MÁRIO CÉSAR
FLORES, almirante-de esquadra (reformado)
O Estado de S.Paulo - 30 de
junho de 2012
A questão
existencial das Forças Armadas - o quê, para o quê, por quê e com quais
prioridades - vem exigindo revisão no mundo do pós-guerra fria. Que papéis são
hoje presumíveis para elas nos diversos cenários nacionais e internacionais,
qual a organização, quais as configurações e dimensões que lhes são adequadas?
No equacionamento desse quadro de dúvidas influi o como a sociedade e o mundo
político veem a defesa nacional - tema referenciado ao Brasil no artigo 'A
Defesa no sentimento nacional', em O Estado de S. Paulo de
2/8/2011, cuja continuidade do descaso sugere ser conveniente nele insistir. O
descompasso entre o País político/econômico e seu sistema militar tem sido
irrelevante para a sociedade e a política brasileiras - uma fissura nacional
incubadora de insegurança, na projeção do tempo.
Há 140 anos
(guerra com o Paraguai) sem ameaças externas percebidas como graves, é
compreensível o desinteresse da sociedade pela defesa, compartilhado pelo mundo
político e setores da intelligentsia (universidade, mídia, etc.) que cultivam
um curioso paradoxo: vociferam soberania, numa época de revisão restritiva
desse conceito, mas são insensíveis às injunções estratégicas na soberania
nacional e no status do País na ordem internacional! A razão de ser básica das
Forças Armadas é menoscabada, e tendemos a pensá-las principalmente no
desempenho de suas atribuições subsidiárias (segurança da navegação aérea e
marítima, atuação em crises de defesa civil, etc.), como milícia em apoio à
polícia no controle do paroxismo de desordem e violência vigente no País e na
vigilância policial das fronteiras, áreas de atuação permanente ou eventual
importantes, mas não substitutas da defesa nacional como justificativa do
sistema militar.
Demonstração
clara desse "clima": a defesa nacional não tem merecido dedicação
atenta no Congresso Nacional. O desapreço se explica: no Brasil político muito
pautado pela eleição/reeleição, para que a atenção política vá além das
próximas eleições - condição intrínseca às grandes questões da defesa -, é
preciso que o interesse da sociedade e o apelo eleitoral decorrente se estendam
mais adiante do curto prazo, e isso não acontece com a defesa. Além de não
render votos, a defesa nacional não é propícia ao atendimento de nossa cultura
política patrimonial-clientelista e do comissionamento viciado. Esse cenário se
reflete no trato do Orçamento: no "mundo que conta", nosso orçamento
militar é pequeno em porcentual do PIB. Tal participação é compreensível diante
das demandas sociais e econômicas e da ausência de problemas de defesa
entendidos como críticos. Mas é errado que os efeitos da constrição no preparo
militar coerente com o País sejam "sumariamente ignorados", embora na
democracia o Congresso seja ator relevante na defesa nacional e na inserção da
dimensão estratégica do País no cenário internacional.
O tema é complicado,
mais ainda em época, como a atual, em que a tecnologia, complexa e naturalmente
cara, não permite improvisação sob pressão da necessidade imediata, como
ocorria no século 19, quando nossa política era apoiada em capacidade militar
improvisada, viável com a tecnologia de então (na 2.ª Guerra Mundial a atuação
brasileira ainda foi improvisada, com apoio tutelar norte-americano). A
Estratégia Nacional de Defesa (END), aprovada em dezembro de 2008, foi (é) um
passo positivo, mas qual tem sido sua repercussão (apoio, contribuições,
restrições?) na sociedade, na mídia e na política? Praticamente nula. Foi
avaliada e avalizada pelo Congresso (atuação que lhe propiciaria amparo
político) e analisada por instituições de estudo supostamente dedicadas ao tema?
Se o foi, não houve interesse e repercussão na mídia e na sociedade.
A emersão da
defesa nacional do descaso é condição (ao menos uma das condições) para que o
Brasil se faça presente, com a estatura que lhe cabe, na arquitetura do século
21. Há que identificar e hierarquizar nossas vulnerabilidades e preocupações,
formular concepções estratégicas com a definição de prioridades realistas e a
configuração e organização das Forças que lhes correspondam - um processo
exigente de visão política e competência estratégica à altura da difusa
realidade atual e do Brasil nela.
Sem ufanismo
ilusório e tampouco sem sujeição à ideia de que a segurança é garantida pelo
jurisdicismo e pacifismo utópicos, a presença brasileira no mundo requer
atenção para o fato de que vivemos num mundo imperfeito, sujeito ao realismo do
poder e aos conflitos inerentes ao planeta economicamente, ambientalmente e com
acesso aos recursos naturais praticamente integrado, mas politicamente
fragmentado. Em paralelo com a construção de um país socialmente feliz e
economicamente forte, é preciso construir uma afirmação político-estratégica
apoiada em capacidade militar comedida, mas convincente e credível; coerente
com o Brasil no contexto regional; dissuasória, por sinalizar risco e alto
custo para qualquer agressor, hoje improvável, mas não impossível no correr do
tempo; além de útil à cooperação em missões internacionais legitimadas por
organização adequada. E isso não é fácil, na ausência de interesse político e
societário. Insere-se nessa equação o assento permanente no Conselho de
Segurança da ONU, ilógico sem razoável capacidade militar que o respalde.
Vale repetir aqui fato citado no artigo anterior: há cerca de 15 anos,
no intervalo em seminário sobre o Ministério da Defesa, no qual emergira
inoportunamente o tema salarial, ouviu-se esta frase: "Os militares ganham
mal, mas por que lhes pagar mais, se não precisamos deles?". É necessário
que esse final psicótico seja revertido. Se a defesa nacional continuar em
plano de irrelevância autista, correremos o risco de comprometer decisivamente
a lógica existencial das Forças Armadas: seu papel na garantia da vida nacional
protegida e na inserção correta do Brasil na ordem regional e global.
Um comentário:
"De Formião, filósofo elegante,
Vereis como Anibal escarnecia,
Quando das artes bélicas, diante
Dele, com larga voz tratava e lia.
A disciplina militar prestante
Não se aprende, Senhor, na fantasia,
Sonhando, imaginando ou estudando,
Senão vendo, tratando e pelejando."
*Luís de Camões; in:"Os Lusíadas"; canto X; v. 153.
Vale!
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