira”, Brasília, 29 ago. 2004, 11 p. Ensaio sobre a possibilidade de uma separação “mental” dos grupos raciais no Brasil, com base na promoção das diferenças entre a etnia negra e as demais. Publicado na revista Espaço Acadêmico (a. IV, n. 40, set. 2004). Postado em meu blog Diplomatizzando (2/09/2016; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/09/a-ideologia-do-afrobrasileirismo-base.html). Relação de Publicados n. 489.

Agora, o teor da palestra de Antonio Risério: 

MINHA INTERVENÇÃO/PARTICIPAÇÃO NO EVENTO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS:
Começo com três afirmações claras e diretas que não deixem a menor dúvida sobre o que penso a respeito do identitarismo, essa onda de absolutização de identidades grupais e de sacralização desses mesmos grupos, todos supostamente “oprimidos” pela civilização ocidental e a sociedade capitalista. 
A primeira: raras vezes, na história política e social recente do planeta, um movimento ocidental, partindo de causas fundamentalmente justas, terá se perdido e se pervertido tanto, pelos descaminhos da mentira, da fraude, da trapaça, da ignorância, da violência e do autoritarismo. 
A segunda, que nos toca ainda mais de perto: não teremos como construir um futuro coletivo comum com base no fragmentarismo, na guetificação, no neorracismo e no neossegregacionismo que caracterizam ostensivamente a práxis multicultural-identitarista, hoje ideologia dominante tanto no “establishment” político-acadêmico, quanto no “establishment” midiático-empresarial. Em tela, a negação da nação. Partindo de Hegel, o filósofo esloveno Slavoj Zizek vai ao ponto central. A identificação primária do sujeito é com a comunidade “orgânica” primordial em que nasceu. O sujeito supera este vínculo primário quando se identifica com uma comunidade maior, secundária, “artificial”, “universal”, que é a nação. A nação nasce, portanto, de uma nacionalização do étnico. E o que o multicultural-identitarismo propõe é o percurso inverso: a etnização do nacional. E o modelo aqui são os Estados Unidos, país que nasceu multicultural, onde o Estado-Nação é cada vez mais vivido como mero marco formal para a coexistência de uma multiplicidade de comunidades étnicas, sexuais, de estilo de vida, etc. Para não falar do Canadá, que, antes de ser uma nação, é uma espécie de condomínio, onde, se Québec obtiver a independência, aquilo provavelmente se desintegra. É neste sentido norte-americano que se pretende reordenar o Brasil. Do sociólogo marxista-uspiano Oracy Nogueira, que dizia que os negros deviam se conduzir aqui como uma nação-dentro-da-nação, ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que hoje diz que o Brasil não passa de uma ficção, um aglomerado de etnias e culturas forçadas a viver juntas, “sob o tacão do Estado”. Neste caso, o conceito de “etnia” teria efeito retroativo, obrigando o Brasil a se rearrumar como consórcio multiétnico – ou, na gíria identitarista já em voga hoje, como um “pluripaís”, do qual o “homem branco” pode muito bem ser eliminado (ou, concedamos, reduzido à insignificância). A terceira afirmação: há uns vinte anos atrás, quando lancei meu primeiro livro de crítica e de alerta a propósito do identitarismo, também o historiador carioca José Roberto Pinto de Góes, num pequeno artigo de jornal, avisava: “o Brasil pode vir a se tornar um país dividido entre negros e brancos, sim, trocando a valorização da mestiçagem pelo orgulho racial. Mas isso só poderá acontecer à custa de muita desinformação sobre o nosso passado”. E sobre o nosso presente, acrescento. A menos que os mestiços brasileiros, que formam a imensa maioria da população do país, se assumam como tais. O que é cada vez mais difícil. No começo deste século, o sociólogo identitarista Antonio Sérgio Guimarães dizia que, pelo simples fato de pretos serem socialmente estigmatizados, mestiços brasileiros jamais se diriam negros. Respondi na época que diriam, sim: desde que houvesse vantagens objetivas – emprego e renda, principalmente –, a “lei de Gerson” iria se impor. E é o que vemos hoje: com patrocínios do poder econômico privado e benesses do poder público, tudo quanto é mestiço corre para se declarar “negro”, passando a viver assim com uma identidade de empréstimo. Discurso induzido e reforçado pela mídia, quando vemos, em novelas da Globo, mestiços quase brancos fazerem discursos inflamados como “negros”. É a cooptação generalizada. Ser mestiço, hoje, não dá camisa a ninguém. O negócio é ser negão, mesmo que a pessoa não tenha uma só gota de sangue negro em suas veias.
Por vários motivos, penso que as coisas vão continuar seguindo esse rumo pelo menos por um bom tempo. Não só porque o identitarismo acha que tem a verdade absoluta, que todos devem se ajoelhar diante de seus dogmas, que é portador do destino histórico da humanidade, como faz uma combinação terrível de ignorância e sectarismo. É um movimento semiletrado, ou produto da “ignorância credenciada”, que é a ignorância que ostenta crachás de pós-graduação, e se mostra absolutamente impermeável ao diálogo, ao debate público. Sim: a postura identitarista, diante de qualquer crítica, é forçar o crítico ao silêncio. É procurar desqualificá-lo, atacá-lo como machista ou supremacista branco, acusá-lo de lutar apenas por seus próprios interesses e privilégios. Afinal, o identitarismo tem a maquete da sociedade perfeita nas mãos e não vai perder tempo discutindo o assunto com quem pensa diferente. Quem pensa diferente, na verdade, sofre de algum insuperável déficit moral e é inimigo da felicidade humana. E o argumento é então substituído pelo insulto, o debate cede lugar a um neomacartismo, com seus cancelamentos e linchamentos virtuais, quando milícias militantes silenciam todo e qualquer dissenso, perseguindo, destruindo reputações e carreiras, etc. Ao lado disso, eles dispõem de um leque de expedientes igualmente ditatoriais, ferramentas de combate disfarçadas de conceitos, todos devidamente copiados da matriz estadunidense e aqui apresentados como coisas originais, a exemplo de “lugar de fala”, “racismo estrutural”, “outras epistemologias”, “apropriação cultural”. Recuso tudo isso, assentando sempre minha posição em solo histórico e socioantropológico e, politicamente, no campo da esquerda democrática, hoje superminoritária, praticamente asfixiada pelo identitarismo hegemônico e acusada de “fazer o jogo da direita”, como nos velhos tempos do stalinismo. Mas o combate é difícil porque hoje, de fato, vivemos, nesse campo, sob a ditadura do pensamento único, principalmente depois que o discurso inicialmente contestador das minorias foi abraçado pelas classes dominantes e dirigentes, entre cujas frações devemos incluir a elite midiática. De modo que há tempos, nos Estados Unidos, e mais recentemente no Brasil, o identitarismo é o discurso do poder (como se vê hoje no novo governo lulopetista), o discurso da burguesia (do Itaú-Unibanco, do Magazine Luíza, da Natura), o discurso da grande mídia, capitaneada pela Rede Globo e pela “Folha de S. Paulo”. Enfim, o identitarismo é o novo cânone. O filósofo Sérgio Paulo Rouanet já na década de 1990 denunciava a projeção do fascismo no identitarismo, e dizia que o discurso contestador era, já naquele final do século passado, o discurso do poder. Era, em suas palavras, “um movimento perfeitamente oficial, com credenciais de segurança em ordem, com carteira de identidade regularmente emitida pelos canais competentes”, embora ainda se considerasse “marginal”, alimentando “a ilusão esplêndida de ser um rebelde contra a ordem constituída”. E Rouanet fazia então a comparação desmoralizante: “Criticar a estética parnasiana era uma posição polêmica em 1922, mas se escutássemos alguém vociferando hoje contra o alexandrino, não teríamos a impressão de estar diante de um rebelde, e sim diante de um retardado mental”. No Brasil, esse discurso começou a tomar assento no aparelho estatal já no governo Sarney. Ampliou seus espaços, consideravelmente, nas gestões de Fernando Henrique Cardoso. Hoje, está na linha de frente do lulopetismo, do Itaú e da Globo. E conseguiu essa proeza porque jogou na lata de lixo o marxismo clássico e qualquer atenção sociológica para a existência de classes sociais. Com a abolição ideológica das classes sociais e, logo, do antagonismo entre burguesia e proletariado, e mesmo com a colocação em plano secundário das desigualdades sociais, tudo ficou mais fácil. Como vimos numa novela da Globo, uma personagem nascida numa família multimilionária pode ser vista, antes de tudo, como uma pessoa oprimida, pelo fato de ser “trans”. E esta ditadura do pensamento único se desdobra ainda em ditadura linguística. O identitarismo quer forçar (por lei, inclusive) que toda a sociedade fale como ele acha que ela tem de falar. E é também ele que determina o sentido, a semântica das palavras, como o Humpty Dumpty de Lewis Carroll em Through the Looking-Glass. Certo está o filósofo francês Adrien Louis: temos de contestar esta tentativa absurda de querer impor à sociedade uma determinada instrumentalização ideológica da língua. Ignorante e puritana, ainda por cima. Ou seja: o que está em questão, em primeira e última análise, é a liberdade do espírito. Porque o que o identitarismo pretende é sacrificar a palavra livre, “em proveito de um pensamento constantemente monitorado, vigiado”.
Como o ambiente brasileiro é predominantemente semiletrado e tardo-colonizado, copia-se aqui o que se elabora na matriz norte-americana. Assim é que, também entre nós, enquanto o identitarismo “sexual” se abre numa cornucópia de vertentes e nuances, o identitarismo racial se fecha a todas as gradações, como se fôssemos um povo marcado, desde sempre, pela pureza racial. Enquanto o identitarismo “sexual” amplia o leque naquele seu somatório de letrinhas, lbtg-etc.-etc., o identitarismo racial, trazendo para cá a fantasia racista norte-americana, reduz o Brasil a um estatuto de nação bicolor, como se fôssemos um povo nitidamente dividido entre pretos, de um lado, e brancos, de outro. Como se não existissem amarelos entre nós. E pior: como se não existissem mestiços no país. Sim. De uns tempos para cá, salvo as meritórias exceções de praxe, a palavra “mestiço” sumiu do mapa. Desapareceu das salas de aula e de seminários acadêmicos, dos discursos das elites midiática e empresarial, das páginas de jornais, revistas e livros de história, antropologia, sociologia, estética e política que falam do Brasil e das coisas brasileiras. O que significa, muito simplesmente, que os pretensos cronistas, repórteres, estudiosos e “intérpretes” do nosso país há tempo não olham para ele, para as pessoas que circulam em nossos espaços públicos e domésticos, nem para si mesmos. Falam do Brasil como se estivessem falando de outro lugar, desde que, por uma imposição ideológico-empresarial norte-americana, decidiram fechar os olhos à história biológica, social e cultural de nossa gente. Porque é impossível, sob pena de falsificação grosseira, tratar da configuração histórico-social do Brasil sem tratar da mestiçagem. Da grande mestiçagem popular brasileira, ocorrendo inicialmente em nossos primeiros pousos e ranchos, trilhas, feitorias, acampamentos, comunidades pesqueiras, fazendas de gado, plantações de cana ou de fumo, aldeias, póvoas, paróquias nascidas na esteira dos engenhos, quilombos e vilas coloniais. O Brasil é produto de um processo intenso e contínuo de contatos e trocas físicos e culturais. De escambos biológicos e simbólicos. Esta é a nossa realidade biossociocultural. Quem fechar os olhos para isso, não estará falando do Brasil. Com todas as assimetrias e crueldades que marcaram a construção histórica do país, nossas formas de viver, criar, produzir, amar, falar, cantar e pensar são indissociáveis das nossas mestiçagens. No meu livro mais recente, que está para ser lançado ainda este mês, MESTIÇAGEM, IDENTIDADE E LIBERDADE, digo justamente isso: que, a essa altura de nossa história como povo e nação, alguém ainda se sinta na obrigação de reafirmar publicamente que o Brasil é um país mestiço, é a prova mais ostensiva e escandalosa do quanto andamos alienados com relação a nós mesmos. Diante de tudo isso, penso que a solicitação, que hoje se deve fazer a brasileiros e brasileiras, é a seguinte: por favor, se olhem no espelho.