Desde o início do governo Lula registrei os imensos equívocos e as ilusões ingênuas (e vamos enfatizar essa redundância) que os companheiros no poder mantinham em relação à China, seu governo e suas orientações de política externa.
O texto que segue abaixo, no entanto, permaneceu inteiramente inédito, até agora, pois se tratava apenas de um conjunto de notas para desenvolvimento posterior. Acredito que elas possam sinalizar mais claramente meu pensamento sobre a questão.
A China e o Brasil: notas sobre uma relação
assimétrica
Notas
para desenvolvimento
Paulo
Roberto de Almeida (11-13 maio 2005)
1.
Sobre a China:
A China não tem e não quer ter parceiros, estratégicos ou de
qualquer outro tipo.
A China é, para todos os efeitos, o seu próprio, e único, parceiro;
ela quer continuar assim e acha que se basta a si mesma.
A China sempre foi uma nação sozinha, isolada e solitária, tanto nos
contextos regional e internacional, como do ponto de vista de seu próprio desenvolvimento
econômico e social, historicamente baseado num desperdício inacreditável de
homens e de recursos materiais, com a elite dirigente consumindo esses fatores
sem controle de ninguém e de nada, nem do próprio meio ambiente.
Esse processo continua e deve continuar a ocorrer do mesmo jeito,
hoje talvez até de forma ainda mais intensa, já que ela pode “mobilizar”
recursos de outros países.
A China produziu, em eras passadas, algumas poucas e boas idéias,
teve um mandarinato relativamente eficiente, em termos de “burocracia
weberiana” e se tornou a maior economia planetária com base numa espécie de
entropismo míope. Mas até o século 18, pelo menos, ela continuou a ser a maior
economia planetária, não tanto pelas interações (que eram poucas), mas pela sua
própria “massa atômica”.
Quanto ela deixou de ter idéias, ou quando as idéias dos outros
foram mais poderosas, pois que apoiadas em canhoneiras, ela foi humilhada,
dominada e esquartejada. Isso feriu fundo a auto-estima e o orgulho nacionais
dos chineses.
Eles conseguiram, depois de décadas de lutas (mais intestinas do que
contra os inimigos externos, pois que ninguém consegue dominar a China),
reverter a decadência e tomar novamente seu destino em mãos.
Não tem a mínima importância histórica, ou estrutural, que essa
retomada tenha sido feita sob o domínio do comunismo, um modo de produção
absolutamente “passageiro” na história milenar da China.
Com comunismo ou socialismo de mercado, o novo mandarinato de
burocratas e de membros da nova nomenklatura trabalha para confirmar o destino
secular da China, que é o de novamente se tornar a maior economia planetária e
ditar suas regras para os “bárbaros” do exterior.
A China está operando essa volta a um lugar de preeminência econômica
no planeta (a segurança militar é mera decorrência disso), mas os atuais
imperadores e mandarins têm consciência de que ela não mais poderá fazer isso
isoladamente, como ocorreu até o século 18, pois as condições do mundo mudaram.
A China assumiu plenamente o conceito de interdependência econômica
global, mas como ocorre com o famoso moto orwelliano, num mundo totalmente
interdependente, alguns são mais interdependentes do que outros.
A China quer e vai ser interdependente à sua maneira, isto é,
acomodando-se a regras às quais ela não mais pode se furtar, mas
interpretando-as à sua maneira, e distorcendo-as para seu melhor conforto e
segurança. Isto se aplica em quase todos os terrenos de interesse substantivo,
mas especialmente às regras de comércio internacional e de investimentos
estrangeiros.
A China não pretende à dominação do mundo, mas ela não pretende mais
que o mundo, ou seja, o círculo das superpotências, a domine mais. Isso não vai
ocorrer, e a China sabe que tem de conviver com as superpotências, mas não quer
se submeter às regras existentes (que aliás nem são ditadas por essas superpotências,
mas decorrem do processo de globalização capitalista).
A preocupação principal dos atuais imperadores e mandarins chineses
é assegurar emprego (e, portanto, comida) a meio bilhão de chineses pobres, que
podem, à falta de condições mínimas (mas mínimas mesmo) de existência,
perturbar a paz no Império do Meio, e com isso afetar o poder e a dominação dos
atuais dirigentes.
Etapa importante nesse processo é transformar a China na principal
fábrica planetária, aliás a única maneira de acomodar algo como 400 ou 500
milhões de chineses que precisam de emprego (e que não os terão nem na
agricultura nem nos serviços).
Como ela só pode fazer isso construindo o seu próprio capitalismo
manchesteriano (que certamente deixaria Engels de queixo caído), a China
PRECISA destruir empregos no resto do mundo, pois essa é a única condição de
sobrevivência de algumas dezenas de milhões desses chineses “flutuantes”. (…)
Por coincidência, essa é também a “missão histórica” que lhe foi
assignada, atualmente, pela globalização capitalista, um processo impessoal,
não controlado por nenhum país ou conjunto de corporações, mas que corresponde
à “lógica” do sistema atual de alocação de investimentos e de organização
espacial da produção de mercadorias.
Como a China trabalha com aportes ilimitados de homens e capital
(com alguma limitação em outros recursos produtivos, como os de know-how e
ciência básica), ela não terá nenhuma dificuldade em manter esse ritmo
alucinante de destruição de empregos em todo o resto do mundo pelas próximas
duas gerações pelo menos (ou seja, pela próximo meio século).
A China está ascendendo rapidamente na escala de agregação de valor,
não apenas publicando exponencialmente em revistas científicas, mas passando da
simples cópia e adaptação tecnológica para a inovação completa, já tendo
chegado também ao design e marcas. Seu catch-up promete ser ainda mais
impressionante do que o do Japão e da Coréia do Sul e provavelmente não haverá
nada comparável na história econômica mundial.
Com tudo isso, a China vai agir exatamente como sempre agem os
centros da economia mundial: organizando sua própria periferia de
“abastecimento”, que ela espera poder controlar da forma como fazem os
imperialismos modernos: não pela via extrativista, mas por redes de negócios
centrados em circuitos financeiros próprios, chineses.
2. Sobre o Brasil:
O Brasil como “bric” é um tijolo meio mole, pois ele vai demorar
mais do que os outros “brics” a transformar ciência em tecnologia, estando
ainda preso a uma imensa “bola de ferro” feita de finanças precárias, um
mercado de crédito insuficiente, um eforço de poupança desviado por um Estado
perdulário e uma estrutura tributária absolutamente desadaptada a uma economia
exportadora, além de irracional mesmo do ponto de vista do mercado interno. Os
principais problemas do Brasil não são de ordem tecnológica ou mesmo
empresarial, e sim de natureza educacional e estatal, ambos deficientes ao
extremo.
Esses problemas são de natureza essencialmente política, pois parece
haver uma notória deficiência de quadros esclarecidos no sistema político
brasileiro: os representantes eleitos não conseguem se por de acordo sobre um
diagnóstico simples da realidade brasileira e sobre as vias de superação dos
problemas mais cruciais. Mesmo se conseguissem, não conseguiriam se por de
acordo sobre um reordenamento dos gastos públicos e dos investimentos.
Não ajuda o fato de a classe política brasileira ser muito
diversificada e heterogênea, não sendo mais composta apenas de coronelões e
políticos profissionais, mas também de representantes corporativos, de
mandarins sindicais, de aventureiros de toda espécie.
Do ponto de vista da sua inserção econômica mundial, o Brasil
continuará deficiente, haja vista a dificuldade de abertura aos investimentos e
aos intercâmbios de todo tipo. A classe política brasileira ainda pretende
construir o “capitalismo nacional”, exatamente como nos anos 1950. O mundo não
vai esperar até que isso seja feito, para então “acolher” o Brasil: ele vai
continuar sem o Brasil.
3. O
Brasil e a China: grandes promessas, tristes realidades
A China quer o Brasil como abastecedor prioritário de produtos
alimentícios e de outras commodities
para sua gigantesca máquina industrial. Ela pretende inundar o Brasil e já o
está fazendo, de produtos manufaturados correntes.
O Brasil não conseguirá bater a China no terreno da indústria
tradicional, isto é, aquela da segunda revolução industrial: ele será
fragorosamente batido, como estão sendo todas as demais potências industriais.
A designação da China como “parceiro estratégico” é absolutamente
inconseqüente do ponto de vista da estratégia chinesa; trata-se de uma decisão
unilateral, gratuita e, portanto, irrelevante do ponto de vista de “como devem
ser as coisas”, exatamente, entre o Brasil e a China.
Não importa se essa história começou com um acordo de parceria
tecnológica para o lançamento de satélites por foguetes chineses: o Brasil
poderia ter estabelecido a parceria com outros países, e a situação de fato não
mudaria muito. Talvez o Brasil pudesse até ter “comprado” lançamentos mais
baratos e mais interessantes em parceria com outros países. Toda a retórica da cooperação
científica e tecnológica, não passa disso, uma retórica.
As indústrias brasileiras, se desejarem sobreviver no mundo
manchesteriano-chinês, deverão fazer como todas as outras: avançar na concepção
e desenho e mandar fabricar na China, só assim elas conseguirão sobreviver
enquanto empresas, do contrário perecerão corpos e bens. Vão-se os operários e
sobram os engenheiros. Quanto mais cedo esse processo começar, tanto melhor
para as empresas brasileiras candidatas à sobrevivência no mundo darwinista
chinês.
Alguma renda extra será possível de obter nos projetos conjuntos de
fornecimento energético alternativo a partir do Brasil e nos produtos
intensivos em recursos naturais, como corresponde às vocações ricardianas do
Brasil.
Seria melhor que o Brasil não fizesse grandes “planos estratégicos”
em relação à China, pois isso não serve para muita coisa: a China fará aquilo
que ela pretende fazer segundo o seu interesse nacional, e não se deixará
demover por nenhuma promessa de “aliança estratégica” ou qualquer outro arranjo
que contemple interesses supostamente simétricos. Melhor fazer aquilo que
corresponde ao nosso próprio interesse nacional, sem esperar correspondência ou
resposta de qualquer parceiro que seja, em especial da China.
Incidentalmente, a concessão do status de “economia de mercado” não
deve alterar muito o panorama geral e seu desenvolvimento inexorável: ela só
atrapalha os desejos protecionistas de alguns ramos da indústria brasileira,
tendo uma incidência setorial em mercados de trabalho específicos. Talvez
constitua, aliás, um exercício útil do ponto de vista do cenário de “serial
killer” que virá mais adiante, quando a China for plenamente integrada ao
regime gattiano normal (o que ocorrerá até 2015).
A concessão desse status foi um favor diplomático absolutamente
gratuito e unilateral, sem qualquer vantagem de caráter recíproco, e uma
renúncia inacreditável de soberania. Ela também foi um absurdo do ponto de
vista político, mas representou apenas uma antecipação do que ocorrerá
inexoravelmente no terreno econômico. Ela apenas obriga as empresas brasileiras
a correrem mais rápido, o que talvez não seja uma coisa má, pois elas estavam
se acostumando com muita proteção e nenhum desafio, desde 1995, pelo menos.
Paulo
Roberto de Almeida, São Paulo-Bogotá, 11-12 de maio de 2005.
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