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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 9 de janeiro de 2022

Dez anos atrás, dois livros sobre os 90 anos da Semana de Arte Moderna - Sergio Leo

 A Semana de 22, e além

Livros de Raul Bopp e do jornalista Marcos Augusto Gonçalves revivem a Semana de Arte Moderna

"Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928)", de Raul Bopp

"1922: A semana que não terminou", de Marcos Augusto Gonçalves

Entre favores de poderosos, viagens instrutivas à Europa e saraus elegantes, pariu-se o modernismo brasileiro. Uma de suas erupções, a Antropofagia de Oswald de Andrade, foi concebida por amigos em torno de um prato de pernas de rã deglutidas com goles de Chablis gelado, num jantar ciceroneado pelo gordo provocador e sua mulher de então, Tarsila do Amaral. Das rãs a Hans Staden, Oswald começou falando delirantemente da evolução das espécies e terminou liderando um movimento de poucos desdobramentos práticos e muitas ideias fascinantes.

A importância dos batráquios na concepção do Movimento Antropofágico é contada em tons ligeiros por Raul Bopp, em um dos livros que, como rojões no Réveillon, pipocaram no começo deste ano, em comemoração aos noventa anos da Semana de Arte Moderna de 22, evento singular em que intelectuais se revoltaram contra os antigos modelos estéticos trazidos da Europa e defenderam, para o Brasil, novos modelos fortemente influenciados… pela Europa vanguardista — como nota Marcos Augusto Gonçalves em outro livro lançado neste ano, 1922: A semana que não terminou.

O livro de Gonçalves é um bom contraponto ao simpático livrinho de Bopp, editado pela José Olympio, Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928)A semana… é jornalístico, mas detalhado, documentado e profundo o suficiente para contentar a qualquer acadêmico; Movimentos… é descosido, impreciso, impressionista, mas repleto de detalhes divertidos capazes de prender até quem nem tenha tanto interesse assim no modernismo brasileiro. É um exaustivo inventário de uma parte importante da intelligentsia brasileira, num momento chave de nossa formação cultural.

Bopp, participante do movimento, é um caso nada incomum de escritor que marcou lugar na literatura brasileira com apenas uma de suas obras. O épico Cobra Norato, poema mergulhado no sincretismo das lendas amazônicas e no projeto modernista de levar aos livros a fala brasileira, é sua contribuição à “luta para desafogar o ambiente dos canastrões, que ditavam as regras do bom gosto”. Seu livro sobre a Semana, publicado inicialmente em 1966, começa com o percurso dos movimentos de arte contemporâneos (dele), em um resumo fortemente influenciado pelas ideias do futurismo italiano (“a visão que o homem moderno forma … funde-se em valores dinâmicos”, “a arte moderna veio … seguindo os caminhos da máquina”). Futurismo seria, aliás, a palavra usada — e depois renegada — por Oswald de Andrade e colegas. Razoavelmente honesto, o resumo de Bopp derrapa ao falar do dadaísmo, “composto, em parte, de subartistas apátridas”, na visão míope do escritor. Mas cumpre a função de mostrar que, enquanto fervia a cena artística europeia, concentrada em Paris, o “velho conformismo” amarrava a expressão artística em formas que nada tinham a ver com a crescente metrópole industrial.

Os “futuristas” brasileiros vão recorrer, porém, não à incipiente burguesia industrial, mas ao velho baronato do café, na figura de Paulo Prado, de linhagem aristocrática (para padrões locais) e esclarecida. Um mecenas como até hoje faz falta no cenário da riqueza nacional. Marcos Augusto Gonçalves, um dos melhores jornalistas da Folha, relata em detalhes os saraus da turma quatrocentona paulista, que reuniram e alimentaram a rebeldia de 22, e documenta como o “terremoto” modernista foi uma “rumorosa acomodação de atritos e fissuras nos limites de um mesmo grande campo”.

O projeto modernista, vitorioso, afinal, teve como trilho o esforço da nova elite paulista para assegurar a própria valorização histórica e cimentar a hegemonia intelectual na República nascente, onde a política já mudava de mãos. O discurso hiperbólico dos “futuristas” corria sem atritos pelas estradas de uma São Paulo que, no centenário da Independência, promovia também o revisionismo histórico capaz de fazer dos bandeirantes o modelo de herói nacional.

Em Raul Bopp, a memória afetiva torna leves os detalhes pitorescos do agrupamento de intelectuais e porraloucas bem instruídos transformados pela Semana em pioneiros da verdadeira Virada Cultural paulista. Em Marcos Augusto Gonçalves, o que dá leveza ao pantagruélico esforço de digestão bibliográfica é o texto jornalístico, amoroso nas descrições e carinhoso com os personagens (cada figura de importância no movimento ganha pelo menos um capítulo, todos com poucas páginas).

Pelo texto colorido de detalhes, Gonçalves põe o leitor no Teatro Municipal, nos dias nervosos da Semana. O livro traz uma reprodução do catálogo da mostra e Gonçalves se desdobra em minudências nada cansativas sobre as cerca de cem obras de arte expostas para as distintas famílias e a patuleia que participou do ao evento. O esforço do pesquisador traz, para a história, personagens esquecidos, como Ferrignac, que teria sido autor de misteriosa obra dadaísta (Gonçalvez se pergunta se havia dadaísmo de fato, ou se o termo entrou na descrição para inglês ou paulista ver). O livro desencava depoimentos como o de Menotti Del Picchia revelando que algumas obras foram “besuntadas” às pressas para dar volume à mostra e protestar, assim, contra um “meloso e decrépito academicismo”. Com outros exemplos, como o de Yan de Almeida Prado, nota-se que nem todo modernista era militante da causa; alguns, como esquerdistas dos anos 80 em convescotes da Libelu, se achegaram ao grupo por causa das festas.

Nesse debruçar-se sobre os personagens está um dos segredos do encanto no livro de Gonçalves. Mário de Andrade é descrito com riqueza, após surgir, a princípio, como figurante na polêmica exposição de Anita Malfati desancada de maneira boçal por Monteiro Lobato, num momento infeliz do escritor iconoclasta — de credenciais irrepreensíveis quando se tratava de combater o academicismo bolorento na literatura. (Sempre lamento que as preferências de Lobato em pintura não sejam mencionadas nem por Gonçalves, nem pela maioria dos que citam o famosos artigo “Paranoia ou Mistificação”, com que o escritor avacalhou a semente expressionista trazida pela pintora ao cenário brasileiro. No artigo em que apedreja as “cubices” de Anita, Lobato, revelando sua falta de olho em matéria de arte, cita como artistas exemplares pintores hoje relegados à periferia da história, como o “mimoso poeta das manhãs” Paul Chabas e o “gênio rembrandtesco” Frank Brangwin, pintores chegados ao rococó e popularíssimos na época).

No livro de Gonçalves, aos poucos, com Mário, com Oswald de Andrade e outros responsáveis pelo movimento, as histórias pessoais se desenrolam e se misturam aos eventos que passam pela Semana de Arte Moderna e vão além. Gonçalves leva ao leitor as dúvidas do pesquisador, no emaranhado de versões que contam essa história. O autor fala das dúvidas sobre o folclórico chinelo com que Villa-Lobos teria regido a execução de suas obras (provavelmente um pé enfaixado, por ataque de gota); compartilha as indicações de que pode ter sido armação teatral o começo da brutal vaia lançada na segunda noite como saudação contra Oswald e Mário (a primeira noite do evento, até com aplausos, teria frustrado os modernistas que esperavam choque e espanto da burguesia local); corrige os que atribuem a Mário, como resposta aos apupos, a leitura da “Ode ao Burguês”.

Gonçalves conta como Mário, o tímido intelectual atemorizado pela plateia agressiva, resistiu, como descreveria depois, “enceguecido pelo entusiasmo dos outros”; e descreve polifonicamente a vaia a Oswald, de acordo com as diferentes visões do próprio Oswald e de testemunhas do embate. O gosto pelo detalhe e pela documentação nunca tem, em 1922: A semana que não terminou, o sabor rançoso que deixa a leitura de pesquisas burocráticas: são cenas vivas e personagens divertidos que compõem uma história difícil de largar. O autor consegue uma unidade no relato que falta ao livrinho de Bopp, também com histórias que conseguem ser pitorescas e exemplares, mas a meio caminho entre o depoimento e o ensaio. Há uma tentativa, em Bopp, de resumir e classificar as correntes “modernistas”, que tem o mérito de traçar movimentos em todo o país, não só em Sampa. Cecília Meireles e Murilo Mendes, por exemplo, são etiquetados como “espiritualistas”. Há trechos, felizmente curtos, com cheiro de relatório de mestre-escola.

Por Bopp e Gonçalves, fica claro que Menotti Del Pichia e Di Cavalcantitiveram atuação fundamental na Semana. Di foi quem deu partida à ideia, atestam os autores. Historinhas paralelas pontuam e recompensam a leitura. Fica-se sabendo, por Bopp, que o futurista Marinetti passou por São Paulo e mal foi notado; lemos justificativas para sua tese de que Brasília não vingaria porque tem o “mau olhado dos deuses”; e conhecemos as experiências jornalísticas do autor, como a interessante Agência Nacional, primeiro esforço de uma agência de notícias brasileira, que reuniu simpatizantes da Coluna Prestes e recebia livros até do integralista Plínio Salgado.

O mais interessante entre os relatos pessoais de Bopp, porém, é a narrativa sobre a criação e desenvolvimento do Movimento Antropofágico, que ele acompanhou sem engajar-se inteiramente, como cronista atento. O Clube da Antropofagia, na casa de Tarsila do Amaral, então mulher de Oswald, tinha “feição britânica”, com “criados de luva branca”. Lamentavelmente, para Bopp, a antropofagia não desenvolveu seus achados e teses, como a revisão da história do Brasil a partir de constatações como a de que o país é fruto de imensa grilagem; sem invasão de terras, o Tratado de Tordesilhas teria feito do Brasil um Chile oriental mais gordinho.

São os dois livros uma leitura sem arrependimentos e fonte de consulta permanente. O filão não é esgotado, mas especialmente o leitor do livro de Marcos Augusto Gonçalves descobrirá, se não estava interessado na Semana de Arte Moderna de 22, por que deveria se interessar. Quem sabe, a partir dos achados e recolhidos de Gonçalves, outros autores encontrem ganchos para explicar o ambiente literário nacional contemporâneo, que às vezes repete como farsa o gosto pelos saraus exclusivos da burguesia que se imagina ousada e aprecia chocar-se com o mau comportamento de seus escribas indisciplinados. Quem sabe, o detalhamento da Semana, com obras como essas duas, dê novas luzes para iluminar o percurso criativo do que chamamos cultura brasileira.

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Sergio Leo

Repórter especial e colunista do Valor Econômico. Em 2009, seu livro de contos Mentiras do Rio ganhou o Prêmio Sesc de Literatura.

O pior ministro da Saúde - Alberto Hideki Kanamura ( FSP)

 Alberto Hideki Kanamura disse tudo o que era preciso dizer sobre o desgraçado “médico” que atualmente envergonha o Ministério da Saúde:

Paulo Roberto de Almeida 

O pior ministro da Saúde

Ele protelou medida urgente de saúde pública, ato irresponsável e nefasto

Folha de São Paulo, 6.jan.2022

Alberto Hideki Kanamura

(Médico há 45 anos, trabalhou por 30 anos na gestão de serviços públicos e privados de saúde)

Em março do ano passado, acreditei que não poderia haver pior ministro da Saúde do que o que estava sendo exonerado. Hoje descubro que o viés profissional tinha me enganado. Se aquele, por convicção e formação, era subserviente ao seu comandante em chefe, o atual é asquerosamente servil.

Quando declarou ser "preferível perder a vida do que perder a liberdade", papagueando o chefe, abdicou da sua autoridade médica ao não prescrever o passaporte vacinal. Depois, questionou a imunização em crianças. Disse que não abria mão, como maior autoridade sanitária, para decidir se a vacina deveria ou não ser aplicada. Consulta pública? A Anvisa não é confiável? 

Ele protelou medida urgente de saúde pública, contrariando a ciência e as entidades de especialistas. Ato irresponsável e nefasto. Adiar tal medida possibilita que suscetíveis adoeçam e até evoluam para a morte. Está prevaricando.

Sua obrigação legal é garantir, por ações, a redução de riscos das doenças e de agravos. Ainda que seja "antivacina" (parece não ser o caso), não deve fazer prevalecer sua opinião quando a Anvisa já se pronunciou, orientando-o à decisão mais acertada, com base técnica e científica. Textos hipocráticos já ensinavam: "depois de termos adquirido o completo conhecimento da medicina, nas idas e vindas, sejamos considerados médicos, não somente de nome, mas de fato. A inexperiência, o mau tesouro e o mau espólio, em sono ou vigília, não compartilhar da alegria e da tranquilidade, alimenta a covardia e o atrevimento. Pois a covardia assinala a falta de capacidade, e o atrevimento, a falta de perícia. São duas coisas distintas, a ciência e a opinião: uma produz saber, e a outra, ignorância".

Errar, todos erramos; para isso, há perdão. Não é perdoável, entretanto, que, deliberadamente, atente contra a população, usando a autoridade de ministro. O médico, quando ministro, não deixa de ser médico e deve seguir os preceitos da profissão. O juramento diz que, se estes forem cumpridos, possa desfrutar a vida afamada junto aos homens, e se os transgredir, que o contrário aconteça.

Quem sou eu para julgar? Mas, como médico, obrigo-me a denunciar um colega que está a transgredir os postulados éticos. Dois fundamentos do Código de Ética Médica foram contrariados. "O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho." Contra a sua formação, diz seguir o que manda o presidente.

"O médico terá, para com os colegas, respeito, consideração e solidariedade, sem se eximir de denunciar atos que contrariem os postulados éticos." Calou-se e até apoiou o presidente da República, que, contrariado com a decisão da Anvisa, jogou seus técnicos às feras no Coliseu das mídias sociais.

Além disso, transgrediu ao menos três artigos do código: 1 - "Ao médico é vedado causar danos ao paciente por ação ou omissão". Retardando a vacinação infantil, está causando danos a esta população; 2 - "Ao médico é vedado acumpliciar-se com os que exercem ilegalmente a medicina", acobertando abertamente quem prescrevia medicamentos sem eficácia; e 3 - "Ao médico é vedado permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico, ou do financiador público ou privado de assistência à saúde, interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico e tratamento disponíveis cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente e da sociedade".

Faço esta denúncia pública para escrutínio dos colegas por não acreditar que o Conselho Federal de Medicina, que hoje tem lado, vá tomar qualquer medida — a não ser contra mim, que me coloco do outro lado. Conclamo a todos que se dedicaram a ler este texto a refletir e a se perguntar: por que raios o médico quer ser ministro da Saúde?"


Acrescento (PRA): o CFM envergonha a corporação ao ser conivente e omisso com respeito aos atentados à saúde pública que vêm sendo perpetrados por autoridades políticas com a colaboração de profissionais da saúde que descumprem seu juramento de graduação.

Bolsonaro expõe a imundície de suas entranhas e de seu projeto eleitoral - Vinicius Torres Freire (FSP)

 O psicopata se degrada e degrada o país. O degenerado é uma escória ambulante que não consegue sequer ser um líder fascista, pois para  isso seria preciso ter um discurso organizado. O genocida é apenas o que restou do esterco da política, que só emergiu a parte da Grande Destruição lulopetista da economia e da moralidade pública.

O Brasil desgraçadamente caminha para mais um ano de mediocridade degradante com essa imundície no poder.

Paulo Roberto de Almeida 


Bolsonaro expõe a imundície de suas entranhas e de seu projeto eleitoral

Brutalidade, exibição de vergonhas e artes do espectro fascista são projeto eleitoral

Viniciu Torres Freire

Folha de S. Paulo, 9/01/2022

O espetáculo, a massificação da mentira e a propaganda da morte são atitudes típicas de políticos do espectro fascista. Jair Bolsonaro não é lá diferente. Foi assim a virada de ano da extrema direita brasileirinha, ainda mais repugnante na sua decomposição avançada, mas até por isso mesmo capaz de causar mais pestes.

O país se degrada, mais gente padece de fome, doença ou desgraças como as enchentes da Bahia. A administração pública se desorganiza mais, ora em revolta contra caprichos sectários desse tipo que ocupa a cadeira de presidente, que quer agradar polícias a fim de manter consigo falanges armadas.

Há operações-padrão de auditores da Receita, o que ameaça por exemplo a importação de combustíveis; há ameaça de greve geral de servidores. A produção da indústria encolheu pelo sexto mês seguido, o que não se via desde a recessão de 2015. Azares do tempo podem fazer com que a safra de grãos seja menor que a do ano passado —​se esperava recorde, um anteparo mínimo para a recessão que começa a aparecer no horizonte. Mas não há governo, tentativa de reação ou remédio. Ao contrário.

Bolsonaro vai a culto da Igreja Sara Nossa Terra, no Distrito Federal - @Bispo Robson Rodovalho no Facebook

O capitão da morte vadiava, indiferente a sofrimentos e desordens, rindo com sua catadura selvagem e sua boca espumante. Fazia o show do tiozão grosseiro desfilando com brinquedos caros e barulhentos. Era parte da palhaçada da autenticidade, show que em breve voltaria quase à indecência teratológica dos tempos das cirurgias, durante a internação indigesta do tapado. Uma parte do espetáculo de Bolsonaro é a exposição de suas entranhas morais e quase literalmente físicas: intimidades com a mulher com quem se casou, o corpo nu cheio de tubos, as cicatrizes e, agora, sua indigestão monstruosa.

"Foi domingo. Eu não almoço, eu engulo. Foi uma peixada, tinha uns camarõezinhos também. Eu mastiguei o peixe e engoli o camarão", disse, ao explicar sua mais recente internação.

A indecência, a brutalidade e a feiura são parte da estética política do bolsonarismo. Entender porque o despudor ainda comove suas falanges e um tanto mais do eleitorado é um problema, mas desde a irrupção de Bolsonaro tal exposição faz algum efeito. A exibição do desmazelo pessoal, corporal e social, sua boca-suja, seu linguajar iletrado e cafajeste, o chinelão, o leite condensado com migalhas espalhadas pela mesa, tudo faz parte da fantasmagoria da autenticidade.

O espetáculo vai além, claro. Há motociatas e comícios golpistas, assim como a nomeação de inimigos da pátria, do cardápio tradicional do espectro fascista. Há o heroísmo de fancaria de quem diz lutar contra o "sistema" e a difusão de mentiras conspiratórias que tempera esse brutesco. Há o farisaísmo, as blasfêmias e o uso do nome de Deus em vão, o que espantosamente não abala muita gente religiosa. Há a propaganda da morte, a crítica aos "tarados por vacina" e a indiferença quanto à morte de crianças. Tudo isso é tolerado, como se o salvador da pátria e da família tivesse de vir travestido de anticristão (o que também é o caso de Donald Trump).

E daí? Esse é o monstro que, daqui a outubro, tentará obter votos para a reeleição ou algum modo de sobreviver politicamente ou fora da cadeia. Esses são seus recursos. Bolsonaro não tem nada que qualquer governante no limite do universo da razão e da decência pudesse apresentar como realização. Seus instrumentos são a ameaça de morte, baderna armada, golpe e tirania, o grotesco nauseabundo e a apelação aos sentimentos mais baixos e desumanamente lunáticos _o tipo é indiferente à morte de crianças, ressalte-se.

Foi assim o Ano Novo de Bolsonaro. Por que acreditar que o ano eleitoral será diferente? O que mais lhe resta além da fuga? A desordem imunda.


sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Um exemplo do autismo americano - Richard Haass (Council on Foreign Relations)

 Ou, o mundo according to Washington. Mesmo os melhores acadêmicos americanos não conseguem escapar do americano-centrismo que caracteriza a maior parte de suas análises sobre os problemas mundiais.

Richard Haass, Presidente do Council on Foreign Relations, a mais prestigiosa instituição america de relações internacionais, acha que os problemas da descoordenação mundial da pandemia se devem ao “sistema internacional”, e não à política dos países, a começar pelos EUA, que tomaram pretexto da Covid-19 ter iniciado na China para desmantelar o trabalho que a ONU e a OMS poderiam ter feito nessa área, junto com outras entidades multilaterais (desprezadas e hostilizadas pelo Grande Mentecapto chamado Donald Trump). Todo o resto segue a mesma toada: os problemas estão com a China ou com a OMC, nunca com os EUA.

Paulo Roberto de Almeida 

 

Project Syndicate, Praga – 6.1.2022

A World of Mounting Disarray

From climate change to public health to geopolitical rivalry and the security of cyberspace, the gap between global challenges and responses is large and growing. And the resources needed to turn things around – especially collective will and skillful diplomacy – are in short supply.

Richard Haas

 

New York - My book, A World in Disarray, was published five years ago this month. The book’s thesis was that the Cold War’s end did not usher in an era of greater stability, security, and peace, as many expected. Instead, what emerged was a world in which conflict was much more prevalent than cooperation.

Some criticized the book at the time as being unduly negative and pessimistic. In retrospect, the book could have been criticized for its relative optimism. The world is a messier place than it was five years ago – and most trends are heading in the wrong direction.

At the global level, the gap between challenges and responses is large and growing. The COVID-19 pandemic exposed the inadequacies of international health machinery. We are entering the third year of the pandemic, but still do not know its origins, thanks to Chinese stonewalling.

What we do know is that more than five million people, and more likely 15 million, have died. We also know that some three billion people (many in Africa) have yet to receive a single dose of a COVID-19 vaccine. And we know that the ongoing pandemic has reduced global economic output by trillions of dollars.

Climate change has advanced. The world is already more than 1° Celsius warmer than it was at the start of the industrial revolution and is on course to get warmer. Extreme weather events are more frequent. Fossil fuel use is up.

Governments have pledged to do better. Their performance remains to be seen; in some cases, including China and India, the world’s two most populous countries, the pledges are noteworthy for their lack of ambition and urgency.

Cyberspace remains akin to the Wild West, with no sheriff willing or able to set boundaries on acceptable behavior. There is not even the pretense of global cooperation. Rather, we see technology outpacing diplomacy, with authoritarian governments going to considerable lengths to wall off their societies while violating the cyberspace of others to sow political discord or steal technology.

Nuclear proliferation continues. North Korea has increased the quantity and quality of its nuclear arsenal and the range and accuracy of its missiles. And, in the aftermath of the unilateral US decision in 2018 to exit the accord that placed temporary ceilings on Iran’s nuclear capabilities, the Islamic Republic has gone from being a year away from possessing a nuclear weapon to just a few months or even weeks.

Great power rivalry is more pronounced than at any time since the Cold War. US-China relations have deteriorated rapidly, mostly owing to increased Chinese repression at home, trade and economic frictions, and China’s growing military strength and increasingly assertive foreign policy. Against a backdrop of growing economic competition and possible conflict over Taiwan, it is unclear whether the two countries will be able to cooperate on global challenges like public health and climate change.

Russia is arguably even more disaffected with the world order. Three decades after the end of the Cold War, President Vladimir Putin, seemingly ensconced in power for the foreseeable future, is set on stopping or, if possible, reversing NATO’s reach. Putin has shown himself to be comfortable using military force, energy supplies, and cyberattacks to destabilize countries and governments he views as adversarial. The immediate target is Ukraine, but the strategic challenge posed by Putin’s Russia is much broader.

Other developments also offer reason for concern. More than 80 million – one in every hundred people – are displaced. Many times that number are enduring what can only be described as a humanitarian crisis. The Middle East is home to several ongoing wars that are simultaneously civil and regional.

Democracy is in retreat in much of the world, not just in dramatic cases such as Myanmar and Sudan, but also in parts of Latin America and even Europe. Haiti and Venezuela are essentially failed states, as are Libya, Syria, and Yemen. Afghanistan appears on its way to again becoming a world leader in terrorism, opium production, and misery.

There is one other critical factor: The United States is in greater disarray internally than it was five years ago. Political polarization is at an all-time high, and political violence has emerged as a serious threat. The peaceful transfer of political power following elections can no longer be taken for granted. This internal reality has in turn accelerated America’s pullback from global leadership after three-quarters of a century. No other country is able and willing to assume this role.

To be sure, some positive developments deserve mention: the rapid creation of vaccines that dramatically reduce vulnerability to COVID-19; new green technologies that reduce reliance on fossil fuels; growing cooperation between the US and several of its partners to push back against a more forceful China; and the simple fact that, so far, great power rivalry has not descended into war.

What would it take to avoid a future defined by disarray? A short list would include widespread vaccination against COVID-19 and new vaccines effective against future variants; a technological or diplomatic breakthrough that would dramatically reduce the use of fossil fuels and slow climate change; a political settlement in Ukraine that promotes European security and an outcome with Iran that prevents its becoming a nuclear or even near-nuclear power; a US-China relationship able to put in place guardrails to manage competition and avoid conflict; and a US that managed to repair its democracy sufficiently so that it had the capacity to focus on world events.

As always, little is inevitable, for better or for worse. What is clear, though, is that trends will not improve by themselves. Innovation, diplomacy, and collective will are needed to turn things around. Unfortunately, the last two are in short supply.

 

Richard Haass, President of the Council on Foreign Relations, previously served as Director of Policy Planning for the US State Department (2001-2003), and was President George W. Bush's special envoy to Northern Ireland and Coordinator for the Future of Afghanistan. He is the author, most recently, of The World: A Brief Introduction (Penguin Press, 2020).