O que se deve fazer para cumprir um programa de governo?
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: auto-esclarecimento; finalidade: análise da conjuntura]
Introdução
Respondo imediatamente à pergunta do título: em primeiro lugar, ter uma visão clara de quais são os principais problemas do país, e portanto, quais seriam as suas principais prioridades. Para atender ao primeiro quesito é preciso fazer um diagnóstico correto da conjuntura, mas mantendo uma visão de médio e longo prazo, de maneira a construir uma estratégia adequada para enfrentar, de forma persistente e continuada, os principais problemas detectados.
Minha própria percepção sobre a situação atual do Brasil é, obviamente, a da mais grave crise jamais enfrentada pelo país no plano econômico, mas também a de uma crise ainda mais grave no plano moral. A segunda crise talvez seja muito pior do que a primeira, pois ela é mais insidiosa, permanente, e também mais subjetiva, sendo provavelmente derivada do estado mental da maioria dos membros da elite, o que a torna de muito mais difícil resolução.
A grave crise moral de que padece o Brasil
Esta profunda crise moral tem a ver não apenas com o mau funcionamento do sistema político, mas também, e principalmente, com a profunda corrupção e completa degradação dos costumes que todo o sistema da governança pública atravessa, uma situação de declínio ético que contaminou o país, que o intoxica, e que torna quase impossível a obtenção de algum consenso razoável em prol das grandes reformas estruturais de que o Brasil necessita para resolver a primeira crise, a econômica, e retomar níveis razoáveis de crescimento sustentado.
Não me perguntem como resolver essa profunda crise moral que nos atinge a todos, pois eu também não sei. Não basta dizer “Que se vayan todos!”, como fizeram os argentinos em 2001, porque isso não vai acontecer. Não ocorreu por lá, e não vai acontecer por aqui, mesmo que se processe uma renovação limitada do corpo político, que está, repito, profundamente podre, moralmente falando.
Esse problema tem a ver com o nosso velho patrimonialismo – sempre passando por novas formas, do velho patrimonialismo luso-colonial, estudado por Raymundo Faoro, conhecendo certa renovação no quadro dos regimes autoritários do Estado Novo e da ditadura militar, até o patrimonialismo de tipo gangster, na era lulopetista –, mas tem também a ver com vários outros “ismos” nefastos, alguns de extração mais recente, outros de existência permanente em nosso país: o nepotismo, o fisiologismo, o prebendalismo, o corporativismo, o sindicalismo exacerbado, o protecionismo comercial, o intervencionismo econômico, o nacionalismo rastaquera, o patriotismo de fachada, o dirigismo extremo de nossa burocracia atávica, o regulacionismo excessivo das mesmas corporações de ofício e, last but not the least, esse desenvolvimentismo ingênuo, que nos faz concentrar todas as alavancas do crescimento econômico nas mãos, nos pés, no estômago desse ogro famélico, insaciável e desastrado que se chama Estado brasileiro, a fonte segura da maior parte dos nossos males.
Ao colocar o Estado no centro dos nossos males, não me engano nem exagero. A despeito de o Estado ser, infelizmente, o eixo central de toda a nossa organização política e social, e também (e ainda mais infelizmente) econômica, ele é, para o bem e para o mal, a raiz, a fonte, o fulcro de todos os nossos problemas e preocupações. Não nos enganemos: o estado brasileiro atual é o verdadeiro inimigo da nação, de uma sociedade livre, de nossa prosperidade.
O Estado brasileiro, que no passado foi um impulsionador do desenvolvimento nacional, tornou-se, nitidamente hoje, o principal obstrutor de um processo sustentado de crescimento econômico. Ele o é de diferentes formas: ao extrair, vorazmente, cerca de 2/5 de tudo o que a sociedade produz; ao cercear possibilidades de acumulação e de investimento privado, o que o faz ser também um obstáculo à transformação produtiva; por último, ele é o grande empecilho a um processo real de distribuição do (baixo) crescimento econômico, ao ser, de fato, um instrumento nas mãos de ricos e poderosos, inclusive dos mandarins do próprio Estado, concentrando renda e provocando um aumento contínuo, ou pelo menos a preservação, das desigualdades sociais. Volto a repetir: o Estado, tal como ele funciona hoje, ou como ele não funciona atualmente, é o principal inimigo da nação, e isso precisa ficar bastante claro para todos.
Reduzir o peso do Estado
Ao dizer isso, não quero ingenuamente fazer uma profissão de fé anarquista, e proclamar a necessidade de destruir o Estado, para tornar a sociedade livre de todas as deformações, vícios, malefícios, deseconomias provocadas pelo Estado, por meio de suas corporações de ofício, por meio das instituições voltadas prioritariamente para si mesmas, por meio dos lobbies particularistas que atuam no, e em direção do Estado, em virtude de toda a promiscuidade mantida entre agentes políticos e corporativos, de um lado, e a classe dos capitalistas, dos industriais e dos banqueiros, de outro, que se apropriam, estes, do Estado, e de seus representantes, para fazê-los funcionar em benefício dos seus próprios interesses, um pouco como aquela imagem de um comitê político atuando em defesa dos negócios da burguesia, de que falava, num famoso manifesto, um antigo filósofo social alemão.
O Estado é, infelizmente, nas sociedades complexas e altamente burocratizadas nas quais vivemos hoje, com graus exacerbados de urbanização e de regulação intervencionista, o único instrumento de que dispomos para evitar a conhecida situação hobbesiana de luta de todos contra todos. Se ele é esse instrumento, não pode ser destruído, certo? Apenas parcialmente correto.
O que nos cabe fazer, em primeiro lugar, nas condições concretas do Brasil, é reduzir drasticamente o tamanho e do peso do Estado a proporções suportáveis pela população trabalhadora, os agentes econômicos primários de produção de riqueza e de criação de empregos, que são os empresários e os microempreendedores – até o nível de carroceiros e de pipoqueiros de esquina –, que são também os que alimentam e cobrem os privilégios de uma rica burocracia de Estado, ademais da classe política predatória e extratora, os equivalentes atuais da antiga aristocracia do Ancien Régime.
Reduzir o tamanho e o peso do Estado sobre a vida dos cidadãos, e sobre as atividades produtivas dos criadores primários de renda e riqueza, já é meio caminho andado para resolver o primeiro e mais grave problema econômico da nação, qual seja, o desequilíbrio dramático das contas públicas e a falência virtual da fiscalidade. Voltamos, portanto, ao primeiro problema apontado ao início deste texto: a grave crise fiscal de que padece o Brasil atualmente, fruto da Grande Destruição da era lulopetista, o mais grave atentado de que já padecemos, sem o perceber, desde a fundação da República.
Pouca gente está disposta a admitir que o Brasil, de 2003 a 2016, foi vítima de, ainda que administrado por, uma organização criminosa travestida de partido político, que não apenas se revelou totalmente inepta no plano da governança, como também foi, e principalmente, exacerbadamente corrupta no plano dos negócios públicos. Sem reconhecer esta realidade, torna-se difícil propor um programa de reconstrução nacional e de refundação da própria República, que passa pela eliminação da vida pública desses quistos cancerosos do sistema político.
Como construir a governança?
Partindo desse pressuposto, uma primeira tarefa de uma governança responsável seria a de construir uma maioria de apoio ancorada na transparência em relação a um programa de governo declaradamente reformista, que afaste de vez a corrupção dos negócios públicos, como é a expressa vontade da imensa maioria da população. O governo deveria ser em parte político, em parte tecnocrático, pois seria impossível trabalhar sem especialistas, de um lado, e sem representantes dos partidos presentes no Congresso, de outro.
A reforma política é algo absolutamente necessário, e o Executivo precisaria ter uma visão clara de como ela deve ser feita – reduzir a fragmentação, mudar o sistema eleitoral, cláusulas de barreira, fim dos fundos partidário e eleitoral –, mas também deve ter absoluta consciência de que essa reforma não será feita pelos próprios políticos e partidos, sem uma pressão decisiva por parte da cidadania consciente, o que obviamente será difícil de obter. O governo, então, deverá se concentrar nas reformas econômicas e em diversas outras reformas estruturais – previdenciária, trabalhista, educacional, etc. –, com total transparência sobre o que o Brasil precisa fazer para retomar o crescimento.
Na parte econômica, o restabelecimento do equilíbrio fiscal, a diminuição dos déficits orçamentários e do endividamento público, assim como um amplo programa de privatizações, são absolutamente necessários para que todos os demais objetivos reformistas sejam alcançados. O sentido geral das reformas deve ser o da abertura econômica, o da liberalização comercial – se preciso for unilateral –, amplas liberdades econômicas, com diminuição do regulacionismo intrusivo e uma profunda reforma fiscal no sentido da redução, sim, da redução da carga fiscal total.
Como não parece haver entendimento preliminar, nem federativo, sobre o caráter dessa reforma, sobre a estrutura do novo sistema tributário, sobre a mudança na arquitetura e na composição da base fiscal – peso e repartição dos impostos, das taxas e contribuições, nos três níveis –, o que se propõe é um programa gradual e progressivo de redução paulatina de alguns pontos percentuais – pode ser meio por cento a cada ano – em cada uma das alíquotas ou valores aplicados em todos os componentes da atual base fiscal, digamos num espaço de cinco a dez anos, período no qual a sociedade e o parlamento engajariam uma discussão ponderada sobre a substância e o perfil da nova estrutura fiscal e tributária, condizente e compatível com as necessidades dos país. O sentido será sempre o da redução da carga sobre o investimento, sobre o trabalho e os lucros, com maior incidência sobre o consumo – mas desonerando os itens de consumo popular –, sobre o patrimônio e as rendas do capital. O Brasil precisa chegar a uma carga fiscal total não superior a 30% do PIB, que seria comensurável com sua atual renda per capita.
Outro aspecto essencial das reformas modernizantes é a privatização de todas – sublinho TODAS – as empresas estatais, que salvo raros casos têm servido principalmente de cofre e de cabide de empregos para políticos inescrupulosos, aqueles expropriadores e rentistas. Não existe nenhum motivo econômico, ou até político, para que grandes empesas públicas, em praticamente todas as áreas, inclusive os bancos estatais, continuem a funcionar sob a gestão ineficiente, e altamente comprometedora de sua higidez, do Estado. Mesmo bancos de “desenvolvimento” podem ser colocados parcialmente sob a responsabilidade de uma gestão pautada por critérios de mercado.
A política econômica externa e, portanto, a política externa igualmente podem ter como foco as mesmas prioridades de reformas estruturais já definidas para a tarefa de modernização doméstica, sendo que a política externa setorial é acessória ao, e em grande medida dependente do, imenso esforço de recuperação da nação, depois de quase duas décadas de descaminhos e contradições no processo de desenvolvimento nacional.
Estas são as considerações genéricas que julgo serem importantes apresentar numa fase preliminar do debate em torno da reconstrução nacional. Argumentos mais específicos serão apresentados para políticas setoriais em terrenos seletivos. Apenas volto ao meu resumo habitual de políticas gerais para um processo de crescimento sustentado, com transformação produtiva e redistribuição de renda via mercados, antes que pela mão assistencialista sempre torta do Estado: macroeconomia estável – fiscal, monetária e cambial –, microeconomia competitiva, governança responsável e transparente, alta qualidade do capital humano e abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros. Vale...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília-Lisboa, em voo; Aeroporto de Lisboa; Beja, 22 junho de 2018