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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 4 de outubro de 2014

Eleicoes 2014: contra o Voto Nulo, meus criterios de escolha - Paulo Roberto de Almeida (2010)

Um texto escrito como reação a mensagens que eu recebia pela internet, por ocasião das eleições de 2010 -- quando eu me encontrava fora do país, mas podendo votar para o cargo de presidente, como efetivamente ocorreu -- e incitavam, essas mensagens, não as eleições, ao voto nulo, em nome de uma tal de pureza política, ou seja, o eleitor em questão, julgando-se acima da podridão da política e da ruindade dos políticos, pretendia anular o seu voto, por alguma das forma admitidas.
Eu me dediquei a argumentar, justamente, que ele assim fazendo contribuia para aumentar ainda mais a podridão da política, e a ruindade dos eleitos.
Não querendo mais ter Tiriricas da vida no Congresso, nem uma anta na presidência -- embora eles sempre consigam se eleger, devido ao grande número de eleitores "desinformados", digamos assim -- é preciso tapar o nariz, examinar bem a lista dos candidatos, ler com cuidado seus programas (se houver), ouvir com atenção seus projetos de governo ou de representação (em havendo), e ir lá colocar uma cruzinha no nome menos pior. Ou melhor, teclar o número do Tiririca ou da anta menos nocivo para a vida do país. Eu, por exemplo, excluo mafiosos, amigos de ditaduras, demagogos, mentirosos, falsos, fingidores, aproveitadores, oportunistas, ignorantes, gente que não sabe falar (é porque não sabe pensar), enfim, elimino tudo quanto é anta e capivara.
Só fico com os bichinhos menos predadores, ainda que seja uma tartaruga: ela, por ser lenta, tem menos condições de causar muito estrago. O governo atual, por exemplo, ainda bem que ele é ineficiente, incompetente, lento, incapaz, improvisado e muitas outras coisas mais. Já imaginaram se ele fosse mais eficiente? Quanto dinheiro a mais teria saído daqui e dali?
Nem quero pensar.
Enfim, o texto foi escrito em 2010, mas permanece inteiramente válido nos dias que correm (ou se arrastam...).
Paulo Roberto de Almeida



Paulo Roberto Almeida

Existe uma controvérsia pairando sobre as comunicações que circulam na internet nessas épocas eleitorais: a do voto nulo, justificado ou não “filosoficamente”. Provavelmente, existe mais de uma controvérsia eleitoral, mas esta é a que me foi dado examinar e me pronunciar recentemente sobre ela, talvez de modo superficial e ligeiro (o que quer dizer exatamente a mesma coisa, mais passons). Sem pretender possuir a posição “correta” – que simplesmente não existe em se tratando de escolhas políticas, embora existam, sim, posições erradas, absoluta e relativamente, nessa área, e elas tem a ver com a diminuição do “grau” de democracia no sistema político – gostaria de me manifestar a respeito de forma mais clara do que já o fiz até agora.

Existem basicamente três formas de “não” escolher qualquer candidato, para qualquer cargo, nas eleições: a abstenção, o voto nulo ou o voto em branco. A única diferença entre o voto nulo e o voto em branco, em face da maquineta de votação, é que a dita cuja contempla um botão branco, para o voto idem. Suponho que os que pretendem anular seu voto teclem outros números, admitindo-se que a máquina aceite, e confirmem esse número “errado”. Seria então um voto nulo. Num caso, como no outro, se trata de uma “não escolha”, assim como a de não comparecer no local de votação no dia marcado. Essas são, portanto, as formas de anular o seu voto: votando “errado”, deixando em branco, ou deixando de comparecer. Votou nulo ou em branco, ou deixou de votar, pronto: está feita a recusa de participação numa escolha solicitada (na verdade, requerida, exigida, porque o voto é obrigatório no Brasil).
Os que são indiferentes à política ou ao governo, qualquer governo, os que “não agüentam” mentiras de políticos (e algumas são realmente difíceis de engolir), aqueles que simplesmente não se interessam pelas mensagens dos partidos e dos candidatos, os que, finalmente, são preguiçosos demais para se deslocar no dia das eleições, simplesmente exercem o seu direito democrático de “não escolher”. Eles não costumam ficar preocupados com isso: simplesmente desligam essa “área cerebral” e seguem em frente, nas suas vidinhas pacatas e desinteressadas. Poucos se dão ao trabalho de justificar a “não escolha”. Melhor não se comover com o assunto, ponto.
Diferente é a situação de acadêmicos ou pretensos intelectuais, que pretendem justificar a sua não escolha mediante elegantes construções, com citações de frases de escritores, argumentos sobre o caráter de manada das “massas votantes”, alegações quanto às fraudes deliberadas cometidas pelos partidos, enfim, um sem número de escusas para sustentar a posição em favor do voto nulo ou abstenção. Este meu texto está, portanto, dirigido aos que assim praticam a não escolha com tentativa de justificação. Como considero tal posição “absurda”, vou também me manifestar a respeito, com argumentos que espero sejam racionais e contra-argumentáveis.

Para todos os efeitos práticos, abstenção, voto nulo ou branco se confundem nos seus resultados futuros: o cidadão votante, o contribuinte pagador de impostos se exime de fazer uma escolha entre os representantes – legisladores ou executivos – que decidirão como será gasto o seu dinheiro – recolhido por tributos compulsórios – nos projetos e obras votados nas assembleias e parlamento e implementados pelos poderes executivos. Esta é, se ouso resumir, a essência de minha contrariedade contra todas essas formas de invalidar o seu voto, a sua escolha, a sua decisão de eleitor.
Devo também dizer, preliminarmente, que sou contra o voto obrigatório. Este deve ser um direito, não uma obrigação, pois o que prima, para mim, é a liberdade do indivíduo, não a imposição do Estado. Reconheço que essa posição pelo voto livre pode parecer contraditória com a postura de considerar “absurda” a não manifestação de preferências por ocasião do escrutínio, já que a não obrigatoriedade estimularia, e muito, a abstenção, como observamos nos países nos quais o voto é um direito, não uma obrigação (cerca de metade, apenas, da população americana habilitada a votar comparece nas eleições gerais a presidente, ao que parece; os “patriotas” brasileiros enchem o peito de orgulho, ao mencionar nosso número de votantes, o que me parece sumamente ridículo, pois a democracia americana é tão vigorosa, em suas bases, que dispensa, justamente, esse tipo de participação “federal”).

Pois bem, o que eu teria a dizer contra o voto nulo, em branco ou a abstenção? Os que assim procedem costumam alegar o seguinte: “o meu voto não faz diferença nenhuma, pois se trata de apenas um voto, no meio de milhões de outros votos, e não é ele que vai determinar quem será eleito para a presidência”. Eu diria, de imediato, que faz, sim, uma enorme diferença, e não apenas para presidente, pois qualquer forma de abstenção ou “nulificação” do voto atinge muito mais o corpo representativo da nação, ou seja, parlamentos e assembleias subnacionais. A grande diferença está expressa diretamente no próprio ato: o agente social, o votante, o cidadão contribuinte se exime de expressar uma opinião, a sua opinião sobre os candidatos em liça. Trata-se, obviamente, de uma decisão puramente individual, totalmente legítima no plano individual, mas carregada de consequências práticas no plano social, no âmbito nacional, no futuro da comunidade nacional. Elaboro um pouco mais a esse respeito.
O ato de não votar, ou de votar nulo ou em branco, significa, simplesmente, que o indivíduo “não votante” será necessariamente representado por alguém, obrigatoriamente e inapelavelmente, mesmo que o “não votante” não faça absolutamente nada e sequer se interesse pelo processo legislativo ou pelos mecanismos de decisão em curso nos executivos locais ou nacional. Esse representante “eleito” – e ele o é também pelo “não voto”, pois o número de válidos determinará o chamado quociente eleitoral para o cálculo das bancadas proporcionais – terá legitimidade para impulsionar políticas com as quais o “não votante” eventualmente possa não estar de acordo, ou a que ele resolutamente se opõe: digamos, entregar dinheiro público a banqueiros falidos, a capitalistas protecionistas ou a invasores de terras, quando não a mafiosos sindicais.
Se o “não votante” se eximiu de expressar o seu voto contrário a um representante qualquer que pode decidir por qualquer das ações acima, é evidente que o “representante não escolhido” possui, sim, a faculdade de influenciar a vida do “não votante” contra a vontade deste (ou melhor, com a sua “colaboração”). Contra o argumento pouco filosófico de que “um voto não faz a diferença” podemos confirmar que faz, sim, enorme diferença, que é a de eleger ou deixar de eleger alguém que pode se aproximar, que seja minimamente, de nossas posições, contra aqueles que delas se afastam deliberadamente, ou que defendem políticas que rechaçamos absolutamente.
Em qualquer hipótese, a renúncia de ação por parte do “não votante” pode redundar numa usurpação de representação por parte do representante efetivamente eleito, aquele que vai decidir para onde vai o meu, o seu, o nosso dinheiro. Ela é, me parece uma “solução” de menor democracia do que a participação, ainda que a contragosto, do cidadão eleitor. Gostaria de compreender a posição daqueles que julgam ser muito complicado ou aborrecido penetrar nos detalhes das posições de cada candidato sobre cada tema de interesse cidadão, ou coletivo. Mas eu sou daqueles que não renunciam a uma única parcela de responsabilidade na comunidade política. E que não me venham falar de “indivíduos” que não gostam de ser misturados ou confundidos com a massa: todos nós vivemos em coletividade, todos nós somos parte da “massa”, qualquer que seja ela.

Pois bem, venho agora aos critérios de escolha, pois o assunto foi veiculado em comentário a um dos meus posts – aquele em que protesto contra o manifesto desonesto dos reitores das universidades públicas em favor da candidata oficial (mas eu protestaria igual se o manifesto fosse em favor do candidato da oposição) – que, aparentemente, chamou a atenção de alguns jovens universitários. Como me perguntou um desses jovens, leitor desse meu post: “Gostaria de saber então qual argumento é válido para declarar o voto neste ou naquele candidato.”
Eu diria o seguinte: o voto em qualquer candidato é válido, mas eu o faria acompanhar da seguinte nota de caução. Toda e qualquer escolha, eleitoral ou não, precisa ser feita de forma consciente quanto aos efeitos e consequências dessa nossa escolha, devemos sempre tentar visualizar as implicações de nossa escolha e examinar seu impacto futuro em nossas vidas e no itinerário provável de nossa comunidade.
Suspeito, ou suponho, que todos desejem viver num país “normal”, ou seja: com prosperidade, segurança, livre de corrupção, desenvolvido, organizadinho, limpinho, agradável, de preferência com altos salários e trabalho garantido, educação e saúde abundantes e a preços abordáveis – se possível gratuitos – e com plena liberdade de informação, de circulação, de expressão, sem envolvimento em confusões externas e vivendo num ambiente de paz interna (estou sendo muito exigente ou utópico?). Se queremos tudo isso, e temos o direito de pelo menos aspirar a algumas dessas coisas em nossas vidas, vamos ter de fazer algo para obter todos esses “direitos”.
Uma das maiores utopias – e inconsequências – da Constituição brasileira está, justamente, em prometer todo esse mundo de bondades róseas, sem jamais dizer como tudo isso poderá ser obtido. Existe até um senador – que eu respeito no plano individual, mas que nesse particular considero um perfeito idiota – que pretende colocar na Constituição o “direito à felicidade”, como se isso fosse fazer qualquer diferença no plano instrumental, ou prático. A constituição é cheia de direitos e quase nenhum dever; ou melhor, todos os direitos são dos cidadãos, todos os deveres são do Estado, essa entidade impessoal que segundo alguns deveria ser uma “mãezona” a zelar pela felicidade de todos e cada um: “A educação (ou saúde) é um direito dos cidadãos e um dever do Estado...”, assim reza a Constituição em diversas passagens. Faltou dizer quem vai pagar por tudo isso, onde está a produtividade (uma palavra que não existe ali) que vai sustentar esse mundo de benesses infinitas.
Independentemente, porém, de como serão resolvidas essas questões, está claro, pelo menos aos meus olhos, que os que prometem sempre tudo isso e um pouco mais estão incorrendo nessa terrível falácia constitucional que consiste em jogar com promessas futuras sem jamais dizer quem pagará por tudo isso. A demagogia eleitoral é o pior pecado que pode existir em qualquer época ou lugar. A inconsistência no uso do dinheiro público é o segundo pior pecado político que pode existir numa comunidade de cidadãos conscientes.
Por isso mesmo, meu simples critério eleitoral é o enfrentamento destas simples verdades: prometeu isto, diga de onde vai sair o dinheiro, quem vai sustentar, como serão aplicados os recursos e que benefícios esperados advirão dessa escolha, e não de outras? Em economia – e tudo se resume, em última instância, a uma questão de economia, como queria o velho barbudo – sempre existem alternativas, mas as escolhas sempre são políticas, independentemente de seus fundamentos econômicos.
O cidadão que vota nulo, ou branco, ou que se exime de escolher, está, pura e simplesmente, jogando o seu dinheiro no lixo. Ou melhor: entregando-o a alguém “mais esperto”, que saberá utilizá-lo em função de seus próprios critérios preferenciais. Sabemos que os “mais espertos” não são necessariamente os mais honestos e confiáveis, pois eles geralmente se utilizam da mentira e da mistificação para conseguir cargos políticos. Em resumo, votar consciente é votar inteligente. Renunciar a isso é não só um absurdo, como evidencia uma atitude pouco inteligente. Desculpem-me os “filosoficamente” a favor do voto nulo, mas é isto o que penso.
Boas escolhas a todos, ou corrigindo-me: a escolha “menos pior” possível.

Paulo Roberto de Almeida
Shanghai, 2215: 27-28.10.2010

Estamos em janeiro de 2011: leia o primeiro pronunciamento a nacao da nova presidente...

Enfim, quase isso.
Em 20 de janeiro de 2011, antecipando sobre o possível discurso que ela faria ao Congresso, por ocasião de sua primeira mensagem no dia da abertura dos trabalhos da nova legislatura, ou mesmo pela via de um pronunciamento à nação por rede nacional de comunicação, eu resolvi ajudar a nova administração preparando eu mesmo esse primeiro discurso programático do que poderia ter sido uma proposta de trabalho do novo governo, tal como apresentado sinceramente ao Congresso e à nação.
Leiam e vejam se um governo com um programa de ação nessas linhas não teria sido uma boa coisa, garantido à incumbente um segundo mandato tranquilo.
Em lugar disso, estamos aqui nos despedindo da soberana, ao término patético de um governo lamentável a todos os títulos.
Paulo Roberto de Almeida


Primeiro pronunciamento à Nação da Presidente da República
20 de Janeiro de 2011
Brasileiras e brasileiros,
Estou desde o dia 2 de janeiro no comando efetivo do país e esta é a primeira vez que eu tenho a honra e a oportunidade de me dirigir diretamente a vocês. Meu discurso de vitória, no dia 31 de outubro de 2010, e o de investidura no cargo, no Congresso Nacional, em 1o. de janeiro de 2011, trouxeram a vocês o que eu poderia dizer, respeitando as formalidades dessas ocasiões cerimoniosas, numa linguagem politicamente correta, feita com base em subsídios preparados por meus assessores de campanha. Agora pretendo ser menos cerimoniosa, dirigindo-me diretamente a vocês, neste primeiro pronunciamento público, que pretendo seja o mais franco e aberto possível. Em primeiro lugar, vou pedir para cessar essa “coisa” de me chamar de presidenta: meu feminismo não chega a esse ridículo de feminizar todos os cargos existentes na Nação; daqui a pouco, algum assessor subserviente vai querer me chamar de chefa de Estado, de governanta, ou de coisas piores...

Brasileiras e brasileiros, ou vice-versa,
Desejo falar a vocês, de coração aberto, sobre os problemas do Brasil; quero propor, com a franqueza e a sinceridade possíveis, algumas soluções que antevejo aos nossos mais angustiantes problemas, falar das dificuldades que o Brasil enfrenta como resultado de várias heranças malditas, e não apenas daquelas normalmente apontadas com alguma má fé e muita enganação. Vou transmitir meus sentimentos, partilhar com vocês minha percepção dos problemas e antecipar algumas linhas gerais dos caminhos que pretendo trilhar para construirmos um Brasil melhor e mais solidário.
Para isso vou precisar da compreensão, da participação e da colaboração de todos os brasileiros e brasileiras, além e acima dos partidos e líderes políticos com que conta nosso sistema representativo, certamente não o melhor possível, mas o que nos foi possível construir ao longo das últimas três décadas de consolidação democrática. Nas iniciativas mais relevantes espero contar, isso é óbvio, com o apoio do Congresso, na missão indispensável de fazer passar as reformas indispensáveis ao progresso da Nação e à prosperidade de seus cidadãos. Pois bem, vamos ao que interessa sem mais delongas.

Brasileiros e brasileiras, em qualquer ordem,
Todo nós, mesmo os da oposição, somos capazes de reconhecer, sinceramente, que a vida melhorou sensivelmente para a maior parte dos brasileiros, sobretudo os mais humildes, nos últimos oito anos. Mas muito ainda resta a ser feito para que essas melhorias se transformem em prosperidade permanente para o povo, e não sejam apenas um alívio temporário derivado do crescimento econômico mundial, das transferências governamentais, a exemplo do Bolsa-Família, e dos aumentos reais do salário mínimo ou do crédito ao consumidor. Todos esses mecanismos possuem limites materiais, nos quadros de uma economia “normal”, isto é, não inflacionária, caso no qual essas conquistas se dariam um preço insuportável sobre os mais pobres, sob a forma de erosão do poder de compra ou de mais impostos um pouco adiante.
Todos sabem reconhecer, também, que muito ainda resta a ser feito nos terrenos da saúde, da infra-estrutura, do saneamento básico, da educação e da segurança cidadã, sem mencionar os problemas da corrupção, sempre presente, e da criação de um bom ambiente de negócios, sem o qual nossos empresários não poderão produzir para os nossos cidadãos e competir num mundo globalizado como o de hoje.
Todos sabem, igualmente, que eu me comprometi, formalmente, com a erradicação da pobreza no Brasil. Sei que é uma promessa exagerada, e talvez eu devesse ter proposto a eliminação da miséria extrema, ou uma redução significativa da pobreza, que são objetivos mais razoáveis. Enfim, seja qual for o resultado final, vou me engajar resolutamente na tarefa, mesmo reconhecendo que se trata de um objetivo ambicioso demais, mesmo em quatro anos de mandato.
Sei que o Estado brasileiro, por maior que seja – e ele já é “muuuiuto” grande, reconheço – não é capaz, sozinho, de realizar essa tarefa grandiosa, que deve envolver toda a sociedade, a começar pelos empresários. Sendo assim, talvez fosse melhor deixar a sociedade resolver o problema por ela mesma, e isso por uma razão muito simples: se o Estado tiver de coletar os recursos na sociedade para tal tarefa – e todos vocês sabem que o Estado não produz rigorosamente nada – ele sempre vai cobrar um pedágio na entrada e na saída do dinheiro para resolver o problema da pobreza, pois esse é o preço da burocracia estatal. Bem melhor, nesse caso, deixar todo o dinheiro com a sociedade, com os próprios indivíduos e as famílias, para que eles descubram as melhores formas de gastá-lo, eventualmente pela realização de novos investimentos produtivos, que criam empregos, renda e riqueza. Essa é a minha visão do mundo.
Infelizmente – e nisso eu sou obrigada a discordar da maior parte de meus colegas de partido – ainda não inventaram nada melhor do que a livre iniciativa e a economia dos mercados livres para criar prosperidade social. Isso não é uma opinião: basta vocês olharem o mundo para constatar que as sociedades mais livres são também as mais ricas; essa lição eu aprendi, depois de muitos percalços na vida.
Por isso, e para isso, estou disposta a liberar as energias criativas dos brasileiros, dos empreendedores, dos investidores nacionais e estrangeiros, facilitando ao máximo seus negócios, e taxando ao mínimo seus fatores produtivos, assim como seus ganhos, que são a justa remuneração pelos riscos incorridos em suas atividades. A reforma tributária que eu pretendo implementar vai reduzir na máxima extensão possível o peso sobre o emprego – ou seja, sobre o trabalho – e sobre a renda, inclusive o lucro dos empresários, que deve transformar-se em novos investimentos. A tributação deve incidir sobretudo sobre o consumo, de preferência o chamado consumo conspícuo, não o consumo dos mais pobres, ainda que mais numerosos.
Em linha com essa intenção, caras brasileiras e brasileiros, pretendo operar uma redução drástica da máquina do Estado. Com um gabinete composto de 37 ou 40 ministros, secretários de Estado e assessores diretos, mesmo que eu quisesse seria impossível despachar com cada um dos titulares dos tentaculares serviços da administração federal central, mesmo que eu recebesse cada um deles continuamente ao longo de uma semana inteira. Como eu pretendo seguir o trabalho de meus ministros com a atenção que eles merecem, vou reduzir o número de ministérios ao total concebido originalmente para a Esplanada dos Ministérios: não mais do que duas dezenas, de preferência menos do que isso. Esperem novidades nessa frente.
Aliás, vou começar imediatamente, suprimindo o ministério da propaganda, também conhecido como Secretaria de Comunicação de Governo. Nenhum governo sensato e responsável necessita fazer propaganda; tampouco é preciso de um ministério inteiro para se comunicar com a sociedade: para isso, o governo já tem porta-voz. Quanto ao resto, ou seja, os ministérios que sobrarem, incluindo a presidência da República, não há o que se preocupar: basta disponibilizar as informações relevantes que tiverem, que a imprensa séria, aquela que não precisa de gorjeta para existir ou se comunicar com a sociedade, divulgará gratuitamente, na exata medida do interesse público que elas realmente tiverem. Chega de propaganda: com isso, vou fazer as economias necessárias para aplicar em saúde e educação.

Justamente, passo agora à educação, pois ela me parece – parece não, é! – a questão chave para se obter crescimento da renda, eliminação da pobreza e redução das desigualdades. Estou plenamente consciente de que o Brasil, em lugar de avançar, só recuou nas últimas décadas, e isso desde antes do regime militar, que, a despeito de ter feito muito pela formação pós-graduada, deixou praticamente abandonados os dois primeiros ciclos de ensino público. As gerações seguintes não souberam corrigir o problema, provavelmente por causa da ampliação democratizante das oportunidades de ensino, mas certamente também por erros de concepção na formulação e implementação dos parâmetros curriculares. Durante anos, ou até hoje, se ouso dizer, nossas orientações didáticas ficaram entregues à influência nefasta de uma tal de “pedagogia do oprimido”, uma coleção de bobagens pretensamente educativas, mas que apenas serviram para atrasar a educação no Brasil, criando uma viciosa divisão da sociedade em classes, como se houvesse uma luta inevitável entre elas.
Pior ainda que essa perniciosa pedagogia do atraso, alegadamente maoísta (quando os próprios chineses abandonaram esse tipo de estupidez há muito tempo), é o sindicalismo exacerbado, de baixa extração, que prevalece para a categoria dos professores: recheado de profissionais das reivindicações salariais, sem qualquer compromisso com a qualidade do ensino, focados num isonomismo doentio que impede o reconhecimento do mérito individual na avaliação do desempenho dos professores e que cuida apenas dos seus direitos, jamais de suas obrigações. Sei que será muito difícil corrigir as deformações da educação brasileira e confesso até que considero tomar a iniciativa de iniciar uma carreira paralela para o professorado, sem as falsas garantias da estabilidade, mas com níveis de remuneração compatíveis com as responsabilidades do cargo, proporcionais ao desempenho efetivo nas salas de aula.
Essa questão da estabilidade dos funcionários públicos, aliás, é uma das pragas do sistema político brasileiro. Não se trata exatamente de uma jabuticaba – pois existe também em outros países em decadência progressiva – mas de um peso crescente que a parte da sociedade que trabalha e paga impostos (mas sem dispor dos privilégios da aposentadoria pública) suporta com cada vez menor paciência. Tenho plena consciência, também, de que o peso do Estado já representa um problema para o Brasil e os brasileiros: de promotor do desenvolvimento, que ele foi décadas atrás, o Estado se tornou um obstrutor do crescimento econômico, pela despoupança que ele provoca ao retirar recursos privados que de outra forma serviriam a novos investimentos, pela enorme carga tributária e pela irracionalidade dos sistemas de arrecadação, que além de seus males declaratórios, costumam ser cumulativos e incidir sobre os mais pobres.
Acho que já está na hora de reduzir o peso do Estado; isso tem de ser feito de alguma forma. Como também sei que não existe entendimento possível entre todos os entes federativos sobre a estrutura tributária ideal, uma que contemple todos os interesses em causa (e que até aumente as receitas, segundo alguns), proponho uma fórmula mais simples e equânime: todos os impostos, sem exceção – o que compreende também as muitas contribuições exclusivas do governo central – serão incluídos num programa de redução automática, progressiva e calendarizada de todas as suas alíquotas básicas, eliminando pelo menos um terço do que essa arrecadação representa hoje como extração compulsória dos recursos legítimos dos cidadãos e das empresas.
Minha intenção é fazer com que, em uma década e meia aproximadamente, cortando poucos pontos percentuais por ano, ou a cada semestre, a carga fiscal total seja trazida dos atuais 2/5 da renda nacional – sim, estamos a 38% do PIB, caminhando para 40% – para menos de 30% da riqueza nacional, valor que deveria ser o máximo admissível para um país como o Brasil. Dessa forma, tratando todo mundo igual, e colocando essa meta num prazo de 15 anos, estados e municípios não poderão reclamar de um corte de impostos drástico ou desequilibrado; eles irão adaptar-se progressivamente à redução gradual de receitas. Na verdade, a experiência histórica ensina que quando se reduzem os impostos, a arrecadação aumenta, pois as pessoas e empresas ficam menos propensas a evitar ou elidir os impostos quando eles são percebidos como menos perversos ao terem suas alíquotas reduzidas.
Quando esse processo for iniciado, e todos se engajarem nele, trataremos de fazer os ajustes necessários no sentido de se reduzir a carga tributária sobre os extratos de baixa renda – o que não é difícil, bastando taxar menos os produtos de consumo popular – bem como sobre o capital e o trabalho, para estimular o emprego e os investimentos.

Brasileiras e brasileiros,
Eu tenho muitas propostas a fazer a vocês, e ao Congresso, neste quadriênio que agora tem início de verdade, e as farei sem arroubos, sem a pretensão de monopolizar a verdade, apenas e tão somente com a intenção de continuar um processo de reformas que teve início duas décadas atrás e que foi momentaneamente interrompido por razões que não cabe agora abordar. Nunca, neste país, deveríamos ter abandonado o caminho das reformas, sobretudo as que foram feitas em termos de estabilização e de modernização do Estado; não pretendo amarrar o país às fantasias estatizantes de um passado que não volta mais. Temos de olhar para a frente, saber o que de melhor está sendo feito em outros continentes e adaptar essas lições de crescimento rápido às nossas próprias necessidades, não ficar cultivando o dirigismo caduco que vigorou durante muito tempo, e que ainda parece ser cultivado em certos países da região. Não existem obstáculos técnicos para isso, nem os recursos para os investimentos produtivos fazem falta, pois há abundância de liquidez no mundo. O que nos atrapalha, e bastante, é a mentalidade atrasada de certos líderes políticos, em total descompasso com a abertura da sociedade às mudanças e inovações.
Estou pronta a fazer a minha parte, e espero receber a ajuda de todos vocês, independente de partidos e de escolas econômicas. O que interessa é o progresso do Brasil e a prosperidade das brasileiras e brasileiros, como vocês.
Conto com vocês, para enfrentar esses enormes desafios.
Obrigada.
Presidente Dilma Rousseff

Com a ajuda (involuntária, mas deliberada) de
Paulo Roberto de Almeida
[Brasília, 20 de janeiro de 2011]

A politica externa companheira e a diplomacia partidaria: contraponto aos gramscianos da academia - Paulo Roberto de Almeida

A política externa companheira e a diplomacia partidária: um contraponto aos gramscianos da academia, por Paulo Roberto de Almeida

by Coordenação, 4/10/2014
 

O término de um mandato presidencial sempre é uma boa ocasião para se efetuar um balanço das coisas boas e das menos boas que transcorreram durante o período. Por deformação de ofício, mas também por inclinação pessoal, tenho feito esse tipo de avaliação ao final e até no início de novos mandatos, num terreno que por acaso é o meu pelas últimas três décadas, pelo menos: os das relações internacionais do Brasil e da política externa dos governos que se sucederam desde o final dos anos 1970 (em plena ditadura, portanto), até a atualidade. Uma lista nominal de todos os ensaios de avaliação que escrevi a esse respeito ao longo dessas décadas seria provavelmente enfadonha, mas talvez possa ser útil aos que manifestem o desejo, e o interesse, de conhecer, ainda que seletivamente, o que produzi de mais relevante nessa área. Por isso, permito-me enumerar os mais representativos desse tipo de produção ao final deste breve ensaio.
Mas o que me motiva a novamente realizar o mesmo tipo de exercício é a publicação recente, no calor dos debates eleitorais, de dois ou três artigos dentro da linha do continuísmo diplomático, ou seja, escritos deliberadamente com a intenção de “provar” que a política externa companheira, em curso desde o primeiro dia do regime lulo-petista – que entrou para a história como a era do “Nunca Antes”, que aliás serviu de título a meu livro mais recente – é a única suscetível de defender a soberania do Brasil, e que ela deve ser preservada com todo o ativismo e altivez que supostamente a caracterizam (segundo a figura de estilo, pro domo sua, de um ex-chanceler). Como eu acho que esses artigos nada mais são do que propaganda enganosa a serviço do partido no poder, publicidade encomendada travestida de análise acadêmica, resolvi apresentar aqui outros elementos de discussão, ao alinhar alguns argumentos em favor de uma outra visão, que pelo menos tem a vantagem, sobre essas, de oferecer uma perspectiva “interna” da diplomacia companheira, e sem que ninguém me tivesse encomendado tal tarefa. Ni Dieu, ni maître, como diria um anarquista; e eu: nem mestre, nem patrão.
Primeiro: distinguir a política externa da diplomacia, stricto sensu
Cabe distinguir, primeiramente, entre política externa e diplomacia – que são assemelhadas mas não devem ser confundidas –, para, a partir daí, fazer uma avaliação de ambas ao longo do período recente. A primeira não se distinguiu muito, ou praticamente nada, da política externa conduzida nos dois mandatos do presidente Lula, ou seja, significou uma continuidade conceitual, em suas grandes linhas, ainda que tenha representado certa diminuição no ímpeto para novas iniciativas e no impulso para projeções exageradas no plano internacional. A segunda, a diplomacia, foi certamente diferente, ainda que ambas tenham apresentado forte ênfase na chamada diplomacia presidencial, ou seja, o envolvimento direto do chefe de Estado com certos temas, embora com certa diminuição na intensidade das ações, como aliás ocorreu na transição de uma para outra política externa. Foram estilos diferentes, digamos assim, na maneira de conduzir a política externa e a diplomacia: um pouco diferentes entre si, mais na forma do que no conteúdo, ainda que continuassem pertencendo e aderindo, ambos, aos mesmos princípios e modos de funcionamento.
Cabe, portanto, examinar uma e outra em sua substância, e não apenas na forma sob a qual foram respectivamente desenvolvidas. Quando se diz que a política externa não se distinguiu muito entre os dois mandatos anteriores do presidente Lula (2003-2006, e 2007-2010) e o mandato da sucessora, é porque esta preservou basicamente as mesmas orientações, as mesmas linhas essenciais que estavam em curso desde o início do primeiro mandato lulo-petista, do qual esta foi mera continuação, quando não foi uma simples projeção no tempo, por pessoas interpostas, da mesma política externa.
Cabe registrar, desde logo, que essa política externa (e sua diplomacia) foi muito bem recebida pelas correntes ditas progressistas da opinião pública, o que significa quase toda a academia, por ter sido considerada como bastante inovadora em relação às linhas anteriormente conhecidas da política externa brasileira, que era influenciada (se não determinada, em grande medida) pelo Itamaraty. Esta é a principal característica da política externa lulo-petista, da qual a política externa “dilmista” (se é possível, de fato, falar de uma) representa, como já se disse, mera continuidade.
Avaliação da política externa e da diplomacia de 2011 a 2014
A avaliação que se pode fazer, de uma e de outra, é, portanto, válida para todo o período lulo-petista e seus grandes traços são bastante conhecidos pelos observadores dos meios de comunicação, tanto quanto pelos analistas acadêmicos. Se trata de uma política que se pretende – numa espécie de classificação pro domo sua, ou seja, em causa própria – “ativa e altiva”, e que se quer soberana, ou mais exatamente defensora da soberania nacional. Como elogio em boca própria pode ser vitupério, digamos que ela se conforma a certos traços que seus próprios protagonistas selecionaram para si: uma diplomacia voltada para o Sul – como se uma orientação para o Norte constituísse um pecado original e basicamente orientada a “mudar as relações de força” no cenário internacional, tido como prejudicial às novas aspirações do governo para o país.
Essa foi a intenção proclamada pelo anterior chefe de Estado, e confirmada pelo seu único chanceler mais de uma vez, que ainda acrescentava que se pretendia criar uma “nova geografia do comércio internacional”. Como ocorreu em várias outras esferas da vida nacional, e de suas políticas públicas, se pretendia romper com o universo anterior, considerado uma “herança maldita” sob diversos aspectos, ainda que esta caracterização tenha mais de demagogia política do que de análise objetiva. Na política externa, em todo caso, as pretensões eram bastante ambiciosas, e em torno delas se mobilizou uma diplomacia que foi convidada a “vestir a camisa” do novo governo.
Em síntese, se acreditava que a ordem mundial anterior estava caracterizada por uma “extraordinária concentração de poder econômico, militar, político, ideológico, cultural” (e vários outros mais) nas mãos das antigas potências coloniais europeias e, principalmente, do império americano. Esta é a análise que o principal ideólogo daquela diplomacia – o ex-Secretário-Geral do Itamaraty, Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães – fez de maneira recorrente da situação internacional encontrada pela diplomacia lulo-petista no início do milênio, e que seus protagonistas e principais proponentes tentaram modificar. O caminho estaria numa aliança entre potências emergentes e países do Sul de maneira geral, para se opor a esse poder desmesurado do hegemonismo arrogante, de maneira a poder “democratizar as relações internacionais”, redistribuindo aquelas fontes de poder entre novos atores.
A Weltanschauung dos companheiros e seus objetivos táticos
Este é o arcabouço mental, e o quadro conceitual, em torno do qual se construiu a política externa lulo-petista, e em função do qual se mobilizou uma diplomacia voltada essencialmente para esses grandes objetivos. As metas táticas para alcançá-los, pelo menos parcialmente, foram apresentadas, ao início daquele governo, como estando integradas por três prioridades: (a) reforço e ampliação do Mercosul e constituição de um espaço econômico integrado na América do Sul; (b) conquista de um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas; (c) finalização das negociações comerciais multilaterais da Rodada Doha, com aquela orientação de aliança com os países do Sul, no sentido de criar a “nova geografia do comércio internacional”. Qualquer que seja a posição do observador jornalístico, ou do analista acadêmico, pode-se avaliar, então, se esses objetivos foram alcançados, ou cumpridos parcialmente, com base na diplomacia mobilizada para atingi-los. Uma avaliação honesta diria que eles sequer foram arranhados, ainda que os adeptos dos governos lulo-petistas sempre terão motivos para se explicar quanto ao atingimento apenas parcial ou nulo de tais objetivos.
Ainda que os fieis seguidores da causa companheira possam dizer, por exemplo, que o Mercosul “deixou de ser apenas comercial, para também ser político e social”, um critério honesto e objetivo de aferição teria de reconhecer que o Mercosul é, sempre foi, um tratado de integração comercial, e é isso que o define como instrumento de criação de um espaço econômico comum no cone sul. O Mercosul está mais próximo, hoje, das metas fixadas institucionalmente no Tratado de Assunção em 1991? Ou seja, de um mercado comum? Sequer uma união aduaneira completa ou uma zona de livre comércio acabada foram realizadas; ao contrário, a convergência interna diminuiu, para não dizer que as divergências de política comercial, mas também em outras políticas setoriais, só fizeram aumentar ao longo dos últimos doze anos. O Mercosul é hoje uma sombra do que foi, e não se pode pretender que a adesão política de países tão pouco propensos ao livre comércio, como a Venezuela, a Bolívia e o Equador, o fará mais forte em seus objetivos essenciais, que continuam sendo aqueles estipulados no artigo 1o do TA.
Quanto ao assento permanente no CSNU, é óbvio que a reforma da Carta das Nações Unidas e a ampliação do seu órgão de segurança não dependiam da postura assumida pelo Brasil, num processo tão complexo quanto a ascensão e declínio de novos atores nos cenários geopolíticos mundiais. Mas o ativismo da diplomacia lulista pode ter contribuído, também, para o acirramento da rigidez oposicionista de outros atores regionais, a começar pela própria Argentina, preocupação sempre mantida pela anterior diplomacia – a de FHC – para não causar, justamente, desacertos públicos numa questão que merecia iniciativas mais discretas e profissionais. Tampouco o terceiro objetivo dependia da capacidade negociadora do Brasil, ou mesmo de seus muitos aliados no sistema de comércio internacional, mas não houve, nesse terreno, realismo suficiente para atuar nas duas vertentes: a do multilateralismo do sistema de comércio regido pela OMC, e o minilateralismo dos blocos e acordos comerciais de menor amplitude geográfica, e mais suscetíveis de serem implementados de modo mais rápido e com objetivos práticos mais bem definidos, ainda que mais limitados.
Quando o governo Dilma assumiu, porém, esses dois últimos objetivos já estavam praticamente “congelados”, e não cabiam mais iniciativas nesses dois terrenos. Mas a via do minilateralismo comercial continuava sempre aberta para novas iniciativas brasileiras, muito embora o Mercosul pudesse ser, como é, de fato, uma espécie de “pedra no sapato” para a busca de acordos comerciais regionais. Não que o Mercosul possa ser infenso a acordos de liberalização comercial com outros países e blocos comerciais, mas é que a postura de alguns de seus sócios – nomeadamente a da Argentina – tem dificultado sobremaneira a definição de posições comuns para permitir o avanço em negociações desse tipo. Não se espera, a esse respeito, que o ingresso político dos novos associados bolivarianos venha a facilitar as coisas nesse terreno, muito pelo contrário: as perspectivas, portanto, são as de um Mercosul paralisado e introvertido, situação já configurada a partir do neoprotecionismo demonstrado pelos países membros a partir da crise de 2008 (na Argentina desde sempre) e que promete continuar vigente caso não ocorra uma mudança radical na política comercial.
Esta é, portanto, a avaliação que se pode fazer da política externa dos governos lulo-petistas, mas exclusivamente em relação aos objetivos diplomáticos estabelecidos pelo próprio chefe de Estado e seu chanceler, ao início do regime companheiro. Não é preciso, aqui, fazer menção a diversos outros elementos de continuidade, igualmente nítidos entre um governo e outro, e que tem a ver mais com a diplomacia partidária do que com opções de política externa que pudessem representar itens de uma agenda “normal” das relações exteriores do Brasil. Alguns casos podem servir de ilustração.
O lado obscuro da política externa companheira
O apoio incondicional a algumas das piores ditaduras do continente, e alhures, por exemplo, não figuraria na “agenda normal” do Itamaraty, em circunstâncias “normais” da política externa. O apoio irrestrito a vários candidatos tidos por progressistas, ou de esquerda, na região e fora dela, foi outra iniciativa que rompeu tradições bem assentadas no Itamaraty, e até alguns princípios constitucionais muito claros da tradição brasileira, como a não intervenção nos assuntos internos de outros países. Como explicar de outro modo, senão por uma diplomacia totalmente partidária, e ideologicamente comprometida com o chavismo militante, o envolvimento no caso da crise política em Honduras?
Como justificar o apoio repetido, continuado e incondicional, ao regime chavista, e a seu sucessor, em face de tantas violações às cláusulas democráticas da OEA e do próprio Mercosul? Como explicar a existência de empréstimos secretos bilionários, e todos os tipos de apoio financeiro, à mais velha ditadura do hemisfério americano, senão pelo comprometimento de vários membros do partido hegemônico com a filosofia e a história de um regime que encarna as piores violações dos direitos humanos e dos princípios democráticos na região? Em quais circunstâncias, exatamente, o Paraguai foi suspenso do Mercosul – contrariamente, aliás, aos procedimentos determinados pela própria cláusula democrático do bloco e admitida a Venezuela no intervalo? O Itamaraty foi acatado em seus pareceres jurídicos e em sua análise política?
Estes são elementos que também devem entrar em qualquer avaliação que se faça da política externa seguida nos últimos doze anos, fruto de uma diplomacia marcada pelas opções partidárias mais exacerbadas que foram dadas contemplar por um Itamaraty basicamente profissional, em toda a sua história, mas que foi submetido aos novos objetivos e opções do regime companheiro. Se houve alguma novidade na diplomacia do terceiro mandato do regime lulo-petista foi a perda da pirotecnia anterior que era garantida pelo próprio chefe de Estado, com seu estilo peculiar de conduzir as relações exteriores do Brasil: diminuíram o ativismo, as iniciativas, e a diplomacia dita presidencial assumiu contornos mais discretos; mas não se podem apontar elementos realmente novos nessa política externa. O que houve de novidade, como o ingresso “pleno” da Venezuela no Mercosul, por exemplo, já estava embutido nas propostas do governo anterior, cujas principais iniciativas diplomáticas – como as reuniões de cúpula entre chefes de Estado e de governo da América do Sul, por um lado, e seus contrapartes da África, e dos países árabes, de outro – ficaram mais ou menos “congeladas”, ou pelo menos sofreram sensível redução em seu ímpeto.
O Itamaraty foi ignorado pela presidência na gestão de 2011 a 2014?
Não se pode ignorar simplesmente um ministério que conduz uma agenda relevante nas políticas públicas do país. Talvez essa impressão seja o reflexo do modo de ser da presidente, que também não parece se relacionar muito bem com os líderes congressuais, com os representantes partidários, com empresários e líderes sindicais e de movimentos populares, como fazia, por exemplo, e com grande sucesso, seu antecessor. São traços de personalidade que definem toda uma gestão, e não apenas o relacionamento com o Itamaraty. Provavelmente uma menor empatia pelos temas internacionais tenha gerado essa imagem de um distanciamento entre a presidente e o Itamaraty, e claramente não havia, nunca houve, entre ela e seus dois chanceleres, o mesmo tipo de intimidade que ela pode ter exibido em relação a alguns de seus ministros mais próximos. Mas deve-se levar em conta, também, o fato de que a presidente nunca foi uma petista “fundadora”, e não parece ter gozado das mesmas alavancas de apoio no partido de que dispunham alguns companheiros “históricos”. Ou seja, outros ministérios setoriais podem também ter se ressentido do mesmo tratamento distante registrado, provavelmente, no caso do Itamaraty.
Para saber se o Itamaraty foi realmente “ignorado” seria preciso fazer um levantamento preciso, primeiro, das dotações orçamentárias, e de sua distribuição e evolução ao longo deste mandato, depois dos compromissos inscritos na agenda do Itamaraty que a presidente eventualmente desdenhou ou não pretendeu assumir. Apenas a partir de uma avaliação objetiva desse tipo seria possível defender a tese explicitada na questão, a de que o Itamaraty foi “ignorado” na gestão Dilma. Em relação aos recentes cortes de verbas, aparentemente lineares e válidos para todos os ministérios, seria preciso saber se eles foram mais profundos no caso do Itamaraty do que nos demais órgãos da administração direta. Registre-se que o Itamaraty possui um perfil de gastos bastante modesto no conjunto da administração pública, mas que a maior parte deles é quase rígida, pois que correspondendo a compromissos e obrigações externas que não podem ser suprimidos ou reduzidos facilmente, sem mencionar o fator cambial, que pode ser muito negativo em caso de desvalorização da moeda nacional.
Caberia também considerar que os dois mandatos anteriores foram tão vistosos, tão resplandecentes, tão eloquentes em matéria de política externa e de diplomacia, que seria muito difícil, senão impossível, tentar estabelecer uma postura equivalente em qualquer outro governo, passado, presente ou futuro. Nunca antes na história do Brasil tivemos um presidente tão eloquente, tão verborrágico, tão envolvido em questões internacionais, talvez por gosto, mais provavelmente por alguma obsessão de fundo psicológico, alguma necessidade de afirmação, desejo de ganhar algum Prêmio Nobel – ao lado das dezenas de doutorados honoris causae jamais acumulados por qualquer outro político na face da Terra ou outros sentimentos ainda mais obscuros para nossa condição de simples observadores da diplomacia lulista. Frente a ela, todas as demais se apagam em sua normalidade ou mediocridade: este é um fato da história política recente do Brasil, independentemente do julgamento que se faça sobre o conteúdo daquela diplomacia e da avaliação objetiva que se tenha quanto aos resultados (ou falta de) de sua política externa.
Não obstante, considerados todos esses fatores, é muito provável, sim, que em função de peculiaridades individuais e pessoais, tenha ocorrido alguma falta de sintonia entre o Itamaraty e a presidente, inclusive porque existem certos rituais do cerimonial diplomático, ademais de constrangimentos derivados de situações externas que não podem ser facilmente administrados por apenas uma das partes, que reforçaram essa impressão de distanciamento entre a Casa de Rio Branco e a presidente. Pode-se dizer, em suma, numa linguagem goethiana e weberiana, que nunca existiram suficientes “afinidades eletivas” entre a presidente e a Casa de Rio Branco, embora isso possa ter ocorrido com outros presidentes também. Mas, o fato é que, vindo logo após o mais pirotécnico de todos os nossos presidentes, travestido de diplomata, ficava realmente difícil igualar certos padrões de comportamento, e até de compostura, no plano das relações exteriores do Brasil.
Lista seletiva de trabalhos do autor sobre política externa do Brasil:
José Augusto; Seitenfus, Ricardo; Nabuco de Castro, Sergio Henrique (orgs.), Sessenta Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990) (2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, ISBN: 85-7387-909-2; v. I: Crescimento, Modernização e Política Externa; p. 537-559),
“La politique internationale du Parti des Travailleurs: de la fondation du parti à la diplomatie du gouvernement Lula”, In: Denis Rolland et Joëlle Chassin (orgs.), Pour Comprendre le Brésil de Lula (Paris: L’Harmattan, 2004, ISBN: 2-7475-6749-4; p. 221-238; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/73BresilLula.html).
“A política internacional do Partido dos Trabalhadores: da fundação do partido à diplomacia do governo Lula”, Sociologia e Política (Curitiba: UFPR; n. 20 jun. 2003, p. 87-102; ISSN: 0104-4478; link: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782003000100008).
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor no Centro Universitário de Brasília – Uniceub (pralmeida@mac.com )