O ESTADO DE S.PAULO,
26/07/2012
Por meio de histórias
pessoais, de perseguidos políticos, jornalista
traça vigoroso painel do período do regime militar
O jornalista
Paulo Moreira Leite reuniu em livro um conjunto de nove reportagens que
publicou, entre 1995 e 2009, em diferentes veículos de comunicação. São perfis,
atualizados e revisados, de pessoas que se destacaram de alguma maneira na luta
pelo fim do regime militar. Em meio ao tremendo esforço coletivo que
livrou o País daquele período de violência e injustiças,
elas encarnaram, em algum momento, a consciência democrática do País.
O resultado
é positivo. Além de conter boas histórias individuais, A Mulher
que Era o General da Casa funciona como um bom painel
do período. Também é
oportuno. Estimula reflexões no momento em que a Comissão
Nacional da Verdade desenvolve esforços para mostrar a história real do
regime, enfrentando a oposição de grupos que qualificam seu
trabalho de revanchista.
Moreira
Leite, reporter especial da revista Época, da qual já foi
diretor, possui um texto vigoroso e envolvente e domina os fatos
históricos. Para um jornalista, chama a atenção a desenvoltura com
que manifesta seus pontos de vista sobre pessoas e
acontecimentos, especialmente na apresentação do livro e nas partes
revisadas – como se o distanciamento dos fatos lhe desse
maior segurança nas análises.
Therezinha
Zerbini, a personagem que dá título à obra, foi uma das figuras
mais destacadas nos movimentos pela anistia política. Os outros retratados
são Jaime Wright, o pastor presbiteriano que garantiu ao cardeal Paulo
Evaristo Arns a estrutura financeira e técnica na preparação do
memorável Brasil: Nunca Mais; o sociólogo Florestan Fernandes,
cassado e afastado de seu cargo de professor da USP, em 1968; José Mindlin, que
se recusou a dar dinheiro para a Operação Bandeirantes, organização paramilitar
que financiava a tortura; Armênio Guedes, dirigente comunista; Plínio e Arruda
Sampaio, cujo nome figurava na lista dos primeiros cem brasileiros cassados em
1964; o rabino Henry Sobel, que não aceitou a versão de suicídio
de Vladimir Herzog; o jornalista Washington Novaes, um dos primeiros a
questionar a ação dos militares na Amazônia; e Lincoln Gordon, embaixador dos
Estados Unidos no Brasil durante o golpe militar.
Alguns retratados
se encaixam melhor no painel do que outros. Sob essa perspectiva, recomendo
ao leitor que comece a leitura pelos perfis de de Therezinha Zerbini,
Jayme Wright, Plínio de Arruda Sampaio, Henry Sobel e Lincoln
Gordon. A primeira parte do texto sobre José Mindlin, escrita em 1998, é a
que parece menos burilada e mais deslocada do conjunto. Vale a pena, no
entanto, seguir até o fim, até o acréscimo feito em 2011, quando o
autor reúne informações sobre a participação de empresários no
financiamento da tortura (um dos temas centrais do excelente Cidadão
Boilensen, documentário de Chaim Litewski, lançado em 2009).
À primeira
vista, não se compreende a presença de Lincoln Gordon, o embaixador
que, sob ordens de John Kennedy, estimulou e deu apoio ao golpe
contra o governo democraticamente eleito de João Goulart. Afinal, é
o o avesso dessa história, como define o próprio autor. Aos poucos, porém,
percebe-se o acerto de sua inclusão: ele amplia o alcance do painel,
permite compreender melhor as raízes do golpe, além da chamada ameaça
comunista. “A oposição a Goulart tinha bases materiais”, diz o autor.
Cada
retratado cumpre um papel no conjunto da história. O perfil de Guedes
permite expor os dilemas das diferentes facções de esquerda frente ao
regime que trucidava a democracia; o exílio de Sampaio recorda a
diáspora que se abateu sobre a América Latina com os militares no poder; o
trabalho quase clandestino de Wright ao lado do cardeal Arns ilumina nomes de
advogados que atuavam na defesa dos direitos humanos, como Luiz Eduardo
Greenhalg, José Carlos Dias, Sigmaringa Seixas, Eni Raimundo Pereira; as
opções de Fernandes deixam perguntas sobre o papel dos intelectuais.
Os
textos também permitem comparações com os nossos dias. Desde
as primeiras linhas do perfil de Wright, que viveu e morreu de forma
modestíssima, é inevitável lembrar dos pastores neopentecostais
de hoje, com sua teologia de resultados, já se encaminhando para a teologia da
opulência. A tragédia pessoal de Sobel, o rabino que caiu no
ostracismo após o episódio das gravatas em Miami, sobressai por outro
motivo: a disposição e a sensibilidade do autor diante de temas tão
delicados.
Moreira
Leite faz parte da geração de brasileiros que cresceu e amadureceu sem
exercitar o direito de votar para presidente da República e
presenciou, em mais de uma ocasião, a brutalidade do regime militar. Entre
os episódios que o marcaram de maneira mais acentuada, recorda o dia em que, em
1973, numa das salas de aula da Universidade de São Paulo (USP), onde cursava
ciências sociais, foi avisado da morte de Alexandre Vannucchi Leme. O rapaz,
estudante de geologia, filho de uma família de professores católicos de
Sorocaba, interior de São Paulo, havia sido preso por agentes militares, preso
e executado.
Agora, quase
quarenta anos depois, o jornalista defende o esclarecimento dos crimes
cometidos pelos agentes de Estado contra cidadãos que teoricamente deveriam
proteger. Seu livro é boa contribuição no esforço para se reconstruir a
narrativa histórica do período.
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