Mais um daqueles textos de "reforma", já que eu não consigo achar o que eu quero. Mas este, feito no começo de 2018, era de uma tentativa de planejamento para uma "boa" política externa para o governo que iria começar em 2019. Deu tudo errado...
Paulo Roberto de Almeida
Balanço e trajetória futura das relações internacionais do Brasil
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de abril de 2018
(www.pralmeida.org; http://diplomatizzando.blogspot.com)
[Objetivo: análise da situação, temas da agenda; finalidade: planejamento]
Introdução
O conceito de relações internacionais, no presente ensaio, compreende tanto uma breve análise do quadro global, do contexto regional, e das diferentes vertentes do enquadramento do Brasil nesses ambientes, quanto uma avaliação sumária de sua política externa no período recente e da atuação de sua diplomacia, complementando esta síntese por um enunciado resumido das diferentes frentes de trabalho abertas ao país, a cargo dos responsáveis políticos e dos profissionais das relações exteriores.
1. O quadro global
A ordem mundial caracterizada pela existência da ONU e de grandes potências autônomas, capazes de influenciar a agenda multilateral, se desenvolve entre as regras do direito internacional e a ação política dos atores mais influentes, com coalizões diversas atuando em diferentes frentes de trabalho, tais como: paz e segurança, comércio mundial e finanças internacionais, blocos regionais e esquemas de integração, desequilíbrios estruturais e permanência de situações de instabilidade política, insuficiência de desenvolvimento e de níveis adequados de prosperidade em largas porções do planeta, desafios comuns advindos de sustentabilidade não garantida, criminalidade e violência em diferentes ambientes interestatais, fragilidades dos regimes democráticos, não observância dos direitos humanos ou sua violação sistemática, etc.
O Brasil se situa nesse quadro como uma potência média, dotada de recursos e fatores produtivos relativamente amplos, mas fragilizado nos últimos anos pela mais grave crise econômica de sua história, provocado inteiramente no âmbito interno, por erros graves de política econômica e extenso quadro de corrupção no próprio seio do poder central, o que diminuiu o ímpeto de sua ação diplomática, sempre muito ativa nas diferentes frentes de trabalho abertas aos profissionais de seu serviço exterior. A recuperação vem se fazendo de forma lenta, porém segura, o que deve garantir, no próximo mandato presidencial, a retomada de dinamismo habitual.
Sua diplomacia sempre se guiou por valores e princípios solidificados ao longo da história, na defesa da igualdade soberana das nações, mas reconhecendo de forma realista as diferenças de poder e de influência nos diferentes processos decisórios nos diversos órgãos da interdependência global contemporânea. Sempre partidário do diálogo e da busca de consenso por meios pacíficos, sua capacidade de projeção em cenários de exercício de poder é relativamente limitada em razão de carência de recursos apropriados para suas Forças Armadas, estritamente limitadas ao desempenho de suas funções constitucionais e alinhadas com sua diplomacia no plano externo.
A pequena limitação do “domínio de competência exclusiva” nos assuntos internos de cada Estado membro da ONU representada pelo conceito de “responsabilidade de proteger” suscitou a proposta feita pela diplomacia brasileira de “responsabilidade ao proteger”, mas ambiguidades na aplicação dos dois conceitos devem persistir no futuro previsível. Não é seguro que a aparente multipolaridade atual, com o declínio relativo de velhos poderes imperiais e a ascensão de novas potências emergentes, favoreça um ambiente favorável a um multilateralismo ordenado; pode criar novas fontes de tensão, resultantes dessas alterações nas capacidades decisórias.
Do ponto de vista de sua segurança, não parecem existir ameaças reais ou potenciais que exijam postura ativa de sua defesa, e menos ainda um ambiente regional que requeira uma atitude ofensiva, mas a persistência de tensões localizadas e de conflitos efetivos em diferentes cenários confirma a necessidade de preparação adequada de suas FFAA, sobretudo no quadro de operações multilaterais legalmente autorizadas no quadro do direito internacional e do órgão de segurança da ONU. A proliferação de atores não estatais dotados de certa capacidade destrutiva implica, todavia, inovações doutrinais e adaptação nas ferramentas necessárias a esses novos desafios, sobretudo no campo da criminalidade transnacional.
O ambiente econômico internacional se apresenta como quase completamente liberado dos modelos alternativos à economia de mercado, mas o recrudescimento de posturas nacionalistas e mercantilistas e de desequilíbrios derivados de contas fiscais deficitárias em grande número de países não poupa o mundo da possibilidade de novas crises financeiras. A demagogia política e o populismo econômico, inclusive por parte de economias dominantes, também podem contribuir para o arrefecimento da construção de uma ordem econômica internacional verdadeiramente interdependente. O Brasil, reconhecidamente, é um país dotado de instintos nacionalistas exacerbados, sendo notoriamente fechado a essa interdependência global, ficando bem mais próximo de uma postura protecionista e mercantilista do que de uma postura propensa à abertura econômica e à liberalização comercial. Sua baixíssima integração a cadeias de valor não augura progressos significativos nessa frente, que demandaria aumentos significativos de produtividade, exatamente dependente dessa maior abertura e da redução da proteção efetiva à produção doméstica, acoplada à melhoria dos padrões de inovação tecnológica.
2. O quadro regional
O ambiente geral é desprovido de maiores focos de tensão, embora persistam fricções localizadas em alguns cenários interestatais – Bolívia-Chile, Venezuela-Guiana – ou mesmo internos: guerrilhas residuais, erosão política e “exportação” populacional de crises (Venezuela). O continente sul-americano permanece marcado por amplo quadro de pobreza, a despeito dos progressos realizados, desigualdades persistentes e enormes bolsões de corrupção, quando esta não se encontra incrustrada no próprio seio do poder (como no caso brasileiro a partir de 2003). A América Latina, de modo geral, apenas acompanhou a evolução da economia global, sem grandes avanços estruturais, uma vez que permanece basicamente exportadora de commodities, a despeito do vigor (não isento de retrocessos) dos processos de industrialização. Ela perdeu espaços de forma consistente para a região da Ásia Pacifico nos grandes fluxos de comércio e de atração de investimentos, e não parece pronta a alterar significativamente seus padrões de inserção global, com a exceção de algumas economias adeptas de uma postura globalizante. A Aliança do Pacífico é notoriamente mais aberta que o Mercosul.
Os diferentes experimentos de integração serviram para abrir reciprocamente economias nacionais anteriormente introvertidas ou extrovertidas unicamente em direção dos mercados mais avançados, mas não conseguiram consolidar um espaço econômico verdadeiramente integrado ou dotado de um quadro regulatório uniforme e aberto a uma maior complementaridade entre setores. A cartografia desses vínculos é notoriamente inferior às cadeias de valor existentes em outras regiões, o que se explica essencialmente pela ausência de uniformização nos mecanismos de acesso a mercados e sobretudo pelas enormes diferenças de padrões regulatórios, mais até do que pela existência de barreiras físicas ou as dificuldades de comunicações.
No plano político, a retórica continua suplantando largamente o pragmatismo necessário ao aprofundamento dos laços inter-regionais, inclusive no Brasil, que se tem revelado tímido em sua própria abertura aos vizinhos, como autorizaria sua economia mais avançada e sua produtividade relativamente mais robusta. Sua diplomacia, entre 2003 e 2016, foi errática ou excessivamente contaminada por influências partidárias claramente enviesadas no plano político e ideológico, o que claramente lhe retirou algumas alavancas para exercer certa preeminência consensual em iniciativas que poderiam ter impulsionado o processo de integração ou de convergência para ações e políticas mais conformes à globalização e à interdependência global. A “exportação” de corrupção, no mesmo período, também deixou uma marca negativa na projeção do Brasil, na região e fora dela. Uma completa normalização de sua ação externa parece depender da instalação de novo governo em 2019, assim como de claras orientações de política externa que caminhem no sentido da integração regional e da inserção global.
Caberia, a propósito, uma revisão ponderada dos diferentes mecanismos de coordenação política criados na esfera regional durante aquele período, vários deles marcados ou contaminados pela mesma visão enviesada que caracterizou a diplomacia brasileira em outras esferas, bem como o reexame de algumas “parcerias estratégicas”, mais definidas em função dos mesmos critérios puramente políticos do que com base nos reais interesses nacionais. Por fim, os mecanismos de financiamento a projetos no exterior padeceram das mesmas deformações, o que criou uma exposição excessiva dos recursos nacionais a iniciativas dotadas de poucas garantias efetivas de repagamento, o que também pode ser explicado pelas simpatias políticas do regime anterior.
3. Uma agenda de reformas e de modernização
O Brasil continuará padecendo, no futuro imediato, de uma enorme crise fiscal criada pelo regime anterior, que limitará de alguma forma tanto iniciativas localizadas ou multilaterais de projeção de seus interesses quanto seu engajamento decisivo nos processos de interdependência global (que requerem abertura econômica e liberalização comercial). As soluções são praticamente todas de âmbito interno, ainda que a sua diplomacia profissional possa contribuir para a definição e a implementação de toda uma série de reformas internas já suficientemente diagnosticadas e prescritas em vários relatórios de entidades multilaterais ou foros globais. Documentos como o “Fazendo Negócios” do Banco Mundial, os relatórios de competitividade do World Economic Forum, as evidências eloquentes de análises como as inseridas nos estudos “Economic Freedom of the World”, assim como avaliações tecnicamente embasadas de órgãos como a OCDE ou mesmo de instituições nacionais (Ipea, FGV, SAE-PR) representam um manancial completo de “terapêutica e cura” da maior parte dos males nacionais.
A diplomacia econômica brasileira pode e deve contribuir no e ao necessário processo de modernização econômica do país, trazendo evidências quanto à eficácia de uma série de reformas já efetuadas em outros contextos, mas dotadas do mesmo sentido de abertura resoluta à interdependência global. O fortalecimento da economia nacional, assim como a correção das deformações mais evidentes em seu ambiente regulatório – sobretudo na esfera tributária, no excesso de burocracia, no nacionalismo exacerbado – devem poder assegurar ao Brasil um retorno mais efetivo às iniciativas e à participação efetiva na agenda internacional de que é capaz sua diplomacia profissional. A nova postura necessita de meios adequados à projeção dos interesses brasileiros, não apenas na cooperação com países em desenvolvimento, mas basicamente na aceitação decidida de novos compromissos no plano da interdependência, o que de toda forma emergirá naturalmente a partir da aceitação não defensiva de padrões superiores de qualidade nas políticas macroeconômicas e setoriais, a partir do ingresso pleno do país na OCDE.
Essa interface econômica não representa todos os componentes já presentes na agenda multilateral – global e regional – e nos diferentes outros compromissos já inscritos na ordem do dia da diplomacia brasileira, derivados de suas parcerias já consolidadas ou a serem criadas a partir dessa nova postura engajada. Existem muitos outros itens no multilateralismo político – sobretudo paz e segurança internacionais –, nos foros econômicos, no plano bilateral ou de foros específicos que vão continuar a exigir recursos humanos e financeiros, ademais de uma visão clara das prioridades externas, todos eles amplamente cobertos pela diplomacia profissional. Mas esse lado de reformas econômicas e de modernização da agenda nacional representa a condição sine qua outros objetivos políticos e diplomáticos não poderão ser alcançados. A nova política externa do Brasil deveria dar clara prioridade aos capítulos mais importantes de sua diplomacia econômica. Esta é a direção dos próximos anos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de abril de 2018