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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O mito da Revolução Cubana - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)

O mito da Revolução Cubana

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1. O mito fundador: a revolução que se transformou em reação
Poucos mitos, na América Latina, especialmente entre os acadêmicos, são tão poderosos quanto o da Revolução Cubana, usualmente identificada com as figuras de Fidel Castro e de Ché Guevara — ele próprio um mito à parte, icônico em suas manifestações mais apelativas, sem esquecer o merchandising— tanto quanto pelo tremendo valor simbólico da “resistência ao imperialismo”, especialmente relevante para todos aqueles que acreditam em outro mito da mesma família: a de que esse mesmo imperialismo é responsável pela miséria e subdesenvolvimento da América Latina, cujas veias abertas estariam sendo constantemente drenadas por esse monstro capitalista (trataremos, em outro artigo da série, dessa outra falácia acadêmica).
O próprio conceito de Revolução Cubana constitui um mito inaugural: não existe mais revolução cubana, e isto há muito tempo. Tudo o que restou das transformações políticas na ilha, feitas entre 1959 e 1965 aproximadamente, foi um regime autocrático, de inspiração supostamente socialista (mais exatamente ao estilo soviético), incapaz de garantir um abastecimento adequado ao seu próprio povo (como, aliás, ocorria com todos os socialismos realmente existentes, sem exceção). Sublinho deliberadamente transformações políticas, posto que em matéria de transformações econômicas, o que ocorreu, mais exatamente, foi uma tremenda involução, um retrocesso absoluto, que resultou em que o ex-principal exportador de açúcar da região é obrigado, atualmente, a importar o produto para o consumo do seu próprio povo, sem falar da inexistência quase completa de indústrias de consumo dignas desse nome. Mas voltemos, em primeiro lugar, ao mito da revolução.
Como sabem todos aqueles que estudam sociologicamente o fenômeno revolucionário, nenhum processo desse quilate, absolutamente nenhum, dura cinqüenta anos, ainda mais com a promessa — constantemente refeita pelos dirigentes ‘revolucionários’, na verdade, reduzidos hoje a umanomenklatura geriátrica — de que a revolução é um movimento vivo, que deve renovar-se e continuar para sempre. Um processo insurrecional e de ativa preparação para a tomada do poder político pode até durar muitos anos, como foi o caso, por exemplo, da revolução chinesa, que depois conheceu várias etapas no processo de construção do totalitarismo maoísta: a aliança de classes e as cem flores nos anos 1950, o grande salto para a frente e sua desastrosa falência entre 1959 e 1962, a revolução cultural de 1965 a 1969, a grande luta entre as cliques dirigentes depois disso e, finalmente, o que não tinha nada mais de revolucionário, a reforma gradual do socialismo chinês em direção de formas de mercado que não excluem (e até promovem) o capitalismo mais selvagem que se conhece desde Marx e Engels.
As revoluções constituem processos extremamente concentrados no tempo, ainda mais concentrados na utilização da violência política, que costumam substituir uma classe dirigente por outra, alterando completamente o sistema político e, até mesmo, as bases econômicas de funcionamento de uma determinada sociedade. Revoluções duram somente o tempo de substituição dos dirigentes no comando do Estado, a partir daí o que se tem são processos mais ou menos lentos de alteração das relações sociais, o que pode ser feito com doses extras de violência — como no caso chinês ou soviético, sob Mao e Stalin — ou, mais freqüentemente, por meio das burocracias que emergem com o novo poder. Enfim, uma revolução que dura 50 anos, na mais perfeita normalidade do comando ‘revolucionário’, é uma contradição nos termos. Todas as revoluções, a partir de um certo tempo se ‘estabilizam’ e a nova classe dirigente passa a cuidar de sua própria conservação, ou seja, a revolução se transforma em reação, quando não em algo profundamente reacionário.
No caso da Revolução Cubana, pode-se traçar, perfeitamente, uma cronologia para o processo revolucionário: a fase insurrecional durou poucos anos, a rigor desde Moncada (1953) até a tomada do poder, em janeiro de 1959, com a etapa guerrilheira se estendendo durante pouco mais de dois anos, tão somente. Ou seja, o processo de luta contra a ditadura de Batista foi algo extremamente rápido, em termos estritamente temporais, e absolutamente exitoso nos planos político-social e estratégico-militar, inclusive com a colaboração involuntária do próprio regime, que consentiu em anistiar o jovem advogado condenado por sedição após poucos meses de prisão (aqui entra um outro mito, o da “História me absolverá”, mas que pode ser deixado ao cuidado dos historiadores, por falta de espaço neste ensaio).
A partir daí se abre o processo revolucionário propriamente dito: uma fase nacionalista em 1959, logo alterada por escolhas mais radicais nos planos político e econômico — inclusive as decisões de não realizar eleições livres e de expropriar grandes latifúndios para fins de reforma agrária — seguida, finalmente, da opção propriamente socialista, entre 1961 e 1962. A partir daí, a ‘revolução’ socialista se aprofunda, com a completa estatização dos meios de produção e a ‘sovietização’ do estilo de poder e das formas de dominação, processo que culmina, basicamente, em 1965, quando começam os primeiros expurgos e o regime perde sua aura romântica que ele tinha mantido até então. Muitos intelectuais e o próprio Ché Guevara abandonam a ilha, cada qual com suas opções intelectuais e políticas intactas, os primeiros por não concordarem com essa orientação do regime cubano, o segundo para tentar fazer a revolução em outros países.
Esta é a Revolução Cubana, nada mais do que isso: a tomada do poder em nome da luta contra a ditadura, pela democracia e pela justiça social, com promessas de reforma agrária (que aliás estavam sendo impulsionadas em quase toda a América Latina pelo próprio imperialismo, insatisfeito com o estilo oligárquico atrasado de quase todos os seus aliados na região). O que veio depois de 1965 foi a administração de um socialismo que não escapou às mesmas fatalidades de seus congêneres em outras partes: ineficiência econômica, irracionalidades produtivas, falta de inovação pela ausência de estímulos apropriados e, sobretudo, repressão política, falta de liberdade completa no plano partidário, de imprensa e intelectual, e as pequenas e grandes misérias morais de todo e qualquer regime socialista.
Pior do que isso, talvez, pois outros regimes atrasados na própria América Latina também exibiam ineficiência econômica, baixíssimos índices de produtividade econômica e, tanto à direita quanto à esquerda, repressão política e falta de liberdades elementares: no caso de Cuba, tudo isso se viu agregado do velho estilo soviético (stalinista, quero dizer) de dominação e de monopólio político absoluto pelo partido monocrático e todo poderoso (algo que nem as ditaduras direitistas mais extremas na região jamais produziram). Quem achar que estou errado, deveria, supostamente, poder provar-me que a ilha caribenha dispõe de: eficiência econômica, vibrante sistema produtivo, tecnologia avançada no plano internacional, liberdade política, imprensa livre e ausência de dissidentes encarcerados por divergência de opinião. O teste é muito simples e pode começar pela existência de balseros (boat-people), algo que só as ditaduras mais extremas conseguem produzir: a existência de pessoas desesperadas, dispostas a enfrentar os riscos terríveis de uma aventura no mar, para escapar ao desespero das misérias cotidianas (que geralmente são mais econômicas do que propriamente políticas). Apenas a existência contínua desses candidatos a náufragos do regime já provaria o tremendo fracasso da ‘revolução’ cubana.
2. A especificidade cubana: uma ilha que é quase uma fazenda pessoal
O que teve, e talvez ainda tenha, a Revolução Cubana de diferente, em relação aos modelos do gênero, é o tremendo carisma de dois de seus dirigentes, um deles efêmero, é verdade, mas aparentemente eterno: Fidel Castro e Ché Guevara. Desaparecido precocemente este último, restou o velho líder revolucionário, que empolgou muita gente, na ilha e fora dela, e permanece como o símbolo do processo revolucionário. Quanto ao Ché, é um fenômeno planetário: trata-se, possivelmente, depois da Coca-Cola, da imagem mais conhecida e valorizada do mundo, presente em dez de cada nove manifestações organizadas por movimentos de esquerda, sobretudo conquistando os jovens, que compram avidamente pôsteres e camisetas para indicar sua preferência romântica, alimentando com isto um dos mais pujantes mercados capitalistas de que se tem notícia na história do merchandisingmundial.
Do Ché ficou a imagem do guerrilheiro heróico, seja em Cuba, seja na Bolívia, onde fracassou na tentativa de criar um outro Vietnã no coração da América Latina. Pouco se fala de seu período à frente de La Cabaña, uma caserna do ancien régime cubano convertida rapidamente num dos mais ativos centros de fuzilamentos logo depois da vitória da revolução, muitos dos quais após sumaríssimos julgamentos, outros sem sequer essa formalidade ‘burguesa’. Se fala ainda menos de suas rápidas e catastróficas passagens pela presidência do Banco Central cubano e pelo Ministério da Indústria, cujas conseqüências mais notáveis, aliás, foram as de apressar a subordinação da ilha aos interesses da União Soviética e o início de um longo período de dependência dos subsídios russos durante praticamente toda a existência residual da URSS. Seus planos de industrialização — sem falar na tentativa de criação de um ‘homem novo’, cuja realização perfeita seria um trabalhador sem qualquer tipo de exigência material, funcionando apenas à base de ‘emulação socialista’ — foram tão desastrosos que, já em 1965, Cuba escolhia voltar para a monocultura açucareira (atenção, quem diz isso não sou eu, e sim Celso Furtado, no último capítulo de seu livro, aliás deficiente, sobre a Formação Econômica da América Latina, de 1967).
Com a morte precoce de Camilo Cienfuegos, com o afastamento de Ché Guevara e o desaparecimento ou eliminação de outros possíveis concorrentes da fase insurrecional, a revolução cubana acabou sendo dominada pela figura ímpar, sem dúvida excepcional historicamente, de Fidel Castro, que passou a administrar a ilha como se fosse uma fazenda pessoal. Foram muitas as suas tentativas improvisadas de mudar a economia da sua fazenda — como o estímulo à plantação de café, na base do empirismo puro, sem qualquer viabilidade agronômica — com resultados catastróficos a cada vez. Mas a figura de Fidel Castro há muito tempo já passou por esse fenômeno que Max Weber identificou como a ‘rotinização do carisma’, sendo improvável que esse carisma sobreviva ao desaparecimento físico do titular. O mais provável é que a ‘revolução’ — que de fato já não existe mais — se estiole numa dominação puramente autocrática-oligárquica, até sua completa erosão numa futura redemocratização e normalização da ilha, segundo modalidades ainda não detectáveis neste momento.
Enfim, este é o primeiro mito ligado a Cuba, que cabe, portanto, descartar no plano histórico e mais exatamente sociológico. Vejamos, agora, quais seriam as outras falácias que podem ser associadas ao mesmo mito, entretido com tamanho desvelo em certos círculos acadêmicos, que eu chego a receber de um desses representantes da espécie mensagens eletrônicas que são finalizadas por um desses orgulhos ingênuos de certos companheiros de viagem do socialismo cubano: “Esta noite, 200 milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma é cubana.” Incrível como acadêmicos aparentemente bem informados conseguem se deixar mistificar pela propaganda de um regime incapaz de assegurar a essas mesmas crianças um futuro decente, em termos de conforto material, emprego e, sobretudo, liberdade política para se expressar normalmente pela internet, como mesmo crianças de favelas brasileiras conseguem fazer em centros comunitários que existem, justamente, para conectá-las ao mundo. Atribuo esse tipo de equívoco à ‘inconsciência revolucionária’.
O Brasil é certamente um país com muitos indigentes, alguns até com problemas de desnutrição ou de moradias precárias, falta de cuidados médicos e, sobretudo, de educação e de capacitação técnica ou profissional para o mercado de trabalho, daí a baixa produtividade, os precaríssimos rendimentos e a insuficiência geral no consumo e portanto, a baixa qualidade de vida, segundo os índices do PNUD. Não são esses indigentes, contudo, os principais candidatos à emigração econômica, característica associada à paisagem social brasileira nas últimas duas ou três décadas, aliás coincidentes com as crises econômicas, o baixo crescimento, a falta de oportunidades de emprego decente e o desalento geral com a violência, a extorsão estatal e outros traços menos agradáveis de nossa situação presente. Geralmente são pessoas próximas dos estratos intermediários inferiores, ou até da classe média, que escolhem sair do Brasil, por acaso os mesmos tipos de candidatos a partir de Cuba, com uma diferença fundamental, porém: nenhum deles é boat-people, pela simples razão de que ninguém é impedido de sair do país. No caso de Cuba, é desnecessário precisar, os mesmos candidatos frustrados se sentem como que obrigados a deixar a ilha, pelo simples fato de que não vislumbram nenhuma possibilidade de mudança em sua situação econômica no futuro previsível. Poucos, ou praticamente nenhum, dos boat-people são verdadeiramente dissidentes ou opositores do regime: na quase totalidade dos casos, se trata apenas de pessoas desejosas de escapar das misérias cotidianas da ilha, aspirando viver normalmente num país normal, não numa ilha que vive, ou sobrevive, à base de cartões de racionamento.
3. Os mitos entretidos pelo regime e por seus admiradores
Todo e qualquer Estado normalmente constituído na história humana, ou seja, uma organização política capaz de garantir o funcionamento regular de instituições de comando e um sistema econômico capaz de se auto-sustentar — independentemente de suas características mais estatais ou mais privadas, de mercado, portanto — deveria, minimamente, poder assegurar algumas condições básicas para sua manutenção, preservação e continuidade. Aqueles que não conseguem, costumam desaparecer nas dobras da história, como demonstrou em relação a alguns casos exemplares o cientista americano Jared Diamond em seu livro Colapso. Esse Estado deveria, em princípio:
1) funcionar em bases políticas razoavelmente legítimas, suscitando o consenso em torno dos mecanismos de dominação, ou despertando muito pouca oposição ou dissidência em relação ao comando do Estado; quando houver dissensão, ela deveria poder ser canalizada por meios políticos não violentos, justamente;
2) garantir requisitos mínimos de satisfação material à população, sem o que aquela legitimidade logo se esvai, sobretudo se os cidadãos (ou súditos) se sentem espoliados em seus direitos elementares à segurança alimentar, patrimonial ou até pessoal; essa satisfação requer, portanto, um funcionamento razoável dos sistemas de produção e de distribuição, com alguma possibilidade de acumulação privada ou familiar, geralmente no que se refere à habitação, mas também a outros bens físicos;
3) assegurar um mínimo de direitos quanto à segurança pessoal dos cidadãos (ou súditos), na sua disposição de residência, livre escolha de uma ocupação, de culto ou de expressão pública de suas preferências políticas e culturais, sem o que o país em questão poderia viver em estado de tensão social permanente;
4) alguma legitimidade ou reconhecimento no plano externo, de maneira a se ter um relacionamento normal no plano internacional, sem ameaças externas ou conflitos destrutivos; ainda que o ambiente externo possa ser uma variável independente — e o fenômeno do imperialismo e do colonialismo independem da configuração política e econômica que possa adotar um Estado independente qualquer — um Estado normal deve ser capaz de assegurar um mínimo de tranqüilidade para os seus cidadãos (ou súditos), sem aquela sensação de estarem sendo constantemente ameaçados por algum poder externo.
Pois bem, com base nesses critérios aparentemente anódinos e perfeitamente burocráticos no plano da análise sociológica, podemos analisar os mitos da Revolução Cubana, por meio de elementos o mais possível objetivos, para verificar, justamente, as falácias que têm sido apregoadas em torno desse fenômeno. São muitas as falácias que vem sendo apregoadas em torno da “Revolução” Cubana, mas algumas têm mais consistência do que outras.
Vejamos, por exemplo, o que se lê em recente matéria em homenagem aos 50 anos dessa “revolução” no site do único movimento político brasileiro que, aparentemente, ainda defende resolutamente o que é chamado de conquistas da “Revolução” Cubana, o Partido Socialismo e Liberdade:
Os companheiros desse partido “não podem duvidar em afirmar que a revolução cubana foi o acontecimento mais importante acontecido em nossa ‘Pátria Grande’ latino-americana. Talvez possamos divergir sobre apreciações de seu regime político, da política internacional seguida pelo Fidel em certos períodos. Mas o concreto é que foi um movimento tão poderoso e tão genuíno para que hoje Cuba seja o único país do chamado “socialismo real” que existe e do qual não só podemos reivindicar sua história como também seu presente; Cuba mantém suas conquistas sociais e seu orgulho de ser independente do imperialismo a menos de cem milhas de suas costas.” (4.01.2009;http://www.socialismo.org.br/portal/socialismo/197-artigo/709-cuba-festeja-meio-seculo-de-revolucao)
O que se reivindica, portanto, são três coisas: (a) ser o único país do “socialismo real”; (b) conquistas sociais; (c) independência do imperialismo. A bem da verdade, esses três elementos resumem, efetivamente, o que se apregoa como positivo em torno da “Revolução” Cubana e são eles que devem motivar uma reflexão sobre se esses mitos são justificados. Não devo esconder desde já meu argumento de que esses três mitos constituem, justamente, as três grande falácias em torno da “Revolução” Cubana. Vejamos cada um deles sistematicamente.
4. O mito do socialismo
Não é verdade que Cuba seja o único representante do chamado “socialismo real”: o comentarista do PSol esquece a República Popular Democrática da Coréia e... vejamos, talvez o Vietnã, ou, quem sabe ainda, a China? Não é seguro que estes dois últimos sejam ainda socialistas, estilo “real”, mesmo que suas equipes dirigentes possam fazer apelo ao conceito para definir seus regimes políticos e seus sistemas sociais. Em todo caso, sobra a RPDC, ou Coréia do Norte, na companhia de Cuba, a defender, contra ventos e marés, o sistema que perdura em ambos os países desde mais de meio século. O que isto significa no plano das falácias acadêmicas?
O conceito original de ‘socialismo científico, segundo os demiurgos originais, seria o de um regime baseado na apropriação coletiva — não necessariamente estatal — dos meios de produção e na organização social da produção e da distribuição segundo a fórmula clássica enunciada na Crítica ao Programa de Gotha: “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”. Independentemente do fato de que essa frase de efeito não quer dizer rigorosamente nada, a verdade é que, tanto para Marx, como para Engels, o Estado deveria simplesmente desaparecer assim que os trabalhadores conseguissem colocar em marcha o programa da revolução socialista — basicamente os dez pontos do Manifesto de 1848 — com a sociedade de produtores organizados funcionando em ‘piloto automático’ e o Estado se encaminhando gentilmente para o museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e da roca de fiar (segundo Engels, em A Origem da Família, da Propriedade..., etc.).
Não é preciso dizer que, já a partir de Lênin, não foi exatamente isso que aconteceu, mas o seu contrário, com o Estado mais fortalecido do que nunca, e os trabalhadores organizados em batalhões de produtores compulsórios, mais próximos do regime fordista — ou taylorista — do que daquela imagem romântica dos Cadernos Econômico-Filosóficos, segundo a qual o homem socialista seria um trabalhador pela manhã, um pescador de tarde e um filósofo pela noite. O fato é que o Estado leninista serviu de padrão para a dominação mussoliniana na Itália, logo em seguida, e mais adiante para o regime de partido único e de Estado totalitário da experiência hitlerista.
Qualquer que seja a opinião de acadêmicos anticapitalistas sobre as excelências dos regimes socialistas — a igualdade social, a segurança do trabalho e da moradia, o ‘futuro brilhante’ de realizações materiais do ‘socialismo real’ — a realidade legada por esse tipo de regime e de sistema de engenharia social é uma só, quase uniforme em sua materialização concreta nos diversos continentes em que ele existiu (ou onde ele ainda sobrevive, como nos casos cubano e norte-coreano): ditadura política, polícias secretas, delação de vizinhos, crimes políticos no caso da simples expressão de um pensamento dissidente, controle estrito das populações, misérias econômicas, catástrofes ecológicas, quando não Gulag ou extermínio dos ‘inimigos do povo’. Sequer preciso mencionar aqui a fome organizada por Stálin no caso da coletivização forçada da agricultura no início dos anos 1930 — que não apenas resultou na eliminação física de milhares de kulaks, mas sobretudo na privação absoluta de populações inteiras, sobretudo na Ucrânia — ou no ‘grande salto para trás’, organizado pelo presidente Mao, entre 1959 e 1962, que pode ter resultado na morte de algumas dezenas de milhões de camponeses, com cenas de canibalismo jamais vistas desde tempos míticos...
Gostaria de frisar, em direção dos acadêmicos true believers nas ‘reais’ possibilidades do socialismo, e que poderiam desconsiderar algumas das asserções acima, como sendo apenas ‘acidentes circunstanciais’ numa trajetória feita de boas intenções potenciais desse sistema, que, mesmo retirando os ‘acidentes’ (com alguns milhões de mortos, é bom lembrar), as demais características não dependem da opinião ou posição política do observador: são fatos materiais indiscutíveis e associados genericamente à história do socialismo no século XX e, ainda hoje, ao socialismo cubano em particular: ditadura política, monopólio do partido, regime policial, repressão aos dissidentes, encerramento de toda uma população numa ilha-prisão. O acadêmico que for capaz, ainda assim, de defender esse regime, certamente não merece esse título, podendo apenas ser classificado como sustentáculo voluntário de uma ditadura, o que é propriamente indigno de quem se pretenda acadêmico.
Em uma palavra, o socialismo do século XX representou apenas e simplesmente isto: totalitarismo, uma herança certamente pesada para que seus supostos herdeiros ainda possam reivindicar, hoje, qualquer tipo de filiação intelectual. Que acadêmicos ou militantes brasileiros ainda defendam o socialismo como idéia, e a ‘revolução’ cubana em especial, apenas constitui um testemunho eloqüente sobre mais uma ‘inconsciência revolucionária’, que também poderia ser traduzida por duas singelas expressões: suprema ingenuidade política ou brutal ignorância informativa, em ambos os casos exemplos de estupidez acadêmica. Que alguns desses personagens tenham ódio à democracia parlamentar — que eles equiparam a uma ‘ditadura da burguesia’ — e à economia de mercado — para eles indistintamente capitalista, sem sequer saber que estão transformando deste sistema produtivo, ainda bastante limitado na história econômica mundial, em um superlativo conceitual — apenas confirma como preconceitos políticos podem obstar uma apreensão historicamente adequada das realidades políticas do século XX. Ou seja, além de estupidez acadêmica, cegueira intelectual.
Se o socialismo, enquanto conceito e enquanto realidade social, não é uma falácia completa, seus defensores deveriam ser capazes de provar que ele pode funcionar, de fato, segundo os quatro requisitos formais de um Estado normal, tal como enunciados acima, quais sejam: legitimidade política interna, funcionalidade produtiva ou material, liberdades elementares e relacionamento externo com base numa garantia de reconhecimento da representatividade do Estado em face de sua população (o que implica na admissibilidade, por exemplo, de livre acesso de órgãos multilaterais em setores específicos: livre organização de trabalhadores, segundo as convenções da OIT; respeito aos direitos humanos, segundo tratados internacionais monitorados pelo Conselho de Direitos Humanos; transparência dos procedimentos legais e judiciais, como estabelecido na Carta da ONU; liberdades fundamentais, como acordado na Declaração Universal de 1948, etc.). Trata-se, obviamente, de um teste muito simples, que qualquer acadêmico minimamente bem informado seria capaz de atender, sem alimentar qualquer falácia conceitual ou prática.
5. O mito das conquistas sociais
Mesmo reconhecendo alguns ‘problemas políticos’ — geralmente justificados pelo ‘assédio imperialista’ — os acadêmicos simpáticos a Cuba costumam argumentar com a excelência dos serviços cubanos de saúde e com a alta qualidade de sua educação, constituindo esses dois elementos as grandes justificativas em face das demais ‘deficiências’ do regime, uma espécie de compensação social pela falta de liberdades políticas e por todas as misérias da vida econômica. Estas ‘bondades da Revolução’ estão sempre na primeira linha da defesa das conquistas do socialismo cubano, constituindo, no entanto, mais um dos grandes mitos que cercam a ilha. Elas estão identificadas com as supostas conquistas sociais da ‘revolução’, como se a ilha, antes de Fidel Castro, fosse um inferno de misérias humanas e um deserto de avanços sociais. Um pouco de objetividade factual pode ajudar a avaliar essa questão.
Em 1958, Cuba ostentava bons indicadores sociais em diversos quesitos, situando-se, geralmente, nos três primeiros lugares do ranking latino-americano, junto com a Argentina e o Uruguai. Obviamente, muitos indicadores, baseados em médias nacionais, não refletiam exatamente a distribuição de serviços públicos pelo conjunto da população cubana, mas se os dados nacionais refletem uma metodologia uniforme para todos os países da amostra, eles devem poder significar realidades objetivas quanto aos serviços disponíveis. De modo geral, Cuba se situava entre as sociedades mais avançadas da América Latina, com um perfil social bem mais próximo da Europa mediterrânea do que dos demais países latino-americanos.
De um conjunto de 122 países analisados, Cuba ocupava, em 1958, o 22º. lugar em matéria sanitária, com 128,6 médicos e dentistas por 100.000 habitantes, à frente de países como França, Reino Unido e Bélgica. Sua taxa de mortalidade já era uma das mais reduzidas do mundo (5,8 anuais por 1.000 habitantes; Estados Unidos 9,5) e o nível de alfabetização da ilha era de 80%, semelhante ao do Chile e da Costa Rica e superior ao de Portugal na mesma época. Ou seja, resulta equivocado pensar que Cuba fosse uma ilha habitada por miseráveis antes da revolução. O regime socialista cubano invoca a baixa mortalidade infantil para destacar a excelência dos cuidados de saúde disponíveis para a população, mas o fato é que esse indicador já apresentava uma taxa muito baixa desde os anos 1950: em 1958, o índice cubano registrava 40 mortes infantis por cada mil nascidos vivos, uma taxa melhor do que os índices da França (41,9), do Japão (48,9) e da Itália (52,8). Não obstante essa boa situação de partida, Cuba foi ficando para trás, pois que, em 2007, o indicador cubano registrava 5,3 óbitos, contra 4,2 para a França, 3,2 para o Japão e 5,0 para a Itália.
Mesmo a situação relativamente favorável de Cuba, no confronto com outros países latino-americanos, deve ser considerada em termos de dotação de recursos para gastos de saúde: durante muito tempo, o regime cubano foi de fato subvencionado pela União Soviética, de uma forma como nenhum outro pais latino-americano foi ajudado pelo império americano. Essas subvenções, embutidas nos pagamentos pelo açúcar acima dos preços dos mercados mundiais e no financiamento direto das aventuras militares cubanas em outros continentes, sustentaram os investimentos cubanos na área social durante muito tempo. Uma vez interrompidas as transferências diretas e indiretas, a situação cubana começou a se deteriorar seriamente.
O sistema educacional cubano é, de fato, abrangente no mais alto grau, ainda que a suposta excelência não se traduza em uma pujante produção científica ou na transferência desse saber para o sistema produtivo, no qual patentes são quase desconhecidas. Pena também que, com o analfabetismo virtualmente inexistente, os cubanos não disponham para sua leitura diária que de jornais controlados pelo Partido Comunista e que seu acesso à internet só é comparável com a situação na Síria e na Birmânia. Apenas alguns poucos países exóticos mantêm, hoje, uma repressão à liberdade de informação tão ampla — com perdão pelo paradoxo involuntário — quanto a existente em Cuba. Uma população tão educada mereceria mais, certamente.
Outra das alegações freqüentes do regime se refere à suposta igualdade dos cubanos quanto à distribuição de renda. Não existem dados oficiais a esse respeito, mas estimativas de especialistas indicam que essa distribuição se deteriorou muito desde a crise do socialismo, sendo que o coeficiente de Gini passou de um índice 0,22 em 1986 para 0,407 em 1999. Em especial, no tocante à distribuição entre as classes de renda, a situação cubana conheceu uma evolução bem mais negativa do que o resto da América Latina: a razão entre o quintil mais rico e o quintil mais pobre de renda cresceu de 3,8 a 13,5 na ilha, entre 1989 e 1999, ao passo que, nesse mesmo período, a razão entre o quintil mais rico e o quintil mais pobre cresceu de 11,90 a 19,91 para a região como um todo: ou seja, em Cuba o aumento foi 3,85 vezes, enquanto o aumento na América Latina foi de apenas 1,67 vezes.
Se formos examinar a disponibilidade de habitações, a deterioração também foi sensível, com uma diminuição do número de moradias em função da baixa taxa de natalidade e da emigração. No plano mais geral do crescimento econômico a longo prazo, a trajetória cubana é também reveladora da incapacidade do sistema em produzir bem-estar. Como revelado na tabela abaixo, a posição relativa de renda por habitante de sete países selecionados, colocava Cuba em terceiro lugar em 1957, à frente da Espanha e de Portugal, tendo a ilha caído para o último lugar em 2007.
Na verdade, o sistema socialista cubano é incapaz de alimentar o seu próprio povo atualmente, tendo a ilha de importar volumes significativos de alimentos, inclusive dos EUA, um dos principais parceiros comerciais. Incapaz de produzir bens exportáveis, Cuba tem uma balança comercial altamente deficitária, o que se reflete na dívida externa cubana e nas insolvências bilaterais com vários países europeus, com o México, com o Chile, com o Brasil e com o Japão. No total, a dívida externa cubana deve superar 38 bilhões de dólares, o que equivale a 3.410 dólares por habitante, três vezes a média latino-americana, de 1.173 dólares por habitante.
Um estudo recente sobre a situação do abastecimento alimentar em Cuba revelou dados assustadores: “Ao menos 13% da população é clinicamente subnutrida, na medida em que o estado do racionamento alimentar provê, agora, apenas entre uma semana e dez dias das necessidades alimentares básicas” (Antonio E. Morales-Pita, “Possible Scenarios in the Cuban Transition to a Market Economy”, Proceedingsda Association for the Study of the Cuban Economy: Cuba in Transition 2007, p. 330). Um outro estudo confirma que “A economia cubana tem sobrevivido em larga medida graças aos investimentos, comércio, créditos e ajuda da Venezuela e, em menor medida, da China, assim como de investimento estrangeiro em setores estratégicos, como petróleo e gás, níquel e turismo, o que permitiu a Fidel lançar um processo de recentralização da tomada de decisão em 2003-2006, que reverteu a maior parte dos progressos feitos pelas modestas reformas orientadas para o mercado implementadas em 1993-1996, operando uma rígida transição de poder para Raúl” (Carmela Mesa-Lago, “The Cuban Economy in 2006-2007”, ASCE: Cuba in Transition 2007, p. 15).
Esse mesmo estudo citado imediatamente acima traz estatísticas arrasadoras sobre o declínio da produção cubana entre 1989 e 2006, em quase todos os setores da economia, sobretudo alimentares, como revelado na tabela abaixo.
De fato, a situação econômica é deveras preocupante, daí as tentativas do novo governo pós-Fidel de introduzir algumas reformas pró-mercado para paliar essas dificuldades, como já tinha ocorrido com diversos outros países socialistas no período anterior à implosão final. Não é preciso alinhar muitos dados sobre essa deterioração constante, bastando mencionar o aumento da prostituição, do mercado negro e das transações ilegais, bastante visíveis para qualquer turista que tenha visitado a ilha nos últimos anos. Por uma dessas ironias da história, uma das principais alegações para o exacerbado nacionalismo e anti-americanismo cubano do período imediatamente posterior à revolução foi, justamente, a eliminação da designação infame da ilha como sendo o ‘bordel do imperialismo’. Aparentemente, os velhos tempos estão de volta...
6. O mito do imperialismo como ameaça
Finalmente, a escusa principal do regime para tentar explicar as dificuldades da vida econômica em Cuba sempre foi, historicamente, o ‘embargo americano’, aparentemente responsável por todos os problemas da ilha. Trata-se, provavelmente, do maior mito entretido pelo regime durante o último meio século, posto que esse embargo é amplamente contornado pelo comércio de Cuba com todos os demais países do mundo, sendo as únicas exceções as empresas americanas instaladas nesses países. Na verdade, como explicitado acima, os EUA converteram-se atualmente no principal fornecedor de alimentos para Cuba, sendo que muitos outros produtos americanos ingressam na ilha por terceiros países. A alegação é falsa, portanto.
Pode-se mencionar, também, as remessas dos cubanos emigrados a seus familiares na ilha, um aporte tão ou mais substancial do que aquele representado pelas transferências de trabalhadores mexicanos nos EUA para seu país natal. Cabe registrar que são essas divisas, ademais das gorjetas que médicos ou engenheiros ganham como taxistas clandestinos ou guias turísticos, que permitem paliar, um pouco, a situação de penúria absoluta da maior parte das famílias, aliás incontornável para todos aqueles que não dispõem de uma fonte de renda em moedas fortes.
De fato, o imperialismo tentou derrubar o regime cubano em 1961, numa desastrada operação da CIA que tinha sido montada ainda antes da administração Kennedy, assim como a CIA tentou assassinar Fidel Castro várias vezes, sem sucesso nenhum, em vista da excepcional qualidade da inteligência cubana, muito bem treinada por soviéticos e alemães orientais. Mas, as tentativas para minar o regime terminaram logo depois da crise dos mísseis de 1962, assim como o Congresso americano impôs um veto, desde os anos 1970, aos atentados contra a vida do líder cubano. O que restou, de tudo isso, foi o estúpido embargo americano, mais determinado pelo Congresso do que pelo Executivo, em função das expropriações de propriedades americanas não indenizadas no período de radicalização da revolução. Se o embargo tivesse sido suspenso — o que é difícil em vista do lobby cubano da Flórida — o regime não teria praticamente nenhuma desculpa para os níveis baixíssimos de padrão de vida para a maioria da população cubana.
Para ser mais preciso, é verdade que o governo socialista cubano abandonou o FMI e o Banco Mundial, consideradas entidades subordinadas a Washington, mas Cuba nunca deixou de fazer parte do GATT — atualmente da OMC — e pode, assim, transacionar com todos os demais membros do sistema multilateral de comércio. Portanto, ainda que exista animosidade do governo americano em relação ao regime socialista, na prática a ilha está absolutamente livre para intercambiar produtos com a quase totalidade do planeta, não o fazendo apenas por falta de competitividade de sua economia e da ausência de oferta exportável, inclusive de produtos tradicionais. O imperialismo, como diriam os maoístas, é um tigre de papel, hoje sobretudo interessado na normalização de relações, com o afastamento dos falcões do ex-governo Bush. Cuba já é membro da Aladi e foi admitida no Grupo do Rio, inclusive com o ativo apoio do Brasil, relacionando-se normalmente com todos os países do hemisfério, à exceção, ridiculamente, do império.
7. À guisa de conclusão: um manifesto a favor do povo cubano
Para não dizer que todos os acadêmicos ou intelectuais alimentam falácias sobre Cuba e sua situação econômica e política, permito-me transcrever aqui um manifesto de apoio ao povo cubano escrito por intelectuais argentinos. Assim diz o texto, no original, com cortes mínimos por conter informações desnecessárias:
“Ante la situación política de Cuba, un grupo de intelectuales argentinos dio a conocer una declaración, en la que expresa su apoyo moral al pueblo de ese país en su lucha para restablecer el imperio de la libertad y la justicia en la tierra de Martí. La declaración dice así:
“Los escritores y artistas argentinos que subscriben (...) expresan su solidaridad con quienes, en otros pueblos de América, luchan por la liberación de sus respectivos países, sometidos a regímenes de fuerza. Desean manifestar especialmente su apoyo moral al pueblo cubano, que, tremendamente agraviado y despojado de las garantías elementales de la civilización política, sufre persecución, vejamen y tortura, y lucha con admirable decisión y valentía para abatir la dictadura y restablecer, en la tierra de Martí, el imperio de la libertad y la justicia, cimentados en la soberanía del pueblo y la vigencia del derecho.”
Firmaram esse documento dezenas de nomes de intelectuais conhecidos na história artística e literária argentina, entre eles Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges. Pois bem, como ambos escritores, como se sabe, já não estão mais entre nós desde algum tempo, cabe fazer um esclarecimento a respeito e agregar um comentário pessoal sobre esse tipo de exercício, se eventualmente conduzido atualmente.
O texto, na verdade, não é atual, tendo sido publicado no diário El Mundo, de Buenos Aires, em 2 de março de 1958, e se referia, portanto, à luta dos democratas e revolucionários cubanos contra a ditadura de Fulgencio Batista, justamente. Os argentinos, então, saíam de uma outra ditadura, ainda que alguns a classificassem simplesmente de regime populista: o governo peronista, que tinha durando dez anos, desde o imediato pós-segunda guerra. Os intelectuais argentinos se orgulhavam, assim, de ter deixado para trás um triste período de sua história e se dispunham a ajudar outros povos da América Latina que também lutavam contra a ditadura em seus respectivos países, antecipando um pouco o que seria a chamada “doutrina Betancourt”, formulada depois de superada uma outra ditadura na Venezuela nesse mesmo ano de 1958 (e que levou inclusive o governo venezuelano a suspender relações diplomáticas com o Brasil, quando instalada aqui a ditadura militar de 1964).
Se me permito, agora, fazer um comentário atual, na verdade uma triste constatação, seria esta. Não creio que, atualmente, intelectuais brasileiros ou argentinos, ou de qualquer outro país latino-americano, se dispusessem a assinar um manifesto do mesmo teor — que poderia ter, inclusive, exatamente o mesmo texto — em favor do povo cubano, em luta pelo restabelecimento da democracia e do império da liberdade, da justiça e do direito naquela ilha, desde cinqüenta anos dominada por um regime que prometeu acabar com uma ditadura opressiva.
Pode ser patético fazer tal tipo de constatação “regressiva”, mas ela nos revela o quanto recuaram os intelectuais latino-americanos na defesa da democracia e da liberdade em nossos países. Em nome de não se sabe qual ‘soberania popular’ e de não se sabe qual ameaça de ‘dominação imperialista’, intelectuais dos países latino-americanos se mostram muito mais dispostos, na verdade, a assinar, de forma totalmente servil e incompreensível, manifestos em favor da continuidade da ditadura na ilha caribenha. Se pretendesse citar nomes, eu poderia alinhar alguns acadêmicos brasileiros que cometeram a indignidade de apoiar o regime cubano quando este condenou à morte alguns balseros (boat-people) que tentavam fugir da ilha, em 2003. Triste constatação, sem dúvida, que talvez merecesse adjetivos mais fortes.
Esta última constatação não constitui, obviamente, uma falácia acadêmica, no sentido aqui analisado. Trata-se, mais propriamente, de uma renúncia à inteligência e à dignidade intelectual, e de um abandono de valores normalmente exibidos por membros da academia, como os dos direitos humanos, do princípio democrático, da liberdade de opinião e de expressão e, sobretudo, da liberdade de ir e vir, valores pelos quais muitos desses acadêmicos se bateram durante a ditadura militar brasileira. O fato de não termos, em direção do povo cubano, a mesma defesa enfática de princípios e objetivos que animaram, no passado, a comunidade acadêmica brasileira, só pode revelar uma deterioração tremenda de seu senso moral ou mesmo da simples coerência com valores filosóficos que deveriam ser universais. Mas, parece que não...
Nota 1: Retirei o texto transcrito em espanhol, acima, do seguinte capítulo neste livro: “Expresan su adhesión al pueblo de Cuba intelectuales argentinos”. In: Jorge Luis Borges, Textos Recobrados (1956-1986). Buenos Aires, Emecé Editores, 2007, p. 323-324.
Nota 2: Os dados econômicos referidos neste ensaio foram retirados dos ‘proceedings’ de 2007, da Association for the Study of the Cuban Economy, com o apoio da Universidade do Texas, em Austin, neste link: http://lanic.utexas.edu/project/asce/publications/proceedings/index.html; adicionalmente, recorreu-se à publicação “Carta de Cuba, la escritura de la libertad”, sob a responsabilidade de um conjunto de autores e disponível no link: http://www.elcato.org/node/3948; acesso em fevereiro de 2009.

O mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países pobres - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)

O mito do complô dos países ricos contra o desenvolvimento dos países pobres

1. A busca de culpados (sempre deve existir algum...)
Dentre todos os mitos já explorados e a serem examinados nesta avaliação serial dos equívocos mais renitentes no meio acadêmico, nenhum parece tão poderoso quanto o que pretende que os países ricos, que teriam outrora alcançado o seu desenvolvimento graças a uma série de políticas por eles hoje recusadas aos países emergentes, estariam agora ativamente empenhados em impedir que esses países, eufemisticamente ditos em desenvolvimento, possam galgar, igualmente, a escada da prosperidade econômica e os degraus da capacitação industrial e tecnológica, tornando-se, como eles, desenvolvidos.
Continuemos, pois, o exame dos equívocos selecionados nesta série[1] pela análise crítica de um dos exemplos mais notórios da "teoria conspiratória da história", a tese do complô dos ricos contra os pobres, a presumida ação mancomunada dos desenvolvidos contra o crescimento e o progresso material dos países pobres ou menos desenvolvidos. O conjunto de "teses" defendidas pelos partidários do que classifico desde já como mais uma falácia, não deixa de apoiar-se em exemplos históricos que estariam aparentemente em linha com os argumentos dos defensores dessa teoria conspiratória, em especial no que se refere às políticas setoriais (industrial e comercial, em especial) e à suposta ação clarividente do Estado "empreendedor".
2. Friedrich List: versão século XXI
O mais conhecido defensor contemporâneo dessa teoria é o economista coreano, atualmente na Cambridge University, Ha-Joon Chang, que se utiliza da famosa imagem forjada pelo seu predecessor alemão de 150 anos atrás, Friedrich List, para afirmar que os países ricos estão querendo "chutar a escada" que os levou a ser o que hoje são. Este é, aliás, o título de um de seus livros mais famosos.[2]
Sua obra mais recente, Bad Samarithans, também publicada no Brasil, segue na mesma linha.[3]Promovida pela Ordem dos Economistas do Brasil, a obra constituiu o centro de atração de um seminário realizado em São Paulo, em janeiro de 2009, sob a responsabilidade da Ordem e da Fundação Getúlio Vargas, em torno de um programa de estudos focado na revisão do pensamento econômico sobre o desenvolvimento.
Seguindo as idéias de Chang, o coordenador da Escola de Economia da FGV-SP, Paulo Gala, acredita que "as experiências de maior sucesso observadas nos anos recentes, Coréia do Sul e Taiwan, nos anos 70 e 80, e China e Índia nos 90, basearam-se justamente em políticas contrárias às recomendações de Washington".[4] Como já tratamos do problema do Consenso de Washington em ensaio anterior desta série,[5] não iremos nos debruçar novamente sobre mais esse mito do pensamento acadêmico. Mas caberia registrar os "seis mitos neoliberais" que este professor brasileiro considera que vêm sendo propostos pelas instituições símbolo da globalização capitalista e que, em sua opinião, se revelaram incapazes de produzir os resultados prometidos.
Os "seis mitos neoliberais", vários deles fictícios, seriam os seguintes: "1) os países ricos atualmente alcançaram seu sucesso através de políticas comprometidas com o livre mercado; 2) o neoliberalismo funciona; 3) uma globalização neoliberal não pode e não deve ser interrompida; 4) o modelo americano de capitalismo neoliberal representa o ideal, o qual todos os países em desenvolvimento devem replicar; 5) o modelo do Leste Asiático é idiossincrático, o modelo americano é universal; 6) países em desenvolvimento precisam de disciplina fornecida pelas instituições internacionais e por instituições politicamente independentes (Banco Central, por exemplo)".[6] Não vou agora rebater argumentos que são mistificadores, em sua maior parte, inclusive porque o autor em nenhum momento traz qualquer comprovação de que esse tipo de proposição simplista venha sendo defendido pelas organizações "neoliberais" (eu apenas recomendaria que ele lesse mais história do mundo, estudasse um pouco mais de economia e observasse a realidade, simplesmente). Para preservar o foco, vamos tratar aqui apenas dos argumentos centrados sobre a "teoria do complô", que constitui todo um capítulo na história das falácias acadêmicas.
3. Uma história secreta do capitalismo?
O subtítulo do mais recente livro de Ha-Joon Chang já constitui, por si só, uma prova eloqüente em favor de uma tese, aliás, uma verdadeira teoria, muito disseminada em certos meios acadêmicos. Colocada de maneira simplista, mas nem por isso menos correta, essa tese diz mais ou menos o seguinte: os países ricos — durante os momentos iniciais de sua decolagem econômica, e na fase de consolidação do desenvolvimento social — puderam exercer toda a latitude de políticas econômicas: desde as mais liberais — quando podiam, ou precisavam — até as mais protecionistas e subvencionistas — estas últimas, de maneira mais intensa ou freqüente, e sem que alguma entidade "ortodoxa", do tipo do FMI ou o Banco Mundial, viesse lhes dizer o que deveriam ou poderiam adotar como políticas macroeconômicas e setoriais — até que puderam garantir para si um processo de crescimento sustentado, marcado pela autonomia tecnológica e a plena soberania sobre suas principais políticas públicas.
Uma vez alcançado o estágio em que se encontram, ou seja, de países líderes nas classificações de prosperidade econômica e do avanço tecnológico, eles se empenham todos — como se tivessem combinado tudo em algum local secreto de planejamento de maldades capitalistas — em impedir que países retardatários e os subdesenvolvidos, de maneira geral, os imitem, copiem o que fizerem, enfim, que os alcancem, do alto de seu progresso econômico e capacitação tecnológica. Numa reedição prolongada da falácia original de List e, de maneira tão perversa quanto calculada, os países ricos "chutam a escada" que permitiria aos atrasados chegar onde eles chegaram; constroem, assim, um fosso intransponível entre eles, um grupo pequeno de egoístas desenvolvidos, e todo o resto do mundo, um imenso conjunto de eternos condenados ao atraso e à pobreza (e, no mesmo movimento, levados a transferir renda para os de "cima", como agravante).
Trata-se de uma caricatura, claro, mas apenas em parte. Vejamos a síntese que faz seu principal defensor, e prefaciador, no Brasil, Luiz Carlos Bresser Pereira, desse tipo de teoria propagada com maior competência por Chang: "Em Maus Samaritanos, Ha-Joon Chang faz uma crítica devastadora da teoria econômica ortodoxa ou neoclássica ao mostrar que suas propostas de política econômica são para uso externo, não sendo utilizadas pelos países ricos que as propagam" (p. xiii). Não contente em aderir à teoria conspiratória da história, Bresser Pereira agrava o seu caso, insistindo na tese do complô dos ricos contra os pobres seguidores infelizes do terceiro mundo. Vejamos o que ele diz, numa reconstituição histórica do processo de desenvolvimento econômico em escala mundial: "Desde a Revolução Industrial a teoria econômica tem sido um instrumento para justificar internamente o capitalismo e para evitar que os demais países que ficaram atrasados no seu processo de industrialização também cresçam e lhes façam concorrência" (p. xiii). Trata-se, sem dúvida alguma, de uma grave acusação a todos os teóricos da economia ortodoxa ou neoclássica, que poderiam invocar, se fosse o caso, o sentido moral de sua atividade, posto que transformados em simples feitores de uma espécie de "colonização mental" conduzida a partir de seus centros de estudo. Seria risível, se não fosse eticamente questionável.
O professor da FGV-SP parece apreciar piadas históricas, já que Bresser Pereira tem prazer em reincidir na teoria: "A onda ideológica neoliberal que tem início nos anos 1970 tem como uma de suas motivações essa neutralização [dos concorrentes dos países em desenvolvimento], como objetivo nunca confessado, e jamais plenamente consciente" (p. xiv). Todos os elementos da teoria conspiratória estão presentes, posto que, segundo Bresser, Chang não hesita em "criticar os ‘maus samaritanos’ — os agentes dos países ricos e do neoliberalismo que aconselham mal os países em desenvolvimento, que afirmam estarem ajudando-os quando, de fato, estão criando obstáculos ao seu desenvolvimento" (p. xv). Esses agentes seriam uma combinação de professores adeptos da teoria neoclássica, os funcionários e consultores das organizações internacionais mais importantes na área econômica (FMI, BIRD, OMC) e os representantes dos países ricos que conduzem programas de ajuda e de cooperação técnica para os países pobres.
Mas não vale a pena continuar a falar da tese principal por meio de intérpretes de segunda mão; melhor ir direto ao original. Dois equívocos parecem estar em causa na construção desse tipo de mito que recebeu a poderosa contribuição de um economista que se lança de maneira ousada (embora leviana) nos caminhos da história: (a) a falácia de que os países ricos se tornaram o que eles são atualmente em virtude de um conjunto racional de políticas direcionadas a tal objetivo, aplicadas de forma sistemática e consciente, a despeito de contrariarem o pensamento econômico liberal de sua época; (b) e outra falácia, já pertencente à "teoria conspiratória da história", é a de que esses países têm-se empenhado, desde então, em impedir que os pobres os alcancem, armando ardilosamente um complô para obstar a que os atrasados cheguem ao topo da escada.
Esses dois argumentos se baseiam numa leitura seletiva, incompleta e deformada da história, e são incapazes de se sustentar pela lógica de funcionamento do sistema capitalista (na verdade, da economia de mercado), ou pelo seguimento da experiência concreta de diferentes países engajados desde então no caminho do desenvolvimento, alguns bem sucedidos, outros, infelizmente, não.
4. Políticas estatais como fator de desenvolvimento?
Chang, tanto no seu livro anterior, Chutando a Escada, como neste atual, Maus Samaritanos, conta a mesma história, embora com argumentos ligeiramente diferentes, mas por meio do mesmo uso seletivo dos dados históricos. Na verdade, não é tanto da história que ele pretende falar — inclusive porque não se trata de um historiador econômico, nem, aliás, de um economista historiador — mas da "história" presente, ou o que ele pretende por tal. Essa "história" seria dominada pelas políticas neoliberais e pela imposição das "regras do Consenso de Washington" aos países em desenvolvimento, o que resultaria, assim segue a teoria do complô, em que estes não possam o que antes fizeram os países ricos.
Todos sabem quais são essas políticas e não seria preciso estender-se em demasia em sua descrição: políticas macroeconômicas estáveis e responsáveis, redução do peso do Estado, liberalização comercial e do regime de investimentos estrangeiros, defesa dos contratos e dos direitos de propriedade intelectual, banco central independente, etc. Existe em vários setores críticos — mas que provavelmente nunca leram os textos originais — uma grande confusão entre, de um lado, o que pode ser eventualmente recomendado pelos conselheiros das instituições de Bretton Woods e, de outro lado, as regras originais do economista John Williamson, que detém o copyright — ou pelo menos os
moral rights — sobre o chamado Consenso de Washington. Este "consenso", em sua versão original, não compreendia nem a taxa de câmbio fixa (ele recomendava flexível), nem a liberalização do setor financeiro (ou dos movimentos de capitais, para ficar em algo mais tangível).
Não é o caso de dirimir essa confusão neste momento, tanto porque isto não parece preocupar aqueles que criticam de maneira leviana as "regras" de Washington, em primeiro lugar o próprio Chang. Sua principal missão é a de desmantelar essas regras, posto que elas seriam prejudiciais aos interesses atuais dos países em desenvolvimento. Usando mais suas impressões do que a pesquisa histórica, Chang recomenda o contrário: sua sugestão é a de que os países pobres façam aquilo que ele imagina que os países hoje ricos teriam feito nas etapas iniciais de crescimento e consolidação de seus processos de autonomia tecnológica.
E quais seriam essas políticas? Elas são muito diversas, obviamente, sendo que em alguns casos sequer houver políticas claramente definidas ou implementadas de maneira contínua segundo um plano pré-determinado. Mas Chang, em sua leitura seletiva dos dados históricos, identifica basicamente dois conjuntos de políticas que teriam sido usadas pelos países ricos em sua caminhada racional para o desenvolvimento: políticas industriais, do tipo "indústria infante" — tal como recomendado por List e, antes dele, pelo Secretário americano do Tesouro, Alexander Hamilton —, e comerciais. As principais medidas seriam o apoio direto às indústrias nacionais na fase inicial de instalação, por meio de subsídios, incentivos fiscais, proteção tarifária e outros tipos de defesa comercial e dirigismo setorial. Ele é bastante detalhista na coleta de medidas governamentais, ao longo do século XIX (e mesmo antes), que teriam sido mobilizadas para sustentar a industrialização desses países. O resultado entusiasma os dirigistas de várias épocas e de vários países, sobretudo aqueles que também pretendem criticar o suposto complô dos ricos e dos "washingtonianos".
O fato é que os argumentos de Chang são distorcidos, seus "fatos" são incompletos e falham, lamentavelmente, em estabelecer as relações causais efetivas entre as medidas industrializantes apontadas por ele e o desenvolvimento dos países considerados, processo necessariamente mais complexo do que sua visão simplista da história. Ele não considera uma série imensa de outros fatores institucionais — tal como destacada por historiadores econômicos como Douglass North, por exemplo — e passa completamente por cima dos fatores culturais e educacionais que sustentaram — não apenas a industrialização, mas — a transformação tecnológica abrangente que teve lugar em vários desses países (alguns deles não necessariamente industriais, mas "essencialmente agrícolas", como Dinamarca e Nova Zelândia).
É, por outro lado, igualmente simplificadora sua visão de que foram aquelas medidas estatais que provocaram a industrialização e o crescimento econômico; como se os países ricos tivessem "planejado" racionalmente seu processo de desenvolvimento, por uma série de medidas encadeadas no tempo, e estruturalmente integradas umas às outras, todas elas com o objetivo expresso — e talvez pré-determinado — de provocar essa modernização. Ele certamente não considera a contraditória e muitas vezes improvisada colcha de retalhos que constitui a trama da história real, na qual, indivíduos, grupos de pressão, ideologias e, não menos importante, reações defensivas ou "imitativas", interagem de modo desordenado, ao sabor das relações de forças que se estabelecem na sociedade, para produzir um resultado que está longe de ser aquele desejado por categorias específicas de atores sociais.
A história não é certamente um livro branco, no qual governos supostamente esclarecidos podem ditar ordens e regras para sua implementação racional: ela é, bem mais, um pesado carro de bois que avança lentamente por uma estrada esburacada, com interrupções e deslizes que pouco têm de intencional ou planejado. Mesmo admitindo-se a existência de políticas claras para favorecer este ou aquele resultado antevisto — como costumam ser as medidas de subsídio industrial, de proteção tarifária ou de apoio logístico — é muito difícil ao honesto historiador econômico separar fatores estruturais e contingentes no complexo processo de desenvolvimento dos países atualmente ricos; a começar que eles não estavam desenhando políticas de desenvolvimento e sim respondendo a impulsos que lhes vinham de dentro e de fora, e nem sempre, aliás, pela mão dos governos.
Haveria muito mais a dizer sobre a peculiar leitura da história do professor Chang. Mas a discussão poderia nos levar muito longe, no espaço limitado deste ensaio. Bastaria, talvez, dizer isto: se o protecionismo comercial e as políticas dirigidas em apoio ao setor industrial fossem o sucesso que ele alega, nesse caso, os países da América Latina, que, durante várias décadas, praticaram ambos em doses altamente concentradas, deveriam ser hoje não apenas nações altamente industrializadas, como tecnologicamente desenvolvidas, o que obviamente não é o caso. Por outro lado, em sua própria Coréia natal, Chang deixa de ver todos os fatores institucionais e educacionais que favoreceram o seu desenvolvimento, e se concentra unicamente nas políticas industrializantes e de cunho comercial, que teriam, supostamente, impulsionado o crescimento e a transformação tecnológica. Em conclusão, como economista, Chang pode até ter seu valor de mercado, mas como historiador ele falha miseravelmente em comprovar as suas teses.
5. A arte de chutar escadas: uma fábula fabulosa
O que dizer, então, da outra parte deste mito ridículo, que consiste em afirmar que os países na vanguarda do progresso industrial atuam deliberadamente para impedir outros de os seguirem na "escada" do desenvolvimento? Essa tese é tão ridícula — como compete a uma "boa" teoria conspiratória da história — que nem valeria o esforço de desmenti-la, se não fosse a existência de tantos crédulos nos países retardatários, sempre em busca de um bode expiatório para culpá-lo pela sua industrialização deficiente ou seu desenvolvimento insatisfatório. Mais uma vez Chang falha em trazer as "provas históricas" desse tipo de argumento, e apenas avança as recomendações dos atuais "conselheiros washingtonianos" como a evidência de que os países ricos desejam manter todos os demais no fundo do poço do não-desenvolvimento: para isso, eles "chutam a escada", num sentido metafórico, claro, pois a única coisa que fazem seria recomendar políticas que inviabilizariam a "subida da escada", mantendo os retardatários na eterna dependência dos que estão no topo.
Curioso que esses mesmos "alpinistas industriais" investem nos retardatários, e não apenas para contornar barreiras comerciais e outras restrições ao capital estrangeiro, como sabemos por todos os exemplos dos movimentos de capitais de risco na história econômica mundial. Mais curioso ainda é que todo esse ardor obstrucionista não impediu os Estados Unidos e a Alemanha, no século XIX, e os demais países avançados, na passagem da segunda revolução industrial — grosso modo a partir dos anos 1870 — de galgarem eles também a escada da industrialização e do desenvolvimento econômico. Seria por que a história só começa, de verdade, quando as ex-colônias pretendem se industrializar? Mas tanto o Japão "feudal", como a Coréia "colonial" desmentem a visão conspiratória do bloqueio dos ricos exercido contra os pobres periféricos, como isso também é cabalmente desmentido por outros exemplos atuais em outras regiões.
Certo, Chang e seus seguidores poderiam argumentar que os "asiáticos" — que são os exemplos que ele seguidamente invoca para comprovar a sua "teoria" — justamente não seguiram as recomendações do Consenso de Washington e por isso puderam se desenvolver com base em políticas ativas; aquelas mesmas supostamente utilizadas outrora pelos países ricos e que agora eles não mais recomendam aos retardatários (ao contrário, buscam impedir por todos os meios). A história é, contudo, mais complexa. Assim como Chang não conseguiu estabelecer relações de causalidade entre as suas "políticas ativas" e o progresso industrial e tecnológico nos países hoje ricos, ele tampouco consegue provar de maneira cabal que são essas políticas que estão na origem do desenvolvimento relativo dos países asiáticos.
O fato é que os países de desenvolvimento rápido na Ásia — e também em algumas outras regiões, como no Brasil, tempos atrás — conseguiram "construir" condições institucionais que puderam atender, eventualmente, a alguns dos "requerimentos" — talvez necessários, mas certamente não suficientes — que os colocaram no caminho da autonomia tecnológica e industrial; entre eles fatores de natureza fiscal, tributária, logística e, acima de tudo, de cunho cultural e educacional compatíveis com as "regras" do desenvolvimento. O processo é certamente complexo e reduzi-lo a medidas de política industrial ou comercial, quaisquer que sejam os méritos respectivos dessas últimas, pode tornar impossível o ato de manter-se fiel ao registro histórico e à realidade de determinadas experiências concretas.
De resto, existem tantos exemplos de sucesso quanto de fracasso na história da industrialização contemporânea — como a Europa do Sul ou a América Latina, até um período ainda recente da história econômica mundial — e estes últimos, curiosamente, não são enfatizados por Chang em sua "reconstituição" do desenvolvimento de uns e outros. O trabalho do historiador — a fortiori do "planejador" de desenvolvimento, também — envolve presumivelmente a consideração de todos os casos relevantes, e não apenas os de sucesso. É verdade que aprendemos tanto, ou mais, com os casos de fracasso — e mesmo com desastres espetaculares — pois são eles que podem nos indicar a combinação errada da "receita" do desenvolvimento — se é que ela existe —, quando os fatores de sucesso podem ser múltiplos e difíceis de determinar.
Como, aliás, indica a história da própria humanidade — na qual a maior parte dos povos ainda vegeta em baixos níveis de prosperidade e de bem-estar — o mundo é feito bem mais de "fracassos" que de "sucessos", ainda que esses conceitos sejam altamente dúbios, para não dizer completamente equivocados. Dos 35 a 40 bilhões de seres humanos que já viveram na superfície do planeta, provavelmente um número muito reduzido, equivalente, digamos, a 5% desse total, desfrutou, até hoje, de uma esperança razoável de vida, com o gozo simultâneo de bons padrões de alimentação e de bem estar. A afluência material — isto é, a "libertação" da penúria, da fome e da doença — ainda é algo relativamente "recente" na história da humanidade, correspondendo, talvez, aos últimos dois ou três séculos de avanços na agricultura e de progressos industriais.
Ao se questionarem "por que o mundo todo não é desenvolvido?",[7] os historiadores economistas acabam chegando aos verdadeiros fatores de progresso material e de avanços tecnológicos que, longe de terem sido provocados por "políticas industriais e comerciais", têm a ver, basicamente, com os ganhos de produtividade do trabalho humano ao longo do tempo e em diferentes sociedades, aspecto eminentemente vinculado ao desenvolvimento cultural, de modo geral, e à educação básica e técnica, de modo particular. Estes são fatores que um economista historiador — mas Chang não é um — deveria considerar na avaliação das diferentes experiências nacionais de desenvolvimento, não um aspecto, apenas, da ação governamental em favor deste ou daquele ramo industrial.
Quanto ao complô dos países ricos para "chutar a escada" dos retardatários, bem, ficou, é verdade, faltando tratar desse "aspecto" da história com maior grau de detalhe. Mas a crença é tão ridícula que me constrange ter de levantar argumentos para derrubar hipótese tão fantasiosa. Para começar, ela contraria a "lógica" — se alguma existe — da economia de mercado (e do capitalismo, diriam alguns marxianos mais razoáveis) que consiste em ampliar continuamente a "esfera da acumulação" — para retomar esse linguajar barroco — e conectar os mercados de forma contínua. Como já tinha explicado Marx em 1848, o capital busca sempre derrubar barreiras feudais e muralhas de modos de produção ancestrais, para instalar suas máquinas infernais, que seriam teoricamente suscetíveis de submeter à sua dominação implacável os povos de todo o mundo, ainda que convertidos em um "exército industrial de reserva" (logicamente, para deprimir os salários dos trabalhadores na pátria de origem do capital; para o que mais seria?). Por que, nessas condições, desejaria o capital restringir as possibilidades de desenvolvimento capitalista na periferia? Deixo a resposta — se é que existe alguma, racional, quero dizer — aos adeptos da teoria do bloqueio capitalista.
A rigor, essa tese já era inoperante, inaplicável e "fantástica" na época do próprio mentor de Chang, o economista alemão Friedrich List — que publicou seu livro de economia política em meados do século XIX — e parece-me que ela continua a ser tudo isso, 150 anos depois. De fato, a teoria conspiratória não se sustenta, e só consegue desmoralizar seus partidários, a menos, claro, que eles sejam imbuídos dessa crença numa "história secreta do capitalismo", que só consegue causar
frisson naqueles imbuídos do "secreto desejo" de enterrar o (mal)dito sistema. A verdade é que, numa economia de mercado, que combina diversos tipos de capitalismos, o processo de desenvolvimento adota caminhos diversos, nenhum deles controlável por alguma força social específica, e muito menos por governos ou atores sociais estrangeiros. Nessas condições, imaginar que capitalistas e burocratas do FMI e do Banco Mundial se reúnam na calada da noite — ou talvez nas reuniões anuais do Fórum Econômico Mundial — para encontrar maneiras de impedir países pobres de ascender na escala do desenvolvimento, cozinhando para eles receitas de não-desenvolvimento, acreditar nisso representa bem mais do que defender alguma teoria conspiratória da história e redundaria, simplesmente, em ofender a mais comezinha inteligência econômica (além de fazer pouco caso, obviamente, da própria inteligência dos burocratas e dirigentes de países pobres, ou pelo menos daqueles que não foram "comprados" pelos primeiros).
Quem adota esse tipo de postura — histórica ou econômica — também costuma enveredar por outras teorias fantasiosas para explicar o sucesso de alguns e a "derrota" de outros, posto que as teorias conspiratórias se retro-alimentam e produzem, de contínuo, novas razões para velhos fracassos, como, por exemplo, a persistente pobreza e a imensa desigualdade na maior parte dos países latino-americanos. Muitos — espera-se, ao menos, que este número seja decrescente — acreditam que isso se deve à exploração imperialista e à existência de estruturas capitalistas produtoras de miséria e de desigualdade; mas eu não preciso antecipar o que penso a respeito, não é mesmo? (disso tratarei em futuro ensaio). Os que assim "pensam" — se o verbo se aplica — não estão apenas ofendendo a simples verdade dos fatos e distorcendo a natureza do processo histórico; eles também estão diminuindo suas próprias chances de ascenderem a uma explicação mais consistente sobre as verdadeiras causas do atraso de alguns povos e do progresso de outros. De certa forma, eles estão "chutando a escada" que os levaria a um patamar superior de conhecimento.
Mas este parece ser o destino de muitas falácias acadêmicas: baseadas num contato superficial com a realidade, elas acabam desenvolvendo uma explicação de "senso comum" que não é apenas redutora e simplista, mas que se alimenta de suas próprias crenças equivocadas.
Até a próxima falácia...
[2] Cf. Ha-Joon Chang, Kicking Away the Ladder:Development Strategy in Historical Perspective (Londres: Anthem Press, 2002), já publicado no Brasil:
Chutando a Escada: estratégia de desenvolvimento em perspectiva histórica (São Paulo: UNESP, 2004).
[3] Cf. Ha-Joon Chang, Bad Samarithans:
The Myth of Free Trade and the Secret History of Capitalism (Londres: Bloomsbury, 2007);Maus Samaritanos: o mito do livre-comércio e a história secreta do capitalismo (Rio de Janeiro: Elsevier, 2009).
[4] Cf. Paulo Gala, Apresentação a Maus Samaritanos, op. cit., p. ix.
[5] Ver, deste autor, "Falácias acadêmicas, 2: o mito do Consenso de Washington", in Espaço Acadêmico, n. 88, setembro 2008; link:http://www.espacoacademico.com.br/088/88pra.htm.
[6] Cf. Gala, idem, p. x.
[7] Ver, a este propósito, o trabalho, já antigo, de Richard A. Easterlin, "Why Isn't the Whole World Developed?", The Journal of Economic History, vol. 41, n. 1, The Tasks of Economic History, (Mar. 1981), p. 1-19; disponível:
http://links.jstor.org/sici?sici=0022-0507%28198103%2941%3A1%3C1%3AWITWWD%3E2.0.CO%3B2-Y. Cabe reconhecer que esse autor foi excessivamente otimista em suas suposições mais importantes — sobre a disseminação cada vez mais rápida dos elementos culturais e educacionais que "produziram" desenvolvimento em vários países —, mas talvez ele tenha razão no longo prazo. Infelizmente, esse prazo tem-se revelado desnecessariamente mais longo do que o desejável para muitos povos, mas fatores políticos, não técnicos ou econômicos, podem explicar esse atraso inexplicável para os padrões da racionalidade ocidental.