Faz meio milênio, um diplomata florentino caído em desgraça com a mudança de regime em sua república natal, escreveu, no ostracismo, a obra fundadora da política moderna, talvez a obra seminal de todas as políticas. Abaixo apresento um artigo do cientista político Renato Lessa, que trata da obra e do homem, e de seu impacto permanente não apenas na política prática, mas sobretudo no pensamento político moderno.
Eu também me dediquei a pensar sobre o homem e a obra, e a ele dediquei um de meus exercícios de "clássicos revisitados", reescrevendo
para os nossos tempos, consignando, também, na introdução e na conclusão, meus sentimentos em relação ao personagem, seu papel na história e as lições que poderiam ser tiradas de certos episódios para nossa reflexão contemporânea.
Ainda falaremos de Maquiavel neste ano de 2013.
Maquiavel, Maquiavéis
Há
cinco séculos, no ano de 1513, Nicolau Maquiavel, político e pensador
florentino, escreveu uma carta a um embaixador de sua cidade noticiando
que escrevera “um livreto”, que designa como
De principatibus e tornou-se conhecido como
O Príncipe.
Os termos da carta exalam modéstia e engenho simples: trata-se de
investigar o que é o principado – “de que espécie são, como se
conquistam, como se mantêm, por que se perdem”. Tal concisão não impediu
que o “pequeno livro” se tornasse uma das principais obras da cultura
moderna, e não apenas do pensamento político moderno.
Em comemoração aos cinco séculos de
O príncipe, o
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revisitará, em abordagem ampliada, vários ângulos da obra geral de
Maquiavel. O pretexto da efeméride dará passagem à publicação mensal de
ensaios elaborados por estudiosos especialmente convidados.
O título da série – Maquiavel, Maquiavéis – foi tomado de empréstimo
do livro da cientista política Maria Tereza Aina Sadek, que gentilmente autorizou seu uso.
O tema da complexidade parece ser, hoje, apanágio das assim chamadas
ciências exatas. De fato, complexos são os sistemas orgânicos e, por sua
vez, os inorgânicos nada lhes ficam a dever. Tanto uns como outros são
avessos à explicação monocausal e, com alguma frequência, manifestam-se
de forma caótica, desafiando a velha crença da modernidade de que a
estabilidade das causas é garantia da estabilidade dos efeitos.
Há exatos 500 anos, na cidade de Florença, Nicolau Maquiavel (1469-1527), homem público e intelectual, concluiu
O príncipe.
Não é exagero dizer que antes dos 'filósofos naturais' – nome que então
se atribuía ao que hoje definimos como 'cientistas' – terem dado conta
da complexidade presente nos fenômenos naturais, o livro introduziu na
cultura ocidental o 'fato da complexidade' como constitutivo das
relações entre os humanos.
O pequeno livro foi dedicado ao “Magnífico Lorenzo de Medici”,
governante florentino e membro da família mais poderosa da cidade. A
dedicatória pode sugerir a olhos precipitados um vínculo temático e
estilístico do “pequeno volume” – como o designava Maquiavel – com o
estilo literário e político conhecido como “espelho de príncipes”. O
estilo tinha como traço central a enumeração, com frequência por parte
de um autor protegido ou patrocinado para tal fim, das qualidades
necessárias para o governo de um príncipe virtuoso. Quando não tendia
para a bajulação aberta, procurava fixar uma coleção de bons preceitos
diante dos quais o governante deveria se espelhar.
Já na dedicatória, Maquiavel indica a natureza distinta de seu
empreendimento. Embora dedicado a um príncipe, a obra parte de uma
curiosa e inovadora premissa. Como que se desculpando pela ousadia de
dirigir-se a um príncipe como Lorenzo, Maquiavel – que se apresenta como
“homem de baixa e ínfima condição” – sustenta que “para conhecer a
natureza dos príncipes é preciso ser povo”, assim como “para bem
conhecer a natureza dos povos, é preciso ser príncipe”. A natureza do
governo, portanto, aparece não como fundada na consulta principesca de
um catálogo de preceitos morais e religiosos, mas emerge da interação
sempre complexa e um tanto imprevisível entre os 'grandes' e os
'pequenos'.
Se a natureza de um povo é constituída pela direção política à qual
se submete, o significado do governo do príncipe é mais bem revelado
pela observação que sobre ele fazem seus súditos, ou suas vítimas. Não
sendo, pois, um 'espelho de príncipes', do que trata, afinal, este
livro, um dos mais importantes da cultura ocidental moderna?
Complexidade política
O tema fundamental de
O príncipe é o da 'complexidade da
política' e, por extensão, da história. É isto que corre como pano de
fundo para o tratamento de diferentes regimes políticos – os principados
–, que têm em comum, ao contrário das repúblicas, a presença de
sistemas monocráticos e de concentração de soberania.
Em obra iniciada em 1513 e concluída em 1517, os
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio,
Maquiavel ocupou-se das repúblicas, tema de grande ancestralidade. A
complexidade dos principados não deriva tanto da diversidade de suas
formas: há os hereditários, os tomados por conquista, os novos, os
eclesiásticos, todos com características próprias, desafios aos
governantes e expectativas dos súditos. Mas pode-se dizer que há um
suporte de complexidade básica que subjaz à variedade das formas
políticas, e ele diz respeito ao lugar ocupado pela política nos
assuntos humanos.
Se este é o foco, Maquiavel não pode, por outro lado, ser tomado como
um 'pensador político', no sentido de um 'especialista' em política.
Sua sensibilidade para fenômenos de natureza política foi envolvida por
um conjunto amplo de questões e formas de conhecimento, tais como a
antropologia – ou um exame da condição humana –, a história, a
cosmologia e a filosofia. Para começar, a própria ideia de política –
que comparece ao texto não como termo, mas como problema – deve ser
clarificada.
- Em sua obra mais
conhecida, 'O príncipe', Maquiavel mostra que a política, na
modernidade, supõe a dominação de um soberano sobre seus súditos. Para
ele, é justamente este exercício de soberania que torna a sociedade
possível.
Os padrões estabelecidos pela Antiguidade – presentes na democracia
ateniense e na república romana – fizeram da ideia de política algo que
pode ser definido como uma prática de deliberação pública a respeito de
assuntos de interesse comum. Se fossemos representar tal prática em
termos gráficos, uma linha horizontal seria suficiente. É essa
representação que decorre da própria noção grega de 'isonomia' política –
ou de equivalência dos cidadãos na vida pública –, presente, como
ideal, nas repúblicas.
A política no experimento de Maquiavel aproxima-se mais da linha
vertical do que da horizontalidade dos antigos. Aqui, trata-se de
mostrar que política, na abertura da modernidade, supõe exercício de
dominação de um soberano sobre seus súditos, ou dos grandes sobre os
pequenos.
A nostalgia deliberativa da democracia grega e da república romana
cede lugar a um experimento que tem no exercício da dominação um
'princípio de vertebração' da sociedade, sem o qual ela colapsa. Em
outros termos, o que torna a sociedade possível é o exercício da
soberania: há ordem ali onde se faz clara a determinação de quem manda e
de quem obedece. É este o sentido da política: instituir na vida social
um fundamento implicado no próprio exercício do poder.
Cosmologia precisa
O valor e a necessidade desse fundamento podem ser dados pela
antropologia de Maquiavel, apoiada, por sua vez, em uma cosmologia
precisa. Os homens habitam, tal como no sistema aristotélico-ptolomaico,
o domínio sublunar, distinto do padrão cosmológico do mundo supralunar.
Este, de acordo com Aristóteles, é constituído por movimentos naturais,
perpétuos e necessários. Perfeição e necessidade são seus atributos
centrais, e o conceito de 'movimento natural', egresso da física
aristotélica, é fulcral: trata-se do trajeto de um corpo na direção de
seu lugar natural.
O cosmo aristotélico, em seu estrato supralunar, é o espaço por
excelência dos movimentos naturais. 'Movimentos violentos', por
oposição, são aqueles que dirigem corpos a lugares não-naturais – ou
lugares que não são seus por natureza –, o que pressupõe a mediação de
um agente que introduz no mundo um princípio de desordem e
indeterminação.
O cosmo de Maquiavel, tal como ensinado em seu tempo pelos
aristotélicos da cidade de Pádua, possui tal fisionomia. O mundo
sublunar, mesmo que marcado por regularidades físicas, é o lugar natural
dos movimentos não-naturais, pela simples razão de que é apenas nesse
estrato inferior que podemos encontrar os humanos. A cosmologia dá,
assim, passagem à antropologia, e vemo-nos diante da representação
maquiaveliana da condição – ou natureza – humana.
Não são auspiciosas as imagens que disto se seguem. Não é que os
humanos sejam maus por natureza, mas são erráticos nas suas paixões,
desejam com frequência melhorar sua condição, são capazes de gestos de
grandeza, mas podem odiar, invejar e abrigar ambições descabidas; no
limite, são letais. Em uma palavra, não há na natureza humana um
substrato mínimo de estabilidade; os humanos devem ser contidos de fora
para dentro, até mesmo para que aprendam a conter-se de dentro para
fora.
A política é tudo, menos estabilidade consolidada. Falar de política
implica pôr-se no universo existencial da incerteza. Este é o mantra da
'ciência política' maquiaveliana
Não há em Maquiavel intenção condenatória: para ele essa antropologia
é um fato da espécie e manifesta-se por toda parte e por todos os
tempos. Se quisermos, é este mesmo um princípio de estabilidade: a
instabilidade permanente do comportamento humano. Os humanos não cabem
dentro de si. Espinosa e Freud bem entenderam, cada um em seu tempo, as
implicações da antropologia de Maquiavel: para o primeiro, a potência da
multidão excede sempre as formas institucionais que a procuram conter;
para o segundo, por mais que a civilização exerça sobre nós sua
disciplina, a energia pulsional segue vigente e igualmente excessiva.
Pois bem, a política é o remédio para a condição humana sempre
instável e falível. Tal instabilidade, contudo, tem como um de seus
princípios o fato de que tudo que é valioso para os humanos é objeto de
inveja e disputa. Tal princípio não pode deixar de afetar a própria
política, tornando-a, desta forma, igualmente instável. O próprio lugar
do príncipe está, por definição, sempre em disputa; o príncipe não é,
além disso, uma exceção antropológica. Ou seja, o princípio de
instabilidade é responsável pela introdução continuada de instabilidade.
A política é tudo, menos estabilidade consolidada. Falar de política
implica pôr-se no universo existencial da incerteza. Este é o mantra da
'ciência política' maquiaveliana.
Fortuna e virtude
Nada mais distante de Maquiavel do que a pretensão de que foi o
fundador de uma ciência capaz de tornar os fenômenos políticos
explicáveis e previsíveis. Basta levar em conta o papel que atribuiu à
'fortuna' – ou o conjunto de fatores fora de nosso alcance,
proporcionados pelo acaso – nos assuntos humanos.
Para ele, nada menos do que a metade de nossas ações é pautada pela
fortuna. Isso vale tanto para o cidadão comum – que se agarra às rotinas
do hábito como subterfúgio ao assédio do acaso – como para o príncipe,
acossado sempre por inimigos e por amigos invejosos e inconfiáveis. Para
o príncipe não há como escorar-se no hábito. O que se lhe impõe, na
perspectiva de conservar e ampliar seu domínio, é a ação; uma ação que,
diante do imponderável – da imprevisibilidade – da fortuna, exige uma
qualidade específica, sem a qual tudo colapsa, a
virtù.
Para Maquiavel, nada menos do que a metade de nossas ações é pautada pelo acaso
Não se trata aqui da virtude pregada aos príncipes pelos 'espelhos de
príncipes'. Não há catálogo de virtudes morais e de preceitos
religiosos que nos ensine a lidar com a política tal como ela é, é o que
Maquiavel está a dizer. É a capacidade de extrair da fortuna – da
indeterminação da vida e da volatilidade da política – um curso de ação
positivo. Em linguagem corrente, trata-se de fazer do acaso uma
estrutura de oportunidades para novas opções e para a sobrevida e
ampliação da capacidade de exercer poder.
Quem detém essa capacidade, tão essencial para a política? Ninguém
por direito divino ou de casta. A capacidade política – um dos sentidos
da ideia de
virtù – é sociologicamente cega: ou seja, não há em Maquiavel nada que a defina como monopólio de aristocratas; um
condottiere de extração popular bem pode detê-la.
Por fim, Maquiavel estabelece premissas importantes para o
conhecimento da política. Francis Bacon (1561-1626), um dos heróis da
ciência moderna, nele reconhecerá uma inovação teórica fundamental, a de
proceder segundo princípios indutivos, tomando por base os exemplos
históricos.
- Francis Bacon,
considerado um dos pais da ciência moderna, reconhecerá em Maquiavel uma
inovação teórica fundamental, a de proceder segundo princípios
indutivos, tomando por base exemplos históricos. (imagem: Wikimedia
Commons)
A política, assim como a história, são vulneráveis às artes do acaso,
mas podem ser conhecidas, em alguma medida. Assim como a natureza se
abre à observação do naturalista, os exemplos históricos constituem a
‘natureza’ do historiador Maquiavel. Aprender com o que fizeram, ao
longo do tempo – para o bem ou para o mal –, soberanos e diversos
potentados, verificar as condições nas quais decisões foram tomadas,
seus efeitos etc. – tudo isso forma um grande catálogo de exemplos
aplicáveis diante de situações semelhantes. Empreendimento imenso,
ilimitado e inacabável. Mais do que isso, sempre vulnerável à imperita
coleta de exemplos e à infeliz interpretação. Tudo isso agravado pelo
fato de que o conhecimento político é uma exigência da ação política;
ele tem o tempo da própria ação, o que lhe imprime imensa falibilidade.
Para entender a política é fundamental ler o livro da História. Mas
ao lê-lo, não há qualquer garantia de infalibilidade. A ciência da
política é uma tentativa de conhecimento sistemático daquilo que não se
dá a conhecer sistematicamente. É esse o legado de Maquiavel e a sua
utopia para o conhecimento humano.
Renato Lessa
Laboratório de Estudos Hum(e)anos
Departamento de Ciência Política
Universidade Federal Fluminense