Vladimir Putin é o tolo mais perigoso do mundo
Por Thomas L. Friedman
O Estado de S. Paulo, 12/05/2023 | 03h00
Não tenho escrito muito a respeito da guerra na Ucrânia ultimamente porque pouco mudou estrategicamente desde os primeiros meses deste conflito, quando três fatos gerais orientavam praticamente tudo — e ainda orientam.
Fato n.º 1: conforme escrevi no primeiro momento, quando uma guerra desta magnitude começa, a pergunta-chave que você se faz enquanto colunista de assuntos internacionais é muito simples: onde eu deveria estar? Em Kiev? No Donbas, na Crimeia, em Moscou, Varsóvia, Berlim, Bruxelas ou Washington?
E desde o início desta guerra há um único lugar onde é possível compreender seu timing e sua direção — dentro da cabeça de Vladimir Putin. Infelizmente, Putin não concede vistos de entrada ao seu cérebro.
O que é um baita problema, porque esta guerra emergiu completamente de lá — sem, agora nós sabemos, nenhum aporte de seu gabinete nem de seus comandantes militares — e certamente sem nenhum anseio massivo do povo russo. Portanto, a Rússia será impedida na Ucrânia, vencendo ou perdendo, somente quando Putin decidir parar.
O que leva ao fato n.º 2: Putin nunca teve um Plano B. Agora é óbvio que ele pensou que iria entrar em Kiev como quem baila uma valsa, capturá-la em uma semana, instaurar um lacaio como presidente, meter a Ucrânia no bolso e pôr fim a qualquer outra expansão da União Europeia, da Otan ou da cultura Ocidental na direção da Rússia. E depois faria sua sombra pairar sobre toda a Europa.
O que leva ao fato n.º 3: Putin se colocou em uma situação em que não consegue vencer, não pode perder e não pode parar. Ele não conseguirá mais tomar controle de toda a Ucrânia de nenhuma maneira. Mas, ao mesmo tempo, não pode permitir ser derrotado depois de todas as vidas russas perdidas e todo o dinheiro que gastou. Portanto, ele não pode parar.
Plano A x Plano B
Para colocar de outra maneira, já que Putin nunca teve um Plano B, ele adotou por padrão uma guerra de atrito punitiva, bombardeando com frequência e indiscriminadamente cidades e infraestruturas civis ucranianas na esperança de ser capaz de drenar, de qualquer maneira, sangue suficiente dos ucranianos e exaurir o suficiente os aliados ocidentais de Kiev até que lhe deem uma fatia grande o suficiente do russófono leste ucraniano que ele seja capaz de vender para o povo russo como uma grande vitória.
O Plano B de Putin é disfarçar o fracasso de seu Plano A. Se esta operação militar tivesse um nome honesto, poderia ser chamada de Operação Salvem Minha Reputação.
O que torna esta guerra um dos conflitos mais doentios e sem sentido dos tempos modernos — um líder destruindo a infraestrutura civil de um outro país até obter um subterfúgio para esconder o fato que foi um completo imbecil.
Pôde-se perceber no discurso de Putin no Dia da Vitória, pronunciado na terça-feira, em Moscou, que agora ele busca se agarrar a qualquer lógica para justificar uma guerra que ele iniciou com base na própria fantasia de que a Ucrânia não é um país verdadeiro, e sim parte da Rússia. Ele alegou que sua invasão foi provocada por “globalistas e elites” ocidentais que “falam a respeito de sua exclusividade, antagonizam as pessoas e dividem a sociedade, provocam conflitos sangrentos e insurreições, semeiam ódio, russofobia, nacionalismo agressivo e destroem valores familiares tradicionais que tornam as pessoas seres humanos”.
Uau. Putin invadiu a Ucrânia para preservar os valores da família russa. Quem poderia imaginar? Eis um líder com dificuldades para explicar para seu povo por que ele começou uma guerra com um vizinho fraco que, afirma ele, não é um país de verdade.
O disfarce do ditador
Nós poderíamos perguntar por que um ditador como Putin precisa de disfarce. Ele não é capaz de fazer seu povo acreditar no que quiser?
Acho que não. Se analisarmos o comportamento de Putin, parece que ele está bastante assustado hoje com dois temas: aritmética e história russa.
Para entender por que esses temas o assustam, precisamos primeiro considerar o ambiente que o envolve — algo captado habilmente, à medida que transcorre, na letra da canção “Everybody Talks” (Todo mundo fala), de uma das minhas bandas de rock favoritas, Neon Trees. O refrão principal é:
Ei, amigo, você não vai olhar pra mim?
Eu posso ser seu próximo vício.
Ei, amigo, o que você tem para dizer?
Tudo o que você me traz é ficção.
Eu sou um tolo desprezível, e isso acontece o tempo todo.
Eu descubro que todo mundo fala.
Todo mundo fala, todo mundo fala.
Começa com um sussurro.
Uma das maiores lições que aprendi como repórter de assuntos internacionais trabalhando em países autocráticos é que não importa quão estritamente controlado seja o lugar nem quão brutal e autoritário seja seu ditador, TODO MUNDO FALA.
Todos sabem quem está roubando, quem está fraudando, quem está mentindo, quem está tendo algum caso extraconjugal e com quem. Começa com um sussurro e com frequência permanecem assim, mas todo mundo fala.
Putin claramente também sabe disso. Ele sabe que mesmo se tomar alguns quilômetros quadrados a mais no leste da Ucrânia e mantiver a Crimeia, assim que ele parar sua guerra todas as pessoas farão as contas cruéis sobre seu Plano B — começando por uma subtração.
Prejuízos da guerra
A Casa Branca declarou na semana passada que estimados 100 mil combatentes russos morreram ou se feriram na Ucrânia somente nos cinco meses recentes e que aproximadamente 200 mil morreram ou se feriram desde que Putin começou esta guerra, em fevereiro de 2022.
Trata-se de um número grande de baixas — mesmo em um país grande — e podemos perceber que Putin está preocupado com a possibilidade de seu povo falar disso porque, além de criminalizar qualquer forma de dissenso, em abril ele se apressou em aplicar uma nova lei que reprime recrutas fujões. Agora qualquer um que não se apresente ao serviço militar sofrerá restrições sobre operações bancárias, vendas de propriedades e até para obter carteira de motorista.
Putin não agiria dessa maneira se não temesse que, apesar de seus melhores esforços, todos estivessem sussurrando a respeito de como a guerra está indo mal e como evitar combater por lá.
Leia o ensaio recente no Washington Post de Leon Aron, historiador dedicado a estudar a Rússia de Putin e pesquisador do American Enterprise Institute, a respeito da visita de Putin, em março, à cidade ucraniana de Mariupol, atualmente ocupada pela Rússia.
“Dois dias depois do Tribunal Penal Internacional acusar Putin de crimes de guerra e emitir um mandado para sua prisão”, escreveu Aron, “o presidente russo passou algumas horas em Mariupol. Ele foi filmado parando no ‘microdistrito Nevski’, inspecionando um novo apartamento e ouvindo por alguns minutos moradores efusivamente agradecidos. Conforme ele deixava o local, uma voz quase inaudível surge no vídeo, um grito à distância: ‘Eto vsio nepravda!’ — ‘É tudo mentira!’”.
Aron disse-me que os meios de comunicação russos apagaram posteriormente ‘É tudo mentira’ do áudio, mas o fato de ter sido deixada no vídeo pode ter sido um ato subversivo, de alguém posicionado na hierarquia da mídia russa. Todo mundo fala.
Mudança de regime?
O que leva a outra coisa que Putin sabe: “os deuses da história russa são extremamente impiedosos em relação a derrotas militares”, afirmou Aron. Na era moderna, “quando um líder russo termina uma guerra em derrota clara — ou sem nenhuma vitória — normalmente ocorre mudança de regime. Nós vimos isso após a Guerra da Crimeia, após a Guerra Russo-Japonesa, após os reveses da Rússia na 1.ª Guerra, após Krushchev recuar em Cuba, em 1962, e após o Brejnev e companhia se encrencarem no Afeganistão, o que apressou a revolução da Perestroika e Glasnost de Gorbachev. O povo russo, apesar de toda sua afamada paciência, perdoa muita coisa — mas não a derrota militar”.
É por essas razões que Aron, que acaba de finalizar um livro a respeito da Rússia de Putin, argumenta que este conflito na Ucrânia está longe de acabar e ainda pode piorar muito antes disso.
“Há agora duas maneiras para Putin acabar com esta guerra que ele não consegue nem vencer nem abandonar”, afirmou Aron. “Uma é continuar a sangrar a Ucrânia até o fim e/ou até a fadiga acometer o Ocidente.”
E a outra, argumentou ele, “é, de alguma maneira, forçar um confronto direto com os Estados Unidos — trazer-nos à beira de um bombardeio nuclear estratégico mútuo total — e depois dar um passo atrás e propor para um Ocidente amedrontado algum acordo-geral, que incluiria uma Ucrânia neutra e desarmada e a continuidade da Crimeia e do Donbas com os russos”.
É impossível entrar na cabeça de Putin e prever seu próximo movimento, mas mesmo assim eu me preocupo. Porque nós sabemos, sim, a partir das ações de Putin, que ele sabe bem que seu Plano A fracassou. E agora ele fará de tudo para produzir um Plano B que justifique as baixas terríveis que ele ocasionou em nome de um país em que todos falam e no qual líderes derrotados não se aposentam tranquilamente. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL