O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Antonio Risério. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Antonio Risério. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Identidade e Identitarismo - Edmar Bacha, Eduardo Gianetti e Antonio Risério(Academia Brasileira de Letras)


Identidade e Identitarismo

Academia Brasileira de Letras, 14/06/2023

Sob a coordenação de Edmar Bacha, com a participação de Eduardo Gianetti e Antonio Risério.

https://www.youtube.com/watch?v=RpIXowLAgxs

Identidade e Identitarismo" foi o tema do debate dessa semana do ciclo “Ponto e Contraponto – discursos em tensão”, que ocupará o Teatro R. Magalhães Jr. durante o mês de junho. O Acadêmico Eduardo Giannetti e o antropólogo Antonio Riserio, que participou de forma online, discutiram, entre outros temas ligados ao assunto, a fronteira entre identidade e identitarismo. 


segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Antonio Risério entrevista Demétrio Magnoli e Luiz Mott - o começo de uma série...

Antonio Risério entrevista Demétrio Magnoli

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Antonio Risério sobre a ideologia identitária: palestra na ABL

Transcrevo, da página do Antonio Risério no Facebook, o texto de sua palestra na Academia Brasileira de Letras, em data recente. Por acaso, seu texto me recordou um antigo artigo que eu fiz em 2004, sobre os perigos da ideologia do afrobrasileirismo, como uma possível forma de Apartheid, este aqui: 

1322. “Rumo a um novo apartheid? Sobre a ideologia afro-brasileira”, Brasília, 29 ago. 2004, 11 p. Ensaio sobre a possibilidade de uma separação “mental” dos grupos raciais no Brasil, com base na promoção das diferenças entre a etnia negra e as demais. Publicado na revista Espaço Acadêmico (a. IV, n. 40, set. 2004). Postado em meu blog Diplomatizzando (2/09/2016; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/09/a-ideologia-do-afrobrasileirismo-base.html). Relação de Publicados n. 489.

Agora, o teor da palestra de Antonio Risério: 

MINHA INTERVENÇÃO/PARTICIPAÇÃO NO EVENTO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS:
Começo com três afirmações claras e diretas que não deixem a menor dúvida sobre o que penso a respeito do identitarismo, essa onda de absolutização de identidades grupais e de sacralização desses mesmos grupos, todos supostamente “oprimidos” pela civilização ocidental e a sociedade capitalista. 
A primeira: raras vezes, na história política e social recente do planeta, um movimento ocidental, partindo de causas fundamentalmente justas, terá se perdido e se pervertido tanto, pelos descaminhos da mentira, da fraude, da trapaça, da ignorância, da violência e do autoritarismo. 
A segunda, que nos toca ainda mais de perto: não teremos como construir um futuro coletivo comum com base no fragmentarismo, na guetificação, no neorracismo e no neossegregacionismo que caracterizam ostensivamente a práxis multicultural-identitarista, hoje ideologia dominante tanto no “establishment” político-acadêmico, quanto no “establishment” midiático-empresarial. Em tela, a negação da nação. Partindo de Hegel, o filósofo esloveno Slavoj Zizek vai ao ponto central. A identificação primária do sujeito é com a comunidade “orgânica” primordial em que nasceu. O sujeito supera este vínculo primário quando se identifica com uma comunidade maior, secundária, “artificial”, “universal”, que é a nação. A nação nasce, portanto, de uma nacionalização do étnico. E o que o multicultural-identitarismo propõe é o percurso inverso: a etnização do nacional. E o modelo aqui são os Estados Unidos, país que nasceu multicultural, onde o Estado-Nação é cada vez mais vivido como mero marco formal para a coexistência de uma multiplicidade de comunidades étnicas, sexuais, de estilo de vida, etc. Para não falar do Canadá, que, antes de ser uma nação, é uma espécie de condomínio, onde, se Québec obtiver a independência, aquilo provavelmente se desintegra. É neste sentido norte-americano que se pretende reordenar o Brasil. Do sociólogo marxista-uspiano Oracy Nogueira, que dizia que os negros deviam se conduzir aqui como uma nação-dentro-da-nação, ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que hoje diz que o Brasil não passa de uma ficção, um aglomerado de etnias e culturas forçadas a viver juntas, “sob o tacão do Estado”. Neste caso, o conceito de “etnia” teria efeito retroativo, obrigando o Brasil a se rearrumar como consórcio multiétnico – ou, na gíria identitarista já em voga hoje, como um “pluripaís”, do qual o “homem branco” pode muito bem ser eliminado (ou, concedamos, reduzido à insignificância). A terceira afirmação: há uns vinte anos atrás, quando lancei meu primeiro livro de crítica e de alerta a propósito do identitarismo, também o historiador carioca José Roberto Pinto de Góes, num pequeno artigo de jornal, avisava: “o Brasil pode vir a se tornar um país dividido entre negros e brancos, sim, trocando a valorização da mestiçagem pelo orgulho racial. Mas isso só poderá acontecer à custa de muita desinformação sobre o nosso passado”. E sobre o nosso presente, acrescento. A menos que os mestiços brasileiros, que formam a imensa maioria da população do país, se assumam como tais. O que é cada vez mais difícil. No começo deste século, o sociólogo identitarista Antonio Sérgio Guimarães dizia que, pelo simples fato de pretos serem socialmente estigmatizados, mestiços brasileiros jamais se diriam negros. Respondi na época que diriam, sim: desde que houvesse vantagens objetivas – emprego e renda, principalmente –, a “lei de Gerson” iria se impor. E é o que vemos hoje: com patrocínios do poder econômico privado e benesses do poder público, tudo quanto é mestiço corre para se declarar “negro”, passando a viver assim com uma identidade de empréstimo. Discurso induzido e reforçado pela mídia, quando vemos, em novelas da Globo, mestiços quase brancos fazerem discursos inflamados como “negros”. É a cooptação generalizada. Ser mestiço, hoje, não dá camisa a ninguém. O negócio é ser negão, mesmo que a pessoa não tenha uma só gota de sangue negro em suas veias.
Por vários motivos, penso que as coisas vão continuar seguindo esse rumo pelo menos por um bom tempo. Não só porque o identitarismo acha que tem a verdade absoluta, que todos devem se ajoelhar diante de seus dogmas, que é portador do destino histórico da humanidade, como faz uma combinação terrível de ignorância e sectarismo. É um movimento semiletrado, ou produto da “ignorância credenciada”, que é a ignorância que ostenta crachás de pós-graduação, e se mostra absolutamente impermeável ao diálogo, ao debate público. Sim: a postura identitarista, diante de qualquer crítica, é forçar o crítico ao silêncio. É procurar desqualificá-lo, atacá-lo como machista ou supremacista branco, acusá-lo de lutar apenas por seus próprios interesses e privilégios. Afinal, o identitarismo tem a maquete da sociedade perfeita nas mãos e não vai perder tempo discutindo o assunto com quem pensa diferente. Quem pensa diferente, na verdade, sofre de algum insuperável déficit moral e é inimigo da felicidade humana. E o argumento é então substituído pelo insulto, o debate cede lugar a um neomacartismo, com seus cancelamentos e linchamentos virtuais, quando milícias militantes silenciam todo e qualquer dissenso, perseguindo, destruindo reputações e carreiras, etc. Ao lado disso, eles dispõem de um leque de expedientes igualmente ditatoriais, ferramentas de combate disfarçadas de conceitos, todos devidamente copiados da matriz estadunidense e aqui apresentados como coisas originais, a exemplo de “lugar de fala”, “racismo estrutural”, “outras epistemologias”, “apropriação cultural”. Recuso tudo isso, assentando sempre minha posição em solo histórico e socioantropológico e, politicamente, no campo da esquerda democrática, hoje superminoritária, praticamente asfixiada pelo identitarismo hegemônico e acusada de “fazer o jogo da direita”, como nos velhos tempos do stalinismo. Mas o combate é difícil porque hoje, de fato, vivemos, nesse campo, sob a ditadura do pensamento único, principalmente depois que o discurso inicialmente contestador das minorias foi abraçado pelas classes dominantes e dirigentes, entre cujas frações devemos incluir a elite midiática. De modo que há tempos, nos Estados Unidos, e mais recentemente no Brasil, o identitarismo é o discurso do poder (como se vê hoje no novo governo lulopetista), o discurso da burguesia (do Itaú-Unibanco, do Magazine Luíza, da Natura), o discurso da grande mídia, capitaneada pela Rede Globo e pela “Folha de S. Paulo”. Enfim, o identitarismo é o novo cânone. O filósofo Sérgio Paulo Rouanet já na década de 1990 denunciava a projeção do fascismo no identitarismo, e dizia que o discurso contestador era, já naquele final do século passado, o discurso do poder. Era, em suas palavras, “um movimento perfeitamente oficial, com credenciais de segurança em ordem, com carteira de identidade regularmente emitida pelos canais competentes”, embora ainda se considerasse “marginal”, alimentando “a ilusão esplêndida de ser um rebelde contra a ordem constituída”. E Rouanet fazia então a comparação desmoralizante: “Criticar a estética parnasiana era uma posição polêmica em 1922, mas se escutássemos alguém vociferando hoje contra o alexandrino, não teríamos a impressão de estar diante de um rebelde, e sim diante de um retardado mental”. No Brasil, esse discurso começou a tomar assento no aparelho estatal já no governo Sarney. Ampliou seus espaços, consideravelmente, nas gestões de Fernando Henrique Cardoso. Hoje, está na linha de frente do lulopetismo, do Itaú e da Globo. E conseguiu essa proeza porque jogou na lata de lixo o marxismo clássico e qualquer atenção sociológica para a existência de classes sociais. Com a abolição ideológica das classes sociais e, logo, do antagonismo entre burguesia e proletariado, e mesmo com a colocação em plano secundário das desigualdades sociais, tudo ficou mais fácil. Como vimos numa novela da Globo, uma personagem nascida numa família multimilionária pode ser vista, antes de tudo, como uma pessoa oprimida, pelo fato de ser “trans”. E esta ditadura do pensamento único se desdobra ainda em ditadura linguística. O identitarismo quer forçar (por lei, inclusive) que toda a sociedade fale como ele acha que ela tem de falar. E é também ele que determina o sentido, a semântica das palavras, como o Humpty Dumpty de Lewis Carroll em Through the Looking-Glass. Certo está o filósofo francês Adrien Louis: temos de contestar esta tentativa absurda de querer impor à sociedade uma determinada instrumentalização ideológica da língua. Ignorante e puritana, ainda por cima. Ou seja: o que está em questão, em primeira e última análise, é a liberdade do espírito. Porque o que o identitarismo pretende é sacrificar a palavra livre, “em proveito de um pensamento constantemente monitorado, vigiado”.
Como o ambiente brasileiro é predominantemente semiletrado e tardo-colonizado, copia-se aqui o que se elabora na matriz norte-americana. Assim é que, também entre nós, enquanto o identitarismo “sexual” se abre numa cornucópia de vertentes e nuances, o identitarismo racial se fecha a todas as gradações, como se fôssemos um povo marcado, desde sempre, pela pureza racial. Enquanto o identitarismo “sexual” amplia o leque naquele seu somatório de letrinhas, lbtg-etc.-etc., o identitarismo racial, trazendo para cá a fantasia racista norte-americana, reduz o Brasil a um estatuto de nação bicolor, como se fôssemos um povo nitidamente dividido entre pretos, de um lado, e brancos, de outro. Como se não existissem amarelos entre nós. E pior: como se não existissem mestiços no país. Sim. De uns tempos para cá, salvo as meritórias exceções de praxe, a palavra “mestiço” sumiu do mapa. Desapareceu das salas de aula e de seminários acadêmicos, dos discursos das elites midiática e empresarial, das páginas de jornais, revistas e livros de história, antropologia, sociologia, estética e política que falam do Brasil e das coisas brasileiras. O que significa, muito simplesmente, que os pretensos cronistas, repórteres, estudiosos e “intérpretes” do nosso país há tempo não olham para ele, para as pessoas que circulam em nossos espaços públicos e domésticos, nem para si mesmos. Falam do Brasil como se estivessem falando de outro lugar, desde que, por uma imposição ideológico-empresarial norte-americana, decidiram fechar os olhos à história biológica, social e cultural de nossa gente. Porque é impossível, sob pena de falsificação grosseira, tratar da configuração histórico-social do Brasil sem tratar da mestiçagem. Da grande mestiçagem popular brasileira, ocorrendo inicialmente em nossos primeiros pousos e ranchos, trilhas, feitorias, acampamentos, comunidades pesqueiras, fazendas de gado, plantações de cana ou de fumo, aldeias, póvoas, paróquias nascidas na esteira dos engenhos, quilombos e vilas coloniais. O Brasil é produto de um processo intenso e contínuo de contatos e trocas físicos e culturais. De escambos biológicos e simbólicos. Esta é a nossa realidade biossociocultural. Quem fechar os olhos para isso, não estará falando do Brasil. Com todas as assimetrias e crueldades que marcaram a construção histórica do país, nossas formas de viver, criar, produzir, amar, falar, cantar e pensar são indissociáveis das nossas mestiçagens. No meu livro mais recente, que está para ser lançado ainda este mês, MESTIÇAGEM, IDENTIDADE E LIBERDADE, digo justamente isso: que, a essa altura de nossa história como povo e nação, alguém ainda se sinta na obrigação de reafirmar publicamente que o Brasil é um país mestiço, é a prova mais ostensiva e escandalosa do quanto andamos alienados com relação a nós mesmos. Diante de tudo isso, penso que a solicitação, que hoje se deve fazer a brasileiros e brasileiras, é a seguinte: por favor, se olhem no espelho.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Antonio Riserio: entrevista sobre o seu livro sobre a fantasia fascista da esquerda identitária

Grato a Hugo Rogelio Suppo pelo envio desta entrevista.
Paulo Roberto de Almeida

ENTREVISTA A LUCIANO TRIGO A PARTIR DO MEU LIVRO “SOBRE O RELATIVISMO PÓS-MODERNO E A FANTASIA FASCISTA DA ESQUERDA IDENTITÁRIA”.
P: Você faz uma analogia entre as patrulhas ideológicas dos anos 70 e o que chama de comportamento fascista da esquerda identitária dos dias atuais. O que aproxima e o que diferencia os dois fenômenos?

R: Penso que há duas diferenças básicas: a diferença mental e a diferença comportamental. A diferença mental diz respeito ao seguinte: apesar do sectarismo e da estreiteza política e cultural, aqueles esquerdistas das patrulhas ideológicas ainda tinham uma visão de conjunto da sociedade que pretendiam mudar. Hoje, não: os identitários não têm uma percepção global da sociedade. Só sabem ver baias, guetos, nichos, escaninhos. Perderam a percepção da totalidade. Pensam e operam de forma fragmentária, canonizando seus próprios guetos. Suas reivindicações não levam em conta a população brasileira, mas apenas os desejos e interesses deles mesmos. Por exemplo: os neonegros se conduzem como se o problema do desemprego não fosse social, mas étnico; as neofeministas, por sua vez, se conduzem como se todo problema trabalhista fosse sexual. Não estão nem aí para o fato de o desemprego ser um problema geral da população brasileira. Já no plano comportamental, a diferença está no grau de violência. O grau de violência das patrulhas ideológicas era relativamente baixo. Mas as milícias identitárias são brutais, truculentas. O que aproxima as antigas patrulhas e as atuais milícias é a intolerância. Com a diferença de que os identitários levam essa intolerância ao extremo. Se tivessem poder, promoveriam banimentos e fuzilamentos. Digamos, por assim dizer, que as patrulhas eram fascistoides, ao passo que os identitários são fascistas de cabo a rabo, fascistas totais.

P: Você escreve que a esquerda identitária se sente moralmente superior aos mortais comuns, mas também que ela promove a "politização do ressentimento". De que forma essa esquerda capitaliza o ressentimento de determinados grupos?

R: Eles se veem como a própria encarnação do Bem. Comportam-se como se o “oprimido” fosse, apenas por ser “oprimido”, um ente sagrado, moralmente superior. Mais: o “oprimido”, só por ser “oprimido”, é o portador da verdade, do sentido e do destino histórico da humanidade. Ora, quem se vê assim, não tem o que aprender no mundo. Daí que a esta autoconsagração se alie a mais rude ignorância – ignorância filosófica, histórica, estética, política, cultural. O militante identitário, regra geral, é um obtuso, incapaz de enxergar um palmo além do seu nariz ou do seu quintal. Daí que, quando questionados mais seriamente, reajam não com argumentos, mas com xingamentos e ataques histéricos, acusando quem os questiona de canalha, desonesto, fascista, machista, escória moral da espécie humana, etc. Ou seja: não estão interessados em nenhum conversa; trata-se apenas de calar e asfixiar qualquer discordância, qualquer dissenso, qualquer dissidência. E fazem isso reunidos em bandos, em “coletivos” que, na verdade, não passam de milícias. E o mais curioso é que adotam essa postura moral justamente para atropelar raivosamente os mais elementares princípios éticos. Veja então qual é a estratégia discursiva do identitário: a afirmação de “status” através da afirmação da inferioridade social. É a sua autodefinição como “excluído” ou “oprimido”que lhe confere “status”. Ou seja: a autovitimização é um atalho para a autonobilitação na figura sofrida e heroica do “oprimido”, que agora veio cobrar a conta do “Ocidente Branco”. Até parece coisa de desenho animado. De certa forma, havia algo disso já na esquerda tradicional, num certo endeusamento do proletariado, contrariando, nesse caso, a visão do próprio Marx (em “A Ideologia Alemã”, por exemplo) ou mesmo a de Trótski, em “Literatura e Revolução”. A diferença é que a esquerda tradicional endeusava o proletariado, enquanto os identitários endeusam-se a si próprios.

P: A destruição de reputações com base em acusações levianas de racismo, homofobia ou misoginia vem se tornando um fenômeno frequente e assustador. A que interesses atendem as pessoas que se unem nas redes sociais para destruir o outro, sem medir consequências, em um verdadeiro tribunal inquisitorial? Não é paradoxal que essa prática venha ancorada em um discurso de defesa da tolerância?

R: Vamos caminhar com vagar. Os identitários acham que são donos absolutos da verdade, que são moralmente superiores ao resto da espécie humana e querem dominar o mundo. Ora, quando uma pessoa é capaz de chegar ao ponto de se convencer de uma coisa dessas, ela se converte em fanática. É isso o que está acontecendo à nossa volta, e já há algum tempo, com nossos políticos, artistas, intelectuais, salvo exceções realmente honrosas, apoiando ou fazendo vista grossa para o fato E o fanatismo se guia por uma perversão lógica tão insustentável quanto inflexível, tão patológica quanto implacável. Acha que vale tudo. Que tudo é legítimo para impor o “bem” e destruir o “mal”. É uma postura imediatamente comparável à dos evangélicos combatendo o candomblé. E é por isso mesmo que os identitários não demonstram a mínima hesitação em falsificar a história, em desprezar a realidade factual, em investir violenta e mentirosamente sobre quem não concorda com eles. Podemos listar facilmente exemplos de cada uma dessas coisas. Veja-se como os racialistas neonegros fecham os olhos para o fato dos negros de Palmares e dos negros malês terem sido escravistas. Fecham os olhos para o fato de que, no sistema escravista brasileiro, até escravos compravam escravos. Do mesmo modo, as neofeministas se concentram exclusivamente no ataque a um Ocidente que não mais existe: um Ocidente “patriarcal”. E não dizem nada sobre o resto do mundo: fecham os olhos para a barra pesada que as mulheres sofrem sob a opressão islâmica; fecham os olhos para a prática da extração do clitóris em culturas tradicionais africanas; fecham os olhos para a cruel dominação masculina sobre as mulheres que vemos no mundo indiano e mesmo ainda no mundo chinês. E assim por diante. É por isso mesmo que Camile Paglia diz que os identitários deveriam ser obrigados a ter cursos de história comparada – e também, acrescento, de antropologia e sociologia de sociedades e culturas extraocidentais. Se tivessem um mínimo de noção disso, saberiam que a escravidão não é um karma branco, mas um karma da humanidade. Assim como não dariam atestados de estupidez ao considerar que hoje a mulher é mais oprimida no Ocidente do que em sociedades muçulmanas, por exemplo. Mesmo em nossa antiga sociedade tupinambá, onde desfrutavam temporariamente de alguma liberdade sexual, as mulheres eram mercadoria, moedas de troca, dadas de presente a chefes e guerreiros – e, enquanto um homem podia ter várias mulheres, a mulher que cometesse adultério podia ser punida com a morte. Como os identitários se recusam a ver essas coisas, agridem e execram quem quer que chame a atenção para elas. Na verdade, para lembrar aquele slogam da polícia novaiorquina, a política deles é de “tolerância zero”.

P: Por medo, covardia ou complacência, são raríssimos os intelectuais que ousam criticar a perseguição promovida por essas novas milícias, na universidade e fora dela. Como romper essa espiral de silêncio?

AR: O silêncio e a covardia dos políticos são atestados de cinismo, evidentemente, mas também é até mais compreensível do que o silêncio e a covardia dos intelectuais, já que o cinismo é uma das peças principais da “caixa de mágica” deles. Os intelectuais, ao contrário e ao menos em princípio, deveriam se manifestar com clareza contra o fascismo identitário e suas ações persecutórias. Mas essa história do “em princípio” dificilmente é confirmada pelos fatos. Renato Janine Ribeiro e outros intelectuais “de esquerda” falaram do fascismo de direita tentando impedir e impedindo pessoas críticas ao atual governo de falarem em feiras literárias como a de Paraty, que hoje mais sugerem arraiais juninos do identitarismo. Mas eles silenciam quando a mesma coisa é feita pela esquerda. E olha que a esquerda identitária começou a fazer isso bem antes, entre nós. Já em 2013, na feira literária de Cachoeira do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, não deixaram o geógrafo Demétrio Magnoli falar, atirando inclusive uma cabeça de porco ensanguentada em direção à mesa de onde ele falaria e praticamente o expulsando da cidade. É hilário, mas, apesar de Stálin-Mao Zedong-Pol Pot, a esquerda encena a farsa de que se acha imune ao fascismo. É muito cinismo, também. Quando ouço ou vejo essas coisas, não resisto e acabo lembrando a seguinte história. Em 1932, na Alemanha, Adolf Hitler lançou sua candidatura a chanceler. Em oposição a ele, a chamada “coalizão de Weimar” (reunindo sociais democratas, católicos e liberais) apoiou a tentativa de reeleição do marechal Hindenburg. E os comunistas lançaram candidato próprio. A parada ficou para ser decidida então no segundo turno, entre Hitler e Hindenburg. Neste segundo turno, os comunistas votaram maciçamente em Hitler. Adiante, como sempre me lembra um amigo, o Pacto Molotov-Ribentrop consagrou o parentesco entre os dois totalitarismos... No meu livro, digo que os stalinistas que levaram Maiakóvski ao suicídio são monstruosamente idênticos aos nazistas que levaram Benjamin ao suicídio. E ponto final. Agora, como romper a “espiral do silêncio”? Entrando em campo com clareza e firmeza, sem abrir mão dos fatos, sem temor, botando os pingos nos ii. Não se faz isso porque, ao contrário do que nossos professores querem nos fazer crer, a covardia intelectual é coisa mais do que comum, coisa rotineira mesmo, no dia a dia do ambiente acadêmico.

P: Você não tem receio de se tornar vítima de um linchamento por parte daqueles que detêm o virtual monopólio da fala na academia? Em outras palavras, não teme se tornar mais um alvo do fenômeno que seu livro denuncia?

R: Não, não tenho medo de nada. E essa gente já me xinga de todo jeito, sempre que tem oportunidade. Me chamam de canalha, fascista, racista, etc. Eles fazem de tudo para me intimidar, me silenciar. Na Bahia, onde moro, não só os identitários, o PT me cerca, me ameaça, me fecha todas as portas, complicando muito, inclusive, minha sobrevivência material. Cheguei a ser colunista de um jornal lá e o governo petista, que controla tudo na província com os mesmos métodos de Antonio Carlos Magalhães, exigiu minha demissão. Deixei de escrever no jornal, na imprensa local. Mas não adianta. Não vou parar de pensar, nem de dizer o que penso. No meu doce exílio na Ilha de Itaparica, sob os signos de José de Anchieta e do meu amigo João Ubaldo Ribeiro, montei uma plataforma de lançamento de mísseis político-culturais. E não vou parar de lançá-los. Esta é, na verdade, minha principal diferença com meu amigo Francisco Bosco, autor de “A Vítima Tem Sempre Razão?”. Bosco, no fundo, tem um pé plantado fundo no identitarismo. Parece mesmo acreditar na legitimidade intelectual e política do binarismo maniqueísta. Quer convencer identitários e trazê-los a outro aprisco, num horizonte mais moderado. É uma coisa de aparar arestas e promover a conciliação. Não acredito nisso. Não acredito que seja possível reconverter fanático. E não escrevo com essa intenção. Eles são irrecuperáveis. Logo, vou para a guerra. Não escrevo para eles, mas para o conjunto da sociedade, que é onde eles podem ser derrotados.

P: Você afirma que o sistema educacional brasileiro se tornou uma fábrica de ignorância. Por quê?

R: É uma constatação. Só. Antigamente, a gente dizia que era preciso ensinar os analfabetos a ler e escrever. Hoje, podemos dizer que é preciso ensinar os universitários (e professores universitários) a ler e escrever. É tão simples assim.

P: Você acredita que artistas de esquerda foram cooptados por um projeto de poder em troca da dependência crescente de recursos públicos? Fale sobre isso. Você concorda com a frase de Millôr Fernandes que recomenda desconfiarmos do idealista que lucra com seu ideal?

R: É impressionante a atração da “classe artística” (de direita, de centro, de esquerda, de tudo) por dinheiros estatais. Querem que o governo – vale dizer, o país, a sociedade – financiem todas as suas fantasias. Pensam que o Estado é uma vaca e que deve assegurar-lhes o direito de, sempre que desejarem, entrar no curral para ordenhá-la. De um modo geral, dá vontade de repetir para essa gente, ligeiramente alterada, a célebre frase de John Kennedy: não pergunte o que o Estado pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo Brasil... Mas isso não foi – nem precisa ser – sempre assim. Para não recuar muito na história, podemos nos limitar à segunda metade do século XX. A bossa nova, a poesia concreta, o cinema novo e o tropicalismo – vale dizer, nossas maiores e mais brilhantes criações estético-culturais – aconteceram sem editais, sem patrocínio oficial, sem leis de incentivo. E dou também um pequeno, recente e bem significativo exemplo. Quando Ana de Holanda era ministra da Cultura, seu irmão Chico Buarque decidiu corretamente que não seria recomendável buscar patrocínio do MinC. Percorreu o país inteiro com um belo show, sem qualquer incentivo fiscal do Estado. Um outro aspecto, que acho de alta relevância: desenvolver políticas públicas para a cultura, no Brasil, não significa bancar uma clientela preferencial, financiar artistas e intelectuais. Atuando na esfera da administração pública na Bahia, por exemplo, criei e coordenei um programa de preservação da integridade territorial e física dos terreiros de candomblé. Mais tarde, entre Brasília e São Paulo, formulei o projeto geral para a implantação do Museu da Língua Portuguesa. Além disso, boa parte dos órgãos públicos “de cultura” hoje, no Brasil, vai derrapando solenemente na maionese identitária: o que importa não é a qualidade do que se faz, mas a ação afirmativa. Ou seja, para lembrar uma expressão perfeita da socióloga Lúcia Lippi, caíram no conto do vigário da “institucionalização da compaixão”.

P: Os movimentos em defesa das minorias começaram para defender a diferença, a "outridade". Como foi possível que esses movimentos se tenham tornado tão intolerantes com a divergência? A que fatores você atribui esse processo, resumidamente?
R: O melhor é recontar a história porque aí a deformação identitária vira fratura exposta. Esses movimentos (gays, mulheres, pretos, etc.) surgiram ou ressurgiram ao longo da década de 1970, no horizonte de nossa luta geral pela reconquista da democracia no Brasil. Todas essas movimentações (na época, “de minorias”; hoje, identitárias) se projetaram então, ganharam visibilidade política e social, no contexto da luta em defesa do outro. Da luta pelo reconhecimento do outro, pelo respeito ao outro. Foi o momento maior, pelo menos em nossa história recente, de defesa e afirmação da outridade. Agora, aí vem a contradição: vitoriosos em nome do reconhecimento do outro, a primeira coisa que esses identitários fizeram, ao se afirmarem vitoriosamente na cena brasileira, foi justamente negar e combater o outro. Promover um ataque feroz e sem tréguas à outridade. Assim, negros (fenotípicos ou simbólicos) não querem saber de conversa com não-negros. Mulheres (heterossexuais ou lésbicas), desde que “radfems”, não querem saber de homens palpitando em assuntos femininos. Etc. O que começou como uma luta pelo reconhecimento do outro termina agora como uma luta que rejeita o outro, a diferença, a outridade. É uma negação muito estranha, mas que deve ser entendida também como a luta por um monopólio da fala que se traduz, objetivamente, em reserva de mercado: só negros podem falar de assuntos negros; só mulheres podem abordar questões femininas. É a guetificação e a celebração da guetificação, inclusive porque isso assegura verbas, fontes de financiamento, controle político-ideológico, etc. Toma-se então o outro, caricaturalmente, como inimigo. E assim as movimentações se encorpam numericamente, ampliando o número de seus fiéis. Claro: sabemos muito bem que o caminho mais curto para conquistar a massa não é o da complexidade, das nuances, dos matizes enriquecedores. É o caminho do binarismo maniqueísta, que gera leituras tão fáceis quanto falsas da realidade envolvente.
P: De forma sintética, quais são as suas críticas ao "racialismo neonegro"?
R: O problema principal do nosso racialismo neonegro é pretender substituir a experiência histórica e social de um povo pela experiência histórica e social de outro povo. E assim substituem a formação histórico-social brasileira pela norte-americana, numa típica conduta de colonizados. Nossos processos configuradores são totalmente distintos. Além disso, em matéria de relações interraciais, os Estados Unidos não são exemplo nenhum para o mundo. Muito pelo contrário, são uma anomalia planetária: o único país do mundo a não reconhecer oficialmente a existência de mestiços de branco e preto. Outra coisa é que nossos racialistas fecham os olhos para a realidade do assassinato espiritual do negro africano nos Estados Unidos, sob a poderosíssima pressão do poder puritano branco. Tanto que lá inexistiam orixás, terreiros, babalaôs, etc., até que eles começaram a chegar pelas migrações antilhanas, pela perseguição à “santería” cubana, promovida por Fidel Castro. No Brasil, religião negra é candomblé. Nos Estados Unidos, é a variante negra do protestantismo branco. Martinho Lutero (em inglês, Martim Luther) King era um pastor evangélico, não um babalorixá. Sempre digo que, se tivesse acontecido, no Brasil e em Cuba, o que aconteceu nos Estados Unidos e na Argentina, não teríamos hoje um só deus africano, um só orixá, em toda a extensão continental das Américas... Outra coisa é que os racialistas neonegros idealizam ao extremo a tal da “Mama África”. Daí, ficam surpresos quando dão de cara com a realidade mais ostensiva atualmente de países como a Nigéria e Angola, que é a realidade da exploração do negro pelo negro. A África Negra se tornou um rosário de ditaduras corruptas, com elites negras multimilionárias e o povo negro na miséria. Nossas feministas neonegras também fecham os olhos para um aspecto essencial da vida de Ginga, a rainha de Matamba, que não só tinha escravas pretas, como as usava como poltronas, sentando-se durante horas sobre seus dorsos nus, enquanto fazia tratativas políticas, comerciais ou militares. Apenas para tocar mais uma tecla, nossos neonegros, que são todos variavelmente mulatos, ficam perplexos, quando tomam conhecimento do fortíssimo preconceito contra os mulatos que vigora em boa parte da África Negra. Costumo observar que Barack Obama jamais ganharia uma eleição na Nigéria ou em Angola: seria rejeitado pelas massas negras pelo simples fato de não ser preto, mas mulato. Aliás, em Angola, os mulatos são tratados pejorativamente como “latons”. Bem, “latons” é como seriam classificadas por lá figuras como Nei Lopes, por exemplo. E “latonas” são, na terminologia popular dos pretos angolanos, Camila Pitanga e Thaís Araújo.
P: O feminismo estaria passando pelo mesmo processo de cooptação política e sectarização?
R: O feminismo contracultural de Betty Freedan, Germaine Greer e Gloria Steinen degringolou no neofeminismo puritano-fanático de Andrea Dworkin e similares. Elas assumiram um discurso maluco que abole totalmente a história. Imaginam um estupro original, ocorrido às primeiras luzes da história da espécie e congelam tudo aí: acreditam que aquele suposto estupro pré-histórico se repete sempre, até aos dias atuais, sempre que um homem e uma mulher vão para a cama. Qualquer relação heterossexual é colocada então sob suspeita. Catherine Deneuve e algumas intelectuais e artistas francesas reagiram contra isso, defendendo o livre exercício da sexualidade e condenando o neofeminismo norte-americano que trata o homem como inimigo. E outra mulher, Camile Paglia, definiu bem: essas neofeministas são puritanas fanáticas. Como se não bastasse, também muitas neofeministas se fazem de cegas, a depender da conveniência. Veja-se o caso do “black panther” Eldridge Cleaver, relatado por ele mesmo em seu livro “Soul on Ice”. Cleaver conta aí que estuprou uma mulher branca como “um ato de insurreição”, a fim de “sujar” as mulheres do homem branco. Mais ainda: Cleaver escreve, com a maior tranquilidade do mundo, que, antes de estuprar brancas, treinou no gueto, currando pretas pobres! E as neofeministas nunca disseram nada sobre isso. Nem contra o estupro, nem contra o racismo de Cleaver diante das moças pobres do gueto. Angela Davis preferiu não tocar no assunto. É impressionante. E mostra a que ponto as coisas podem chegar: identitários não condenam crimes cometidos por identitários. É uma noção muito estranha de justiça.
P: Que avaliação você faz das políticas de cotas e dos movimentos de ação afirmativa, como conceito e como resultados práticos? As cotas alimentam o vitimismo? O que pensa do conceito de "dívida histórica"?
R: Não acho que cotas sejam realmente necessárias e digo isso a partir da realidade dos asiáticos e seus descentes na sociedade brasileira. Não existem cotas para “amarelos”. No entanto, a ascensão social dos amarelos, no Brasil, é um fato notável. Mas, se querem implantar políticas de cotas, elas não devem ser étnicas, raciais. A razão é simples. Nem todo preto é pobre, nem todo pobre é preto. No Brasil, há pobres de todas as cores. Entre numa favela em Santa Catarina que isso fica bem explícito. E penso que não temos o direito de privilegiar, em meio às massas pobres do país, apenas um determinado segmento étnico. Isso não tem nada a ver com democracia ou justiça social. Então, se é para ter cotas, que elas não sejam simplesmente “étnicas”, mas sociais. Agora, essa conversa de “dívida histórica” é picaretagem. Se quiserem, comecem a cobrar, primeiramente, da classe dominante negra lá na África, que encheu as burras com sua participação decisiva no tráfico de escravos. Os nagôs e os orixás só foram parar na Bahia porque foram derrotados em guerras contra os daomeanos, sendo então escravizados e vendidos para cá. Reis do Daomé chegaram, inclusive, a enviar embaixadas à Bahia, na tentativa de assegurar para eles o monopólio da venda de escravos para os baianos. Agora, até hoje, as classes dominantes na África Negra gostam de fazer esse truque, de enganar o povo, dizendo que todos eles foram vítimas do “homem branco”. É mentira. Recorrem a esse expediente de botar tudo na conta da “exploração branca” a fim de esconder a exploração a que elas mesmas submeteram (e ainda hoje submetem) os povos negros. As classes dominantes negras não foram vítimas, foram sócias dos brancos no comércio transatlântico de carne humana.
P: Que análise você faz das políticas públicas racialistas promovidas pelos governos de FHC e Lula? De que forma elas contribuíram para o fortalecimento do que você chama de fascismo identitário?
R: A minha impressão é que eles não entenderam bem ou não prestaram a devida atenção, lá no início, no que estava começando a acontecer. Nem pensaram nas consequências de muitas coisas. De Sarney a Lula, porque a política racialista de caráter “compensatório” começa com Sarney e ganha extrema visibilidade com a criação da Fundação Palmares, que foi a entidade que, com seus procedimentos enviesados, criou mais quilombos no Brasil do que Zumbi seria capaz de sonhar. Fernando Henrique não se tocou com a grande deformação pedagógica realizada sob seu nariz, com a gravação de uma contra-história esquerdista do Brasil, invertendo tudo da primeira história oficial de Varnhagen e companheiros, nos parâmetros curriculares do ensino. No caso de Lula e do PT, penso o seguinte. Lula, Dirceu, etc., estavam concentrados em política e em caminhos para chegar ao poder. Não tinham qualquer interesse específico ou especial em discursos de “minorias”, como então se dizia. Eles apenas abrigaram essas minorias no partido e deixaram que elas se movessem por conta própria. Como não tinham tempo ou disposição para discutir seus discursos, tomaram uma atitude curiosa: sacralizaram os discursos dos “oprimidos”. Dentro do PT, tudo que índio, preto, veado ou mulher dissesse, não se discutia. O negócio era celebrar os oprimidos, dar voz aos que nunca tiveram voz, etc. E isso está mesmo na base da formação do fascismo identitário.
P: Que caminhos você visualiza para que a sociedade brasileira saia desse apartheid maniqueísta e dessa guerra de narrativas que nos divide a ponto de rompermos relações com amigos e familiares?
R: Temos a polarização político-ideológica e as polarizações identitárias. No primeiro caso, só há uma saída. Deixar petistas e bolsonaristas de parte – e partir para fortalecer o campo democrático. O problema é que esse próprio “campo democrático” não parece realmente disposto a fazer isso, no sentido simples de que, na prática, se recusa a empreender uma releitura crítica rigorosa de sua trajetória e do entendimento do processo que veio das manifestações de junho de 2013 à vitória eleitoral da extrema direita na eleição presidencial de 2018. No segundo caso, é preciso dessacralizar os identitários. Desmantelar aura e auréola de vítimas e mártires que pretendem se colocar acima de tudo, como juízes e algozes implacáveis das coisas da vida e do mundo. Combater seus “tribalismos”, sua glorificação do gueto, seus expedientes fascistas. Deixemos de parte as exacerbações particularistas, setoriais, e vamos voltar a nos mover no campo da maioria, nas águas mais vivas do conjunto da sociedade brasileira. O que digo é isso: precisamos superar o “apartheid” identitário e reencontrar a democracia. Em todos os campos do pensar, do sonhar, do imaginar e do fazer.