O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 1 de julho de 2012

O Mercosul e a Uniao Europeia: texto PRA de 2005

Entre 2004 e 2005 participei um exercício de planejamento estratégico sobre o futuro do Brasil. Nesse contexto elaborei muito estudos de prospeção estratégica, entre eles este, abaixo transcrito, de relações entre o Mercosul e a União Europeia. Eu não era exatamente ingênuo, a ponto de acreditar que um acordo seria fácil ou até mesmo possível, mas os termos de referência eram para tratar das relações, não da ausência de relações. O texto ainda tem resquícios da antiga ortografia (européia, oor exemplo).


Mercosul-União Europeia
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília,  21 de junho de 2005
1. Apresentação

1.1  O tema estratégico
O tema estratégico "Mercosul e União Europeia" refere-se ao processo de criação de um espaço econômico de liberalização do comércio de bens e serviços e dos investimentos recíprocos entre essas duas áreas de integração, mediante a assinatura de um acordo birregional dando partida à gradual integração de mercados entre os dois blocos. Não deve ser considerado como absolutamente seguro que esse acordo conduza a uma única zona de livre-comércio unindo as duas regiões, com perfeita e abrangente liberalização de todos os intercâmbios recíprocos, uma vez que persistem diferentes restrições setoriais à constituição de um mercado unificado – sobretudo de ordem agrícola, do lado europeu, predominantemente de natureza manufatureira e de serviços, do lado do Mercosul –, mas é certo que um acordo bem sucedido deve liberalizar amplamente o acesso recíproco aos mercados de bens e serviços, facilitar e ampliar os investimentos, aumentar a interface de cooperação técnica, científica e tecnológica, e até mesmo cultural – em especial no sentido Norte-Sul – e incrementar a cooperação política entre as duas entidades nos planos regional e internacional.
Cabe ao Brasil, primeira economia do Mercosul e importante parceiro individual da UE nos mais diferentes terrenos, uma posição de liderança nesse processo negociador, que vem enfrentando dificuldades conjunturais e setoriais em ambos os lados.

1.2  Os objetivos estratégicos
O objetivo estratégico é não apenas lograr a conclusão de um acordo bem sucedido e satisfatório para os dois lados, mas igualmente transformar o espaço de liberalização progressiva assim criado em plataforma para a criação e ampliação de um espaço econômico verdadeiramente integrado dos dois lados do Atlântico, contribuindo poderosamente para a liberalização ampliada da economia mundial e o reforço dos laços de interdependência recíproca. Em última instância, a maior integração entre os dois blocos contribuirá para o aumento da prosperidade econômica e do bem-estar social no Cone Sul, cujos níveis de renda e de desenvolvimento são inferiores em dois terços, em média, aos indicadores observados na Europa ocidental.
Contudo, comparativamente ao processo paralelo, igualmente em curso, de integração hemisférica (Alca), a liberalização Mercosul-UE apresenta um menor potencial transformador, na medida em que os padrões observados de comércio entre as duas regiões registram uma conformação tipicamente Norte-Sul – isto é, produtos primários e semiprocessados a partir do Cone Sul e bens e serviços mais sofisticados provenientes da Europa –, ao passo que os padrões hemisféricos indicam um maior componente de valor agregado nos bens transacionados pelas economias do Mercosul. O acordo entre o Mercosul e a UE será um sucesso se ele permitir, precisamente, alterar gradativamente esse perfil relativamente desigual do comércio inter-regional.

2.    A potencialidade e a importância estratégica das relações Mercosul-UE
Os países do Mercosul e da União Européia, independentemente dos processos respectivos e da dinâmica própria dos itinerários integracionistas de cada uma das partes, já conformam, historicamente, duas regiões ligadas pelos laços da história, dos aportes étnicos europeus à formação dos povos do Cone Sul, do patrimônio cultural compartilhado, da integração econômica natural ao longo dos séculos, por longas e estáveis relações diplomáticas, bem como pelos fluxos humanos e culturais de todos os tipos estabelecidos no decorrer do período contemporâneo. A adesão a um conjunto de valores compartilhados e os muitos laços afetivos e estruturais existentes nessas relações – facilitados pela língua, religião e cultura, ademais de formas relativamente semelhantes de organização econômica, social e política – conformam um substrato favorável ao estabelecimento, à ampliação e à consolidação desse espaço econômico integrado que se pretende constituir.
A UE já representa, no conjunto e no caso de países individuais, um dos mais importantes parceiros, junto com os EUA, dos países do Mercosul, nos mais diferentes aspectos da vida econômica e cultural destes últimos. A conformação de um acordo político de liberalização ampliada dos intercâmbios deve reforçar esses laços históricos e permitir, quando ele for plenamente operacional, o surgimento de uma das mais importantes áreas de liberalização econômica no quadro do sistema multilateral de comércio, regido pela OMC. Será, igualmente, com características algo diferentes – em função justamente da componente política e cultural a ele associado –, um competidor natural do, e uma complementaridade necessária ao, acordo de liberalização hemisférica também em curso de negociação.

3. Conjuntura atual e retrospectiva da situação da associação Mercosul-UE           
São antigos os laços econômicos, diplomáticos e culturais entre as duas regiões. No período contemporâneo, a Europa ocidental forneceu o essencial dos aportes humanos, tecnológicos e financeiros para a conformação dos modernos Estados-nacionais da América Latina, em especial os do Cone Sul, países nos quais a componente propriamente européia supera amplamente o antigo substrato autóctone (indígena) encontrável na maior parte dos países andinos e amazônicos. Vieram da Europa os capitais necessários à construção da moderna economia exportadora e da infra-estrutura do Cone Sul, assim como foram basicamente europeus, até meados do século XX pelo menos, os principais mercados importadores e exportadores desses países.  A presença cultural européia é inegável, assim como, inclusive na vertente autoritária, os modelos políticos e partidários que moldaram as modernas sociedades do Cone Sul.
No imediato pós-Segunda Guerra, a experiência européia, nos planos nacional e integrado, de reconstrução e de desenvolvimento econômico e social despertou curiosidade e desejo de emulação nos países do Cone Sul, que demandaram dos EUA o mesmo tratamento generoso que aquele concedido, no quadro do Plano Marshall, aos países europeus colocados sob a influência da maior potência ocidental. Os experimentos de nacionalização de ativos estratégicos e de planejamento indicativo em diversos países europeus encontraram igualmente nos países latino-americanos grande receptividade, da mesma forma como as primeiras experiências de integração econômica.
Quando, depois que se fez o primeiro acordo de administração conjunta dos recursos estratégicos do carvão e do aço (Tratado de Paris de 1951), se adotou o modelo comunitário para impulsionar o processo de integração na Europa, mediante os tratados de Roma de 1957, os países do Cone Sul deram igualmente a partida de seu itinerário integracionista. Nas condições daquele momento, não era possível, inclusive devido a caráter excêntrico da maior parte dessas economias, passar diretamente à conformação de um mercado comum, como estabelecido num dos tratados de Roma, razão pela qual se optou pelo objetivo menos ambicioso de um acordo de livre-comércio (muito embora, as circunstâncias efetivas recomendassem o formato ainda menos abrangente de uma simples zona de preferências tarifárias, algo, entretanto, não previsto no artigo 24 do GATT-1947, que regulava as relações de comércio de suas partes contratantes, inclusive no que se refere às derrogações permitidas à cláusula de nação-mais-favorecida).
Quando, portanto, se deu a partida ao mercado comum europeu, cujo formato inicial, alcançado em 1968, era o de uma união aduaneira, os países da América Latina iniciaram sua primeira tentativa de livre-comércio, ao abrigo do primeiro Tratado de Montevidéu (1960), que criou a Alalc, Associação Latino-Americana de Livre-Comércio. Contemporaneamente, contudo, vários desses países, com ênfase no Brasil, contestaram no GATT não apenas o relativo protecionismo do esquema europeu – rapidamente instituído sob o formato da política agrícola comum, feita de muitas restrições quantitativas às importações e diferentes mecanismos de sustentação interna da produção e da comercialização – como também os laços preferenciais que passaram a unir, desde então, as ex-metrópoles coloniais européias aos novos países independentes na África e na Ásia, que passaram a dispor de acesso privilegiado para suas exportações de commodities aos mercados europeus, em detrimento da oferta concorrente dos países latino-americanos.
Isso não impediu que alguns países latino-americanos procurassem emular ou imitar os objetivos e o formato comunitário da experiência européia de integração, como foi o caso, em 1969, dos países andinos, mediante o Protocolo de Cartagena, que tendia a reproduzir algumas das instituições típicas do processo europeu. Na fase seguinte, a integração latino-americana enfrentou diversos contratempos e retrocessos, no contexto dos regimes militares que dominaram a maior parte dos países da região, ao mesmo tempo em que o próprio processo de integração na Europa avançava lentamente, depois do desmantelamento do sistema de Bretton Woods, em 1971, que também significou o adiamento de uma primeira tentativa de unificação monetária no âmbito da Comunidade Europeia. Ainda assim, o experimento europeu dá início a um lento mas contínuo esforço de ampliação do número de países membros e de aprofundamento dos mecanismos de integração.
No bojo dos impulsos de liberalização comercial, de abertura econômica e de retomada das orientações liberais em matéria de políticas econômicas, que ocuparam cada vez mais espaço a partir dos anos 1980, tanto na Europa como na América Latina são redefinidos e reforçados os respectivos processos de integração econômica. Depois de passar a nove membros no início dos anos 1970 – com a adesão do Reino Unido, República da Irlanda e Dinamarca em 1973 –, a CE alcança doze membros em meados dos anos 1980, com o ingresso da Grécia, de Portugal e da Espanha, estabelecendo logo em seguida, pelo Ato Único de 1986, o acabamento do mercado unificado, previsto para 1992. No Cone Sul, Brasil e Argentina dão novo formato ao processo de integração, criando, no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração – que tinha substituído, em 1980, a Alalc –, um esquema sub-regional que visava á constituição de um mercado comum bilateral no espaço de dez anos.
Esse processo, como se sabe, foi ampliado no início dos anos 1990, dando origem ao Mercosul, mediante o Tratado de Assunção de março de 1991, que agregou o Paraguai e o Uruguai ao objetivo brasileiro-argentino de se constituir um mercado comum em meados da década. Imediatamente após o novo esquema sub-regional de integração foi apresentado pelos chanceleres dos quatro países membros aos representantes da CE, com vistas a examinar as possibilidades de cooperação entre as duas áreas de integração. Como resultado dessa aproximação, em meados de 1992 era assinado um acordo de cooperação interinstitucional entre a Comissão das Comunidades Européias e as instituições do Mercosul – esta ainda não estava dotada de personalidade jurídica internacional – pelo qual se formalizou o diálogo e a cooperação entre as duas regiões, a ser feita, preferencialmente, através de estudos técnicos em favor da Secretaria administrativa do Mercosul, com sede em Montevidéu.
A realização da Cúpula das Américas (9 a 11 de dezembro, em Miami), com uma declaração final dos chefes de Estado dos 34 países participantes comprometendo-se com o objetivo de negociar uma área de livre-comércio hemisférica até 2005, induz os membros do Mercosul e da CE a acelerarem seus objetivos igualmente integracionistas. Imediatamente após, em 22 de dezembro, é firmada em Bruxelas uma Declaração Solene Conjunta entre o Mercosul e a União Européia, prevendo a negociação, em 1995, de um Acordo-Quadro Inter-Regional de Cooperação Econômica, conduzindo, em última instância, à liberalização do comércio entre as duas regiões. De fato, um ano depois, em Madri, é firmado um acordo-quadro de cooperação inter-regional entre a UE e o Mercosul, prevendo a constituição de um espaço de liberalização comercial entre as duas regiões. Cautelosamente, porém, se diz na declaração que o acordo “deverá levar em conta a sensibilidade de certos produtos”, o que constitui não apenas uma referência à Política Agrícola Comum européia, mas igualmente às preocupações do Mercosul em matéria de produtos de maior valor agregado e de serviços.
Em meados de 1998, com alguns progressos sendo alcançados nas negociações da Alca – e o início das negociações efetivas em 1999 –, a Comissão Européia, principal órgão executivo da UE, decide propor ao Conselho dos 15 Ministros iniciar negociações com o Mercosul e com o Chile com o intuito de desenvolver uma associação inter-regional, estabelecendo, entre outros objetivos, uma zona de livre comércio. As negociações com o Chile avançam bem mais rapidamente do que as do Mercosul, em virtude da maior latitude liberalizante do país andino, em contraste com os temores alimentados tanto pela UE como pelo Mercosul em função da referida sensibilidade de certos produtos. Ao mesmo tempo, os países do Mercosul e da CAN assinavam em abril de 1998, em Buenos Aires, um acordo-quadro que previa a criação de uma zona de livre comércio entre os dois blocos a partir de janeiro de 2000 (objetivo reafirmado nesse mesmo ano e muito limitadamente alcançado no segundo semestre de 2004).
Entre 1999 e 2001, a União Européia fez progressos na introdução de sua moeda única – que seria utilizada, num primeiro momento, por doze de seus quinze membros –, ao passo que o Mercosul entrava em séria crise de identidade, apenas parcialmente vinculada às assimetrias cambiais ainda em vigor – passagem a um regime de flutuação no Brasil, manutenção, cada vez mais periclitante, do sistema de conversibilidade na Argentina – e mais diretamente provocada pelos desajustes da estabilidade ainda não alcançada, em nenhum dos dois países. Os processos negociadores paralelos da Alca e do Mercosul-UE fazem alguns progressos iniciais, mas depois entram em compasso de espera, embora por motivos distintos. No casa da Alca, persistiam diferenças fundamentais entre os EUA e o Brasil, os dois presidentes do exercício a partir do final de 2002, quanto à amplitude e modalidades do acesso aos mercados recíprocos, bem como em relação aos temas não estritamente comerciais que deveriam compor esse acordo abrangente. No caso da UE, as diferenças se davam sobretudo em relação à extrema modéstia da abertura agrícola européia e às hesitações sempre latentes do Mercosul, em especial do Brasil, com respeito aos temas de investimentos e setores industriais menos competitivos. Em ambos os exercícios, itens ditos sistêmicos também bloqueavam a pauta negociadora, como propriedade intelectual, compras governamentais e a questão mais ampla das subvenções agrícolas.
De alguma forma, as negociações mantinham certa correspondência de intenções e de profundidade, uma vez que os avanços em uma frente teriam de ser “compensados” ou “equiparados” com ofertas e concessões obtidas na outra frente. Assim, quando o exercício da Alca foi significativamente diminuído em função de um acerto entre os EUA e o Brasil para compor o que foi chamado de “Alca à la carte” – formato inclusive incorporado, sob outra linguagem, na declaração ministerial de Miami, de novembro de 2003 – era de se esperar que as negociações entre a UE e o Mercosul também sofressem de paralisia, quando não de retrocesso. Foi o que de fato ocorreu.
Assim, avanços adicionais em ambos os processos negociadores parecem agora depender estreitamente de resultados reais que possam ser alcançados no exercício mais amplo da Rodada Doha da OMC, em especial no que se refere, simetricamente, aos temas de agricultura e de liberalização adicional no setor industrial. Os prazos que tinham sido originalmente acordados para um e outro exercício, que se situavam em torno de 2005, tiveram assim de ser realisticamente revistos, sendo provável que as negociações venham a termo apenas a partir do final de 2006 ou mesmo além.

4.    Olhando o Futuro
Não obstante a correspondência e mesmo certa similitude de agendas negociais entre a UE e o Mercosul, de um lado, e as negociações para a formação da Alca, de outro, seria preciso fazer uma distinção entre cada um desses processos, em nome das diferenças políticas e institucionais que existem entre eles.
O acordo da Alca, quando e se concretizado, será exclusivamente um espaço de liberalização comercial, ainda que abrangente e ambicioso (se concluído em seu formato original), ao passo que as negociações entre a UE e o Mercosul, ainda que cobrindo essencialmente os mesmos terrenos em seus aspectos comerciais, devem ser vistas no quadro mais amplo do relacionamento político-estratégico entre os dois blocos de integração. As origens são obviamente distintas, na medida em que Mercosul e UE mantinham relações políticas, institucionais e de cooperação técnica, antes mesmo de decidirem engajar consultas e negociações para a liberalização do comércio recíproco.
No caso da Alca, ainda que ela tenha tido um antecedente precoce, sob a forma da “Iniciativa para as Américas”, de Bush pai, em 1990, esse projeto não foi precedido de consultas ou conversações extensas, em bases institucionais, antes das reuniões preparatórias da cúpula de Miami, em dezembro de 1994. Trata-se, como no caso de tentativas precedentes, de uma proposta unilateral dos EUA, oferecida ao continente e destinada, numa primeira abordagem, a ser concretizada caso a caso, isto é, por meio da adesão negociada de cada um dos parceiros individuais da região ao esquema já concertado previamente do Nafta. No caso da UE, a proposta era, precisamente, a de uma negociação bloco a bloco, e ela só faria sentido, do ponto de vista da UE, se o Mercosul se apresentasse unido e coeso nos seus propósitos negociadores, em especial quanto ao formato de união aduaneira que deveria ser o do bloco do Cone Sul no período posterior a 1995.
Os representantes dos blocos europeu, de um lado, e do Cone Sul, de outro, sempre apresentaram essa conexão como sendo marcada pelo sentido político do reforço dos laços políticos entre as duas regiões, como inserida num contexto multilateral mais amplo e como propiciadora de novos patamares de integração que transcenderiam os simples aspectos comerciais das relações. Questões políticas estariam igualmente em causa no processo negociador, entre elas a do reforço das posições de cada bloco no âmbito multilateral e a da participação de outros atores que não apenas os negociadores comerciais na montagem da arquitetura de cooperação ampliada entre as duas regiões. O papel dos Estados e das instituições nacionais, regionais e multilaterais deveria ser levado em conta, ademais da dimensão dos mercados e dos interesses mais imediatamente mercantis envolvidos com a liberalização recíproca dos intercâmbios inter-regionais. Em outros termos, nas negociações UE-Mercosul estariam em consideração bem mais do que comércio e investimentos.
Não obstante, é evidente que num e noutro caso, o núcleo central dos processos negociadores é a aceitação de um grau mais ou menos amplo de acesso a mercados, mesmo nas áreas sensíveis, e a concordância com um conjunto mínimo de regras de tratamento nacional ou normas preferenciais para os investimentos recíprocos e outras áreas de caráter dito “sistêmico”. Nesse particular, se o núcleo central de questões econômicas e comerciais não for suscetível de avançar para graus mais amplos de liberalização, parece evidente que os demais aspectos da integração birregional e da cooperação não estritamente comercial correm o risco de permanecerem no papel ou nas declarações retóricas dos dirigentes de cada região.
Com a UE existe ainda o agravante de que a composição do comércio expressa um padrão bem mais tradicional, do tipo Norte-Sul, do que os fluxos mantidos, mesmo sem qualquer esquema preferencial, no âmbito hemisférico, bem mais equilibrados quanto à composição relativamente diversificada entre os diversos setores da economia. De resto, o “núcleo duro” do protecionismo setorial europeu concentra-se precisamente naquelas áreas de maior competitividade estrutural do Mercosul, qual seja, o agronegócio, o que faz prenunciar inúmeras dificuldades para a consecução de um acordo satisfatório do ponto de vista deste último bloco. Os dois blocos possuem economias supostamente complementares, mas as vantagens comparativas naturais (e adquiridas) do Mercosul enfrentam as dificuldades advindas de uma política agrícola comum extremamente reticente em desmantelar os mecanismos protecionistas defensivos mantidos há décadas, ademais dos instrumentos ofensivos, e basicamente desleais, construídos para sustentar artificialmente a competitividade externa da produção agrícola européia. Os lobbies agrícolas europeus, extremamente poderosos no plano nacional – em especial nos países meridionais ‑, têm, assim, obstado maiores avanços nas propostas negociadoras que poderiam ser feitas pela Comissão Européia.
Do lado do Mercosul, outros impedimentos ao avanço das negociações existem, como as dificuldades conjunturais em determinadas economias e obstáculos estruturais vinculados à fragilidade percebida ou real de setores econômicos pouco competitivos no confronto com os congêneres europeus (e dos EUA), geralmente localizados nas indústrias de ponta e nos serviços necessitando de ampla base de capital. Por fim, as dificuldades advindas da liberalização multilateral no âmbito da Rodada Doha da OMC, em paralelo com especificidades do esforço contemporâneo no quadro da Alca, contribuíam, igualmente, para retardar o exercício negociador no plano dos dois blocos de integração.

5.    Soluções Estratégicas:
Soluções estratégicas no quadro de processos negociadores estão diretamente relacionadas às condições sob as quais os parceiros do jogo em questão conseguem fazer valer interesses comuns na busca conjunta de uma melhor situação de bem-estar para todas as partes. Essa situação, no âmbito dos processos de liberalização recíproca de fluxos de comércio e investimentos é sempre, como indicam os economistas, um second-best, isto é, pois que envolve escolhas e preferências exclusivas que se fazem em detrimento de um leque mais amplo, ou praticamente universal, de parceiros possíveis num continuum de trocas globais que deveria existir sem barreiras à entrada.
Em princípio, as maiores vantagens competitivas são exercidas quando a competição pode ser efetivamente exercida numa gama mais vasta de opções de livre escolha, o que conforma, geralmente, os mecanismos de abertura unilateral ou de acordo multilateral irrestrito. Qualquer outra solução poderia ser classificada como sendo third-best ou além, diminuindo as possibilidades de escolha por parte dos agentes econômicos (tanto produtores como consumidores). Por isso que os promotores contemporâneos do regionalismo insistem em apodá-lo de “aberto”, querendo com isso dizer que as soluções de caráter restrito no plano geográfico não deveriam opor-se a esquemas mais amplos de liberalização ou mesmo aos esforços multilaterais de abertura econômica e de integração à economia mundial.
Nesse sentido, a melhor solução estratégica do ponto de vista das relações entre o Mercosul e a UE seria que o futuro acordo birregional, se e quando existir, representasse um avanço efetivo e antecipasse sobre soluções tendencialmente similares e equivalentes que possam ser alcançadas com outros esquemas de integração de caráter regional – como seria o caso da Alca e de outras iniciativas do gênero – e também no plano multilateral da OMC. Tal característica diminuiria o impacto dos dispositivos potencialmente protecionistas e efetivamente discriminatórios que esse gênero de acordo costuma incorporar como característica básica de sua natureza exclusiva. 

5.1. Propostas de soluções estratégicas tendenciais

A solução estratégica tendencial implica, de certa forma, a continuidade da política definida desde longos anos pela instância diplomática profissional e seguida, com maior ou menor ênfase, pelos governos das últimas décadas, qual seja, a busca não exclusiva de acordos comerciais mais ou menos abrangentes com parceiros importantes em diferentes cenários regionais, em especial no próprio hemisfério, no continente europeu e com algumas outras regiões de forte dinamismo econômico (Ásia Pacífico, por exemplo). São os mercados com os quais a economia brasileira apresenta complementaridade e dotados de forte demanda para os bens ofertados pelo Brasil em condições de evidente competitividade.
Trata-se de mercados dinâmicos, mas que também apresentam restrições protecionistas indevidas, que uma vez derrubadas poderiam dar lugar a grande expansão da produção exportável brasileira. São, por outro lado, importantes parceiros econômicos, fornecedores de bens de capital e de know-how, bem como provedores de capitais e de investimentos diretos. Já existe, aliás, uma rede de contatos empresariais unindo essas diversas regiões e tradição exportadora brasileira, o que deveria facilitar a ampliação do comércio e dos negócios em geral.
De modo ideal, essa penetração em velhos e novos mercados deveria ser feita de acordo com as regras multilaterais de comércio, reforçadas, no caso de acordos regionais, por esquemas mais ambiciosos de acesso a mercados, uma vez que o potencial multiplicador dos investimentos tenderia a crescer de maneira correspondente.

Objetivo
O objetivo estratégico é o de expandir a presença comercial brasileira em direção dos parceiros mais importantes, entre os quais se situa a UE, o bloco comercial com o qual são mais intensos os intercâmbios de todo o tipo. Esse objetivo, ao implicar uma negociação em bloco, a partir da união aduaneira do Mercosul, também reforçaria o bloco em sua expressão política e o obrigaria a continuar avançando nos terrenos das políticas comercial e industrial, bem como na harmonização de medidas afetando o comércio e os investimentos e na coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais.

Metas e linhas de ação
Buscar concluir as negociações com a UE, tendo em vista um acordo equilibrado, sem exclusivismos excessivos que poderiam conduzir a desvios de comércio e/ou de investimentos diretos. Essa disposição implica a decisão de ampliar o acesso aos mercados do Mercosul e do Brasil, naquelas áreas de competitividade ainda não suficientemente testada em situações mais amplas de abertura, dentre as quais as de serviços e de indústrias mais avançadas.

Subsídios estratégicos
Renovar os mecanismos de consulta e coordenação com os setores produtivos, ao mesmo tempo em que se ampliam e detalham os estudos técnicos sobre impactos setoriais, de maneira a não apenas subsidiar o processo negociador como, também, antecipar os efeitos derivados das novas situações de abertura.

5.2 Propostas de soluções de ruptura
A solução de ruptura significaria a aceitação unilateral de um maior grau de abertura dos mercados de bens e serviços do Brasil e do Mercosul do que as eventuais concessões que venham a ser feitas nas áreas de maior sensibilidade setorial dos parceiros europeus, vale dizer, o “núcleo duro” do protecionismo e do subvencionismo agrícolas. Trata-se de decisão estratégica que deve ser medida em função da elasticidade de demanda pelos produtos competitivos do Mercosul e dos impactos setoriais locais, passíveis de serem incorridos pelos ramos e setores do Mercosul que sofreriam a concorrência de oferta competitiva européia.

            Objetivo
Alcançar um grau suficiente de interdependência com a economia da União Européia que consolide fluxos intensos, e crescentes, de bens, serviços, capitais e tecnologia, num amplo espaço de liberalização recíproca que compense, ao menos em parte, o processo de ampliação da UE em direção de novos e promissores espaços econômicos na Europa central e oriental.

Metas e ações
  • Negociar acordos parciais de liberalização comercial e um acordo geral de abertura econômica, promovendo avanços nos campos dos negócios privados, das trocas tecnológicas entre empresas e instituições das duas áreas, bem como a cooperação recíproca no plano das instituições, de maneira a reforçar os mecanismos multilaterais existentes (e a serem criados) de expansão do comércio.
  • Abrir novos campos ao investimento direto europeu e ao financiamento em bases preferenciais nos setores de infra-estrutura do Mercosul e da América do Sul.
  • Expandir a consulta e coordenação de posições em foros multilaterais, a começar pela OMC, mas igualmente na ONU e agências especializadas.
6.    Conclusão 
A UE constitui o primeiro parceiro e o primeiro mercado, em ambas as direções e em vários setores, do Mercosul, em bloco, e também de cada um dos países membros, tomados individualmente. São relevantes, atualmente e historicamente, os laços de toda ordem que unem as empresas e os agentes econômicos das duas regiões, ademais dos muitos vínculos científicos, culturais e humanos.
As dificuldades inerentes a novos acordos ambiciosos de liberalização comercial e de abertura econômica não deveriam impedir esforços adicionais para a conclusão desses entendimentos, em bases mutuamente satisfatórias.


Brasília, 20 junho 2005

O Brasil e o Conselho de Seguranca: um texto PRA, de 2005

Uma entrevista concedida a um jornal mexicano em 2005, e que permaneceu inédita até aqui (não creio que tenham usado a maior parte de minhas respostas), e que já revela meu ceticismo quanto à obsessão pessoal do presidente Lula e seu chanceler, quanto às chances do Brasil vir a obter uma cadeira no CSNU.



O Brasil e o Conselho de Segurança da ONU

Paulo Roberto de Almeida (Brasília, 1 junho 2005)
Respostas a questões colocadas por jornalista
Correspondente no Brasil do Jornal Reforma/Grupo Reforma-México

1) China, Coréia do Sul e Rússia manifestaram também simpatia à candidatura do Brasil?
            PRA: Sim, Coréia do Sul de forma explícita, por ocasião da recente visita do presidente Lula ao país asiático, agora em maio de 2005. A China de forma mais ambígua, pois disse que via com simpatia a pretensão do Brasil. A Rússia fez um apoio mais direto, mas de toda forma verbal.
            Outros países que apoiaram, direta ou indiretamente, o Brasil na suas pretensões:
Reino Unido: Em visita do Presidente Lula a Londres, nos dias 13 e 14 de julho de 2003, para participar da Cúpula da Governança Progressista, o Primeiro-Ministro Tony Blair declarou apoio à candidatura do Brasil a uma vaga permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Alemanha: Por ocasião de visita, em 27 de janeiro de 2003, reiterou-se o apoio mútuo às candidaturas do Brasil e da Alemanha a membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.
Japão: O Primeiro-Ministro, Junichiro Koizumi, visitou o Brasil de 14 a 16 de setembro de 2004. Expressou-se o compromisso de apoio recíproco às respectivas candidaturas a membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Índia: O Presidente Lula fez visita de 24 a 28 de janeiro 2004, como convidado de honra do Governo indiano às celebrações do 55o Dia da República. Os dois países reiteraram o apoio mútuo ao pleito de assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Chile: visita do presidente Lagos, em agosto de 2003: No Comunicado Conjunto, divulgado ao fim da visita do Presidente Lagos ao Brasil, o Chile reconheceu o legítimo interesse do Brasil em integrar o Conselho de Segurança das Nações Unidas como membro permanente. Na visita do Presidente Lula a Santiago, em agosto de 2004, o apoio à aspiração brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança foi explicitado de modo mais enfático do que antes.
Venezuela: Em sua quinta visita ao Brasil, em 15 de setembro de 2004, o Presidente Chávez confirmou o apoio da Venezuela a que o Brasil venha a integrar o Conselho de Segurança das Nações Unidas como membro permanente.
Bolívia: Em visita a Brasília, em 28 de abril de 2003, o Presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, declarou apoio a que o Brasil integre o Conselho de Segurança na qualidade de membro permanente.
Guiana: O Presidente Bharrat Jagdeo, em visita ao Brasil, em 30 de julho de 2003, declarou apoio ao ingresso do Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas como membro permanente.
Suriname: O Presidente Runaldo Ronald Venetiaan, em visita ao Brasil, em 22 de julho de 2003, manifestou apoio ao ingresso do Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas como membro permanente.

Extrato de um Relatório do Ministério das Relações Exteriores sobre os primeiros dois anos de política externa do Governo Lula:
Começo de transcrição:

PRESENÇA NO CONSELHO DE SEGURANÇA COMO MEMBRO NÃO-PERMANENTE
O Brasil foi eleito, em 2003, para ocupar um assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas, durante o biênio 2004-2005, em uma das duas vagas destinadas à América Latina e Caribe. Trata-se do nono mandato brasileiro desde o estabelecimento do órgão, em 1946. Nenhum país foi eleito mais vezes do que o Brasil para o Conselho de Segurança.
Na condição de membro não-permanente do CSNU, o Brasil tem-se envolvido crescentemente nas questões da paz e da segurança internacional. Participa ativamente na formulação de políticas voltadas para a paz e a reconstrução pós-conflito, em particular no que diz respeito a países e regiões prioritários para a política externa brasileira (Haiti, Timor-Leste, África  e Oriente Médio). Sem prejuízo do diálogo de alto nível com os membros permanentes, a ênfase da delegação brasileira tem sido na cooperação com os demais países em desenvolvimento presentes no Conselho. Esta cooperação tem sido excelente, destacando-se a atuação conjunta com o Chile, em 2004; a presença de diplomata argentino como integrante da delegação brasileira, em iniciativa inédita que demonstra o alto grau de confiança na aliança estratégica Brasil-Argentina; e a coordenação com os membros africanos e a União Africana no encaminhamento das questões de paz e segurança na África.
O Brasil assumiu papel de liderança no processo de estabilização e reconstrução do Haiti, país com o qual compartilhamos a herança cultural africana. As Forças Armadas brasileiras fornecem o maior contingente e o comando de tropa na Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH). O Brasil tem impulsionado, tanto no território haitiano quanto no Conselho de Segurança, uma visão criativa do processo de construção da paz, que enfatiza a interdependência entre três pilares: a estabilização da situação de segurança, o processo de reconciliação política em bases democráticas e participativas e a promoção do desenvolvimento econômico e social, com projetos de impacto imediato associados a um planejamento de longo prazo.
O Brasil reforçou seu compromisso com o Timor Leste, país de língua portuguesa, ampliando o contingente brasileiro na Missão das Nações Unidas em Timor-Leste (UNMISET). A delegação brasileira junto ao Conselho de Segurança coordenou as consultas para aprovação da resolução que estendeu por mais um ano, até março de 2005, a UNMISET. Na medida em que o Timor-Leste consolida sua independência e ingressa em fase pós-operação de paz, o Brasil continua a estender solidariedade e apoio, implementando medidas concretas de cooperação.
No tocante aos temas africanos, a atenção brasileira, no âmbito do CSNU, tem-se voltado crescentemente para Guiné-Bissau. O Brasil designou o conselheiro militar do Escritório das Nações Unidas na Guiné-Bissau (UNOGBIS), participou de diversas missões da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e coordenou as consultas entre os membros do Conselho de Segurança, que possibilitaram a aprovação, em dezembro de 2004, da primeira resolução sobre Guiné-Bissau desde 1999, ampliando e fortalecendo o mandato do UNOGBIS.
Quanto aos demais temas africanos (Côte d´Ivoire, Libéria, Sierra Leone, Burundi, República Democrática do Congo, Saara Ocidental, Somália, Etiópia - Eritréia), o Brasil tem ressaltado a necessidade de apoiar a União Africana na busca de soluções para os problemas daquele continente. A abertura de Embaixadas em São Tomé e Príncipe, República Democrática do Congo e Adis Abeba (sede da União Africana e da Comissão Econômica das Nações Unidas para a África) é expressão concreta do compromisso brasileiro com o continente africano. O Brasil enviou, ainda, observadores para participar em operações de paz das Nações Unidas na Libéria e em Côte d´Ivoire, além de Chipre e Kossovo - Sérvia e Montenegro.
A presença do Brasil no Conselho de Segurança tem possibilitado a reafirmação de princípios tradicionais da diplomacia brasileira (respeito ao direito internacional, solução pacífica de controvérsias, defesa da soberania e da democracia) no exame das questões de paz e segurança internacional. O Brasil tem defendido ativamente os valores e os interesses nacionais - sem perder de vista a perspectiva dos países sul-americanos e do mundo em desenvolvimento - em questões como combate ao terrorismo, não-proliferação de armas de destruição em massa, prevenção do genocídio e proteção de grupos vulneráveis (mulheres, crianças e minorias étnicas). A presença do Brasil no Conselho de Segurança, em caráter permanente, representará a melhor garantia de que a voz dos países do Sul será ouvida nas grandes decisões internacionais.

REFORMA DAS NAÇÕES UNIDAS

No contexto da crise suscitada pela invasão norte-americana do Iraque, o Secretário-Geral Kofi Annan propôs – e o Brasil apoiou firmemente – aprofundar a discussão sobre a reforma das Nações Unidas mediante a constituição de um Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudança, o qual contou com um integrante brasileiro, o Embaixador João Clemente Baena Soares. Sem prejuízo do fortalecimento dos demais órgãos do sistema das Nações Unidas, o Brasil tem apoiado a ênfase na reforma do Conselho de Segurança, sem a qual, na expressão de Kofi Annan, nenhuma reforma das Nações Unidas poderá ser considerada completa. A admissão do Brasil e de outros países em desenvolvimento como membros permanentes contribuirá para conferir maior representatividade, legitimidade e eficácia àquela crucial instância decisória.
A formação, em setembro de 2004, do G-4 (Alemanha, Brasil, Índia e Japão), integrado por países cujas candidaturas a um assento permanente no Conselho de Segurança já estão consolidadas, representou um importante avanço. A constituição do grupo e o expressivo número de apoios públicos ao ingresso do Brasil como membro permanente demostram que já foram superadas fórmulas que excluíam  o ingresso de países em desenvolvimento como membros permanentes do Conselho.
O Relatório do Painel de Alto Nível, divulgado em 02/12/04, apresentou dois modelos para a reforma do Conselho de Segurança: o modelo “A”, que prevê expansão nas duas categorias de membros, com a criação de seis novos assentos permanentes e três novos assentos eletivos; o modelo “B”, que não contempla aumento do número de membros permanentes, mas apenas novos assentos não-permanentes, com mandato de mais longa duração (4 anos) e possibilidade de reeleição, e um novo assento com mandato de dois anos, sem direito à reeleição. Em ambos os casos, haveria uma ampliação do CSNU dos atuais 15 para 24 membros. A atuação do Brasil tem-se concentrado na promoção da reforma na linha proposta no modelo “A”.
Após a divulgação do Relatório do Painel, o debate sobre a reforma das Nações Unidas passou a atrair mais atenção. No decorrer de 2005, espera-se que as consultas entrem em fase decisiva, sobretudo nos meses que antecedem o evento de alto nível da Assembléia Geral, em setembro, que fará a primeira revisão qüinqüenal da implementação da Declaração do Milênio e das Metas de Desenvolvimento do Milênio.

Final de transcrição.

2) O senhor em alguns textos afirma que o Brasil tenta essa cadeira há décadas, mas quando menciona a experiência da Minustah (Haití) parece que o senhor tenta dizer, indiretamente, ou tácitamente, que o Brasil ainda não está pronto. O senhor acha que não é cedo para o Brasil ocupar esse assento?
            PRA: Existem dois problemas aqui: nossa preparação em geral, e a experiência da Minustah. A elite diplomática e militar do Brasil, ou seja, o establishment que comanda a política externa e de defesa do Brasil, considera, há décadas, desde a Liga das Nações, que o Brasil não apenas está preparado como já poderia estar ocupando um lugar de relevo no sistema internacional. Minha opinião é a de que o Brasil está apenas parcialmente preparado, tendo em vista suas notórias deficiências internas em termos de organização do Estado e mesmo as limitações orçamentárias que constrangem as Forças Armadas. Não temos, por outro lado, disponibilidade de recursos em volume suficiente para fazer cooperação técnica e assistência ao desenvolvimento de países mais pobres, na dimensão necessária para aparecer como um país “provedor” de cooperação em bases regulares e normais. Nossa cooperação externa é limitada, parcial e extremamente limitada. Por outro lado, não tenho certeza de que as FFAA estejam preparadas para todo e qualquer tipo de operação em situações emergenciais. Atualmente, existe um grau de preparação maior, inclusive pensando nas operações de peace keeping das NU, mas não creio que o Brasil possa assumir toda e qualquer operação da ONU, sobretudo alguma de peace making.
            No caso, do Haiti, tratou-se de uma decisão eminentemente político-propagandistica, no sentido de fazer parte da nossa campanha pelo CSNU, sem considerar a situação no terreno e nossas limitadas capacidades para participar do que é, basicamente, um problema de Nation Building. Acho que não estamos preparados para isso, e no máximo estamos fazendo operações de segurança, de natureza praticamente policial, sem contar com extensos recursos para fazer tudo o que seria necessário.

3) Brasil já deixou de ser cauteloso na campanha pela vaga permanente?
            PRA: O Brasil foi muito cauteloso na gestão anterior, e o presidente FHC evitou confrontar a Argentina nesse particular. O governo atual tem sido muito mais afirmativo, colocando claramente a pretensão do país, solicitando apoios de todo e qualquer dirigente político, em visitas e em encontros bilaterais, o que pode provocar problemas nas relações bilaterais com a Argentina e em menor escala com o México.

4) O Brasil tem dividas das dotações obrigatórias do 2004 ou mais antigas?
            PRA: Não tenho presente os dados específicos, mas sei que o Brasil, que era um grande devedor de todo o sistema da ONU (e de outros organismos internacionais também), fez um enorme esforço, no ano passado, para liquidar quase todas as pendências, pagando de uma vez só algumas centenas de milhares de dólares (se não milhões, mesmo). Mas não tenho os números, que precisariam ser buscados com a Divisão das Nações Unidas do Itamaraty.

Consulta original:
Prezado Professor Almeida:
Depois de ler seus interesantes textos tenho já algumas respostas às perguntas feitas à noite. Só gostaria de pedir esclarecimentos:
1) China, Corea do Sul e Russia manifestaram também simpatía 'a candidatura do Brasil?
2) O senhor em alguns textos afirma que o Brasil tenta esa cadeira há décadas, mas quando menciona a experiencia da Minustah (Haití) parece que o senhor tenta dizer, indiretamente, ou tácitamente, que o Brasil ainda nao está pronto. O senhor acha que não é cedo para o Brasil ocupar esse assento?
3) Brasil já deixou de ser cauteloso na campanha pela vaga permanente?
4) O Brasil tem dividas das dotações obrigatorias do 2004 ou mais antigas?

China-Brasil: uma relacao assimetrica - texto PRA (2005)

Desde o início do governo Lula registrei os imensos equívocos e as ilusões ingênuas (e vamos enfatizar essa redundância) que os companheiros no poder mantinham em relação à China, seu governo e suas orientações de política externa.
O texto que segue abaixo, no entanto, permaneceu inteiramente inédito, até agora, pois se tratava apenas de um conjunto de notas para desenvolvimento posterior. Acredito que elas possam sinalizar mais claramente meu pensamento sobre a questão.



A China e o Brasil: notas sobre uma relação assimétrica

Notas para desenvolvimento
Paulo Roberto de Almeida (11-13 maio 2005)

1. Sobre a China:
A China não tem e não quer ter parceiros, estratégicos ou de qualquer outro tipo.
A China é, para todos os efeitos, o seu próprio, e único, parceiro; ela quer continuar assim e acha que se basta a si mesma.
A China sempre foi uma nação sozinha, isolada e solitária, tanto nos contextos regional e internacional, como do ponto de vista de seu próprio desenvolvimento econômico e social, historicamente baseado num desperdício inacreditável de homens e de recursos materiais, com a elite dirigente consumindo esses fatores sem controle de ninguém e de nada, nem do próprio meio ambiente.
Esse processo continua e deve continuar a ocorrer do mesmo jeito, hoje talvez até de forma ainda mais intensa, já que ela pode “mobilizar” recursos de outros países.
A China produziu, em eras passadas, algumas poucas e boas idéias, teve um mandarinato relativamente eficiente, em termos de “burocracia weberiana” e se tornou a maior economia planetária com base numa espécie de entropismo míope. Mas até o século 18, pelo menos, ela continuou a ser a maior economia planetária, não tanto pelas interações (que eram poucas), mas pela sua própria “massa atômica”.
Quanto ela deixou de ter idéias, ou quando as idéias dos outros foram mais poderosas, pois que apoiadas em canhoneiras, ela foi humilhada, dominada e esquartejada. Isso feriu fundo a auto-estima e o orgulho nacionais dos chineses.
Eles conseguiram, depois de décadas de lutas (mais intestinas do que contra os inimigos externos, pois que ninguém consegue dominar a China), reverter a decadência e tomar novamente seu destino em mãos.
Não tem a mínima importância histórica, ou estrutural, que essa retomada tenha sido feita sob o domínio do comunismo, um modo de produção absolutamente “passageiro” na história milenar da China.
Com comunismo ou socialismo de mercado, o novo mandarinato de burocratas e de membros da nova nomenklatura trabalha para confirmar o destino secular da China, que é o de novamente se tornar a maior economia planetária e ditar suas regras para os “bárbaros” do exterior.
A China está operando essa volta a um lugar de preeminência econômica no planeta (a segurança militar é mera decorrência disso), mas os atuais imperadores e mandarins têm consciência de que ela não mais poderá fazer isso isoladamente, como ocorreu até o século 18, pois as condições do mundo mudaram.
A China assumiu plenamente o conceito de interdependência econômica global, mas como ocorre com o famoso moto orwelliano, num mundo totalmente interdependente, alguns são mais interdependentes do que outros.
A China quer e vai ser interdependente à sua maneira, isto é, acomodando-se a regras às quais ela não mais pode se furtar, mas interpretando-as à sua maneira, e distorcendo-as para seu melhor conforto e segurança. Isto se aplica em quase todos os terrenos de interesse substantivo, mas especialmente às regras de comércio internacional e de investimentos estrangeiros.
A China não pretende à dominação do mundo, mas ela não pretende mais que o mundo, ou seja, o círculo das superpotências, a domine mais. Isso não vai ocorrer, e a China sabe que tem de conviver com as superpotências, mas não quer se submeter às regras existentes (que aliás nem são ditadas por essas superpotências, mas decorrem do processo de globalização capitalista).
A preocupação principal dos atuais imperadores e mandarins chineses é assegurar emprego (e, portanto, comida) a meio bilhão de chineses pobres, que podem, à falta de condições mínimas (mas mínimas mesmo) de existência, perturbar a paz no Império do Meio, e com isso afetar o poder e a dominação dos atuais dirigentes.
Etapa importante nesse processo é transformar a China na principal fábrica planetária, aliás a única maneira de acomodar algo como 400 ou 500 milhões de chineses que precisam de emprego (e que não os terão nem na agricultura nem nos serviços).
Como ela só pode fazer isso construindo o seu próprio capitalismo manchesteriano (que certamente deixaria Engels de queixo caído), a China PRECISA destruir empregos no resto do mundo, pois essa é a única condição de sobrevivência de algumas dezenas de milhões desses chineses “flutuantes”. (…)
Por coincidência, essa é também a “missão histórica” que lhe foi assignada, atualmente, pela globalização capitalista, um processo impessoal, não controlado por nenhum país ou conjunto de corporações, mas que corresponde à “lógica” do sistema atual de alocação de investimentos e de organização espacial da produção de mercadorias.
Como a China trabalha com aportes ilimitados de homens e capital (com alguma limitação em outros recursos produtivos, como os de know-how e ciência básica), ela não terá nenhuma dificuldade em manter esse ritmo alucinante de destruição de empregos em todo o resto do mundo pelas próximas duas gerações pelo menos (ou seja, pela próximo meio século).
A China está ascendendo rapidamente na escala de agregação de valor, não apenas publicando exponencialmente em revistas científicas, mas passando da simples cópia e adaptação tecnológica para a inovação completa, já tendo chegado também ao design e marcas. Seu catch-up promete ser ainda mais impressionante do que o do Japão e da Coréia do Sul e provavelmente não haverá nada comparável na história econômica mundial.
Com tudo isso, a China vai agir exatamente como sempre agem os centros da economia mundial: organizando sua própria periferia de “abastecimento”, que ela espera poder controlar da forma como fazem os imperialismos modernos: não pela via extrativista, mas por redes de negócios centrados em circuitos financeiros próprios, chineses.

2. Sobre o Brasil:
O Brasil como “bric” é um tijolo meio mole, pois ele vai demorar mais do que os outros “brics” a transformar ciência em tecnologia, estando ainda preso a uma imensa “bola de ferro” feita de finanças precárias, um mercado de crédito insuficiente, um eforço de poupança desviado por um Estado perdulário e uma estrutura tributária absolutamente desadaptada a uma economia exportadora, além de irracional mesmo do ponto de vista do mercado interno. Os principais problemas do Brasil não são de ordem tecnológica ou mesmo empresarial, e sim de natureza educacional e estatal, ambos deficientes ao extremo.
Esses problemas são de natureza essencialmente política, pois parece haver uma notória deficiência de quadros esclarecidos no sistema político brasileiro: os representantes eleitos não conseguem se por de acordo sobre um diagnóstico simples da realidade brasileira e sobre as vias de superação dos problemas mais cruciais. Mesmo se conseguissem, não conseguiriam se por de acordo sobre um reordenamento dos gastos públicos e dos investimentos.
Não ajuda o fato de a classe política brasileira ser muito diversificada e heterogênea, não sendo mais composta apenas de coronelões e políticos profissionais, mas também de representantes corporativos, de mandarins sindicais, de aventureiros de toda espécie.
Do ponto de vista da sua inserção econômica mundial, o Brasil continuará deficiente, haja vista a dificuldade de abertura aos investimentos e aos intercâmbios de todo tipo. A classe política brasileira ainda pretende construir o “capitalismo nacional”, exatamente como nos anos 1950. O mundo não vai esperar até que isso seja feito, para então “acolher” o Brasil: ele vai continuar sem o Brasil.

3. O Brasil e a China: grandes promessas, tristes realidades
A China quer o Brasil como abastecedor prioritário de produtos alimentícios e de outras commodities para sua gigantesca máquina industrial. Ela pretende inundar o Brasil e já o está fazendo, de produtos manufaturados correntes.
O Brasil não conseguirá bater a China no terreno da indústria tradicional, isto é, aquela da segunda revolução industrial: ele será fragorosamente batido, como estão sendo todas as demais potências industriais.
A designação da China como “parceiro estratégico” é absolutamente inconseqüente do ponto de vista da estratégia chinesa; trata-se de uma decisão unilateral, gratuita e, portanto, irrelevante do ponto de vista de “como devem ser as coisas”, exatamente, entre o Brasil e a China.
Não importa se essa história começou com um acordo de parceria tecnológica para o lançamento de satélites por foguetes chineses: o Brasil poderia ter estabelecido a parceria com outros países, e a situação de fato não mudaria muito. Talvez o Brasil pudesse até ter “comprado” lançamentos mais baratos e mais interessantes em parceria com outros países. Toda a retórica da cooperação científica e tecnológica, não passa disso, uma retórica.
As indústrias brasileiras, se desejarem sobreviver no mundo manchesteriano-chinês, deverão fazer como todas as outras: avançar na concepção e desenho e mandar fabricar na China, só assim elas conseguirão sobreviver enquanto empresas, do contrário perecerão corpos e bens. Vão-se os operários e sobram os engenheiros. Quanto mais cedo esse processo começar, tanto melhor para as empresas brasileiras candidatas à sobrevivência no mundo darwinista chinês.
Alguma renda extra será possível de obter nos projetos conjuntos de fornecimento energético alternativo a partir do Brasil e nos produtos intensivos em recursos naturais, como corresponde às vocações ricardianas do Brasil.
Seria melhor que o Brasil não fizesse grandes “planos estratégicos” em relação à China, pois isso não serve para muita coisa: a China fará aquilo que ela pretende fazer segundo o seu interesse nacional, e não se deixará demover por nenhuma promessa de “aliança estratégica” ou qualquer outro arranjo que contemple interesses supostamente simétricos. Melhor fazer aquilo que corresponde ao nosso próprio interesse nacional, sem esperar correspondência ou resposta de qualquer parceiro que seja, em especial da China.
Incidentalmente, a concessão do status de “economia de mercado” não deve alterar muito o panorama geral e seu desenvolvimento inexorável: ela só atrapalha os desejos protecionistas de alguns ramos da indústria brasileira, tendo uma incidência setorial em mercados de trabalho específicos. Talvez constitua, aliás, um exercício útil do ponto de vista do cenário de “serial killer” que virá mais adiante, quando a China for plenamente integrada ao regime gattiano normal (o que ocorrerá até 2015).
A concessão desse status foi um favor diplomático absolutamente gratuito e unilateral, sem qualquer vantagem de caráter recíproco, e uma renúncia inacreditável de soberania. Ela também foi um absurdo do ponto de vista político, mas representou apenas uma antecipação do que ocorrerá inexoravelmente no terreno econômico. Ela apenas obriga as empresas brasileiras a correrem mais rápido, o que talvez não seja uma coisa má, pois elas estavam se acostumando com muita proteção e nenhum desafio, desde 1995, pelo menos.

Paulo Roberto de Almeida, São Paulo-Bogotá, 11-12 de maio de 2005.