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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Ricardo Bergamini relembra um dos melhores textos de Roberto Campos: 100 anos hoje

Prezados Senhores

Em homenagem aos 100 anos de vida do imortal Roberto Campos, leiam com atenção seus ensinamentos para o grave momento atual do Brasil. Creio que o título do artigo já diz tudo.

Repetindo o óbvio (09/01/2000)

126417*Roberto de Oliveira Campos
 

Aceito o risco de parecer repetitivo. Diante das grandes questões que preocupam mais no nosso país, a originalidade do articulista fica em segundo lugar. Estamos atravessando dias pesados, um ambiente de insatisfações e sombras. Os mais jovens sentem-se angustiados diante das incertezas do futuro, da ameaça de desemprego, de falta de horizontes. Os mais velhos tentam lembrar-se daqueles períodos em que o Brasil não atravessava um estado de crise permanente. Salvo alguns breves anos do começo do Plano Real, parte da Era Kubitschek e o otimismo do "milagre econômico" do fim dos anos 60 - que, no entanto, foi tisnado pela situação política de exceção -, todo o resto de nossa História contemporânea é um confuso mosaico de problemas e condições institucionais instáveis.


Não chegamos felizmente ao extremo dos gulags, campos de extermínio, "limpezas étnicas" e coisas que tais. Nossos chamados "anos de chumbo", comparados às experiências de outras nações (e certamente aos "anos de aço" dos regimes comunistas), pareceriam antes de papel de cigarro metalizado. Se afundamos numa situação crítica injustificável, é por nossa própria culpa, por falta coletiva de bom senso e de responsabilidade.

O público exprime sua perplexidade naquela conhecida anedota de como Deus, tendo presenteado nossa geografia com uma abundância de vantagens materiais, colocou no Brasil, como contrapeso, um "povinho ruim". Essa autodepreciação está errada. O trabalhador brasileiro, ainda que subinstruído, é diligente e flexível, como as empresas estrangeiras são as primeiras a reconhecer. Os engenheiros e gerentes especializados têm em alguns casos nível bastante alto. Somos a oitava economia do mundo e temos conseguido adaptar-nos a mudanças tecnológicas complexas. Falta-nos reduzir os excessivos contrastes em matéria de educação, informação e saúde - demanda social justa, mas não um impedimento real ao nosso desenvolvimento tecnológico ou industrial.

A verdade é que nosso grave subdesenvolvimento não é só econômico ou tecnológico. É político. Somos um gigante preso por caguinchas dentro de estruturas disfuncionais. A máquina político-administrativa que rege hoje nossos destinos é uma fábrica de absurdas distorções cumulativas. O regime presidencialista e o voto puramente proporcional, cada um dos quais, já de si, dificilmente funcionam bem, transformam-se, quando combinados, numa crise quase ininterrupta. O presidencialismo americano, que nos serviu de modelo, é conjugado ao voto distrital, e a federação é autêntica, porque foram os Estados que a criaram, enquanto que no Brasil estes resultaram do desfazimento do império unitário.

Não é que os políticos só pensem em si ou sejam "corruptos" de nascença. Essa é uma visão popular deformada. A maioria é dedicada e séria. Mas o deputado, o senador, o prefeito, o governador e, obviamente, o presidente têm de ser eleitos, ponto de partida do qual não há escapatória. Nas eleições proporcionais de hoje, os deputados são obrigados a catar votos por todo o Estado, garimpando aqui e ali - um processo caro e tremendamente incerto, porque eleitor em geral não sabe como discriminar entre dezenas de representantes eleitos. Como é que o eleitor médio vai se lembrar de quem propôs medidas ou leis, para poder avaliar quem merece o seu voto? Um americano ou um inglês pode falar no "seu" deputado: sabe exatamente quem ele elegeu e tem como cobrar respostas ao representante do "seu" distrito. O alemão, com um sistema misto, tem o "seu" deputado distrital e também o da lista do seu partido. E, como o regime é parlamentarista, pode cobrar de ambos.

No Brasil, cobrar o quê? De quem? Mal acaba de ser eleito por um partido, o deputado ou senador se sente à vontade para mudar de partido. Não existe sanção. A eleição presidencial então é sempre um trauma violento, agravado pela percepção de que o vencedor passará a controlar a máquina pública, os mecanismos de dar ou negar favores. Gerir a coisa pública é, entre nós, um contínuo varejo. Dá para estranhar que, desde o início da República, raros tenham sido os governos que não se envolveram em conflitos com o Congresso, com riscos de descontinuidade institucional? Contra um sistema tão ruim, tanto faz se os políticos são santos ou bandidos. Num ônibus sem freios, o perigo de desastre é o mesmo para todos. Há perto de três séculos e meio, Colbert, o famoso ministro protecionista da França monárquica, assim se lamentava na Carta de Luís XIV aos funcionários e ao povo de Marselha (26 de agosto de 1764):

"Como desde a morte de Henrique IV temos tido só exemplos de carências e necessidades, precisamos determinar como aconteceu que, durante tão longo tempo, não tenhamos tido, se não abundância, pelo menos uma renda toleravelmente satisfatória..." Colbert põe a culpa no sistema fiscal e afirma que piores do que os muitos corruptos foram aqueles altos funcionários "cuja incompetência prejudicou mais o Estado e o povo do que os roubos pessoais". Entre os vícios da burocracia fiscal da época, Colbert lista os seguintes: "Consumir com despesas correntes as receitas ordinárias e extraordinárias dos dois próximos anos..." e "negligenciar as receitas gerais ordinárias afazendadas, dedicando-se ativamente à busca de fontes de renda extraordinárias..."

Colbert se revelou um reformista e desenvolvimentista avant la lettre. Mas a França já estava politicamente entalada, e ele não conseguiu realizar sua "reforma fiscal". O mundo está cansado de esperar pelas "reformas" brasileiras. E de ouvir lamentações sobre a nossa pobreza. Há muito, exceto em regiões desérticas da África ou gravemente sobrepovoadas da Ásia, a pobreza deixou de ser uma fatalidade. É um acidente histórico de povos que preferem externalizar a culpa em vez de fabricar seu próprio destino.

*Defensor apaixonado do liberalismo. Economista, diplomata e político também se revelou um intelectual brilhante. De sua intensa produção, resultaram inúmeros artigos e obras como o livro A Lanterna na Popa, uma autobiografia que logo se transformou em best-seller. Foi ministro do Planejamento, senador por Mato Grosso, deputado federal e embaixador em Washington e Londres. Sua carreira começou em 1939, quando prestou concurso para o Itamaraty. Logo foi servir na embaixada brasileira em Washington, e, cinco anos depois, participou da Conferência de Bretton Woods, responsável por desenhar o sistema monetário internacional do pós-guerra.

Ricardo Bergamini

Roberto Campos: introducao a livro organizado por Paulo Roberto de Almeida


Um rebelde com causa
"Felizmente, Campos foi poupado do desgosto de assistir à enorme destruição de riqueza causada pela política econômica do governo que ascendeu ao poder em 2003"
Paulo Roberto de Almeida*
16 Abril 2017 | 05h00
Foto: Reprodução
Capa do livro O homem que pensou o Brasil


“Se formos reler, hoje, o Roberto Campos dos ensaios econômicos mais elaborados dos anos 1950, o publicista dos artigos semanais nos grandes jornais do Rio e de São Paulo nas décadas seguintes e até o final do século, constataremos que tudo o que ele escreveu, tudo o que ele proclamou, tudo pelo que ele se bateu, insistiu e até conseguiu implementar, pelo menos parcialmente, retornou como um pesadelo a frequentar o cérebro das gerações presentes das formas mais inesperadas e em uma rapidez surpreendente.
Ele foi, “felizmente”, poupado do desgosto de assistir à enorme destruição de riqueza(...) causada pela política econômica irresponsável dos companheiros que ascenderam ao poder em 2003, por haver falecido dois anos antes. Em face dos cenários de terra arrasada, ele teria de reescrever, com poucas mudanças substantivas, seus artigos de décadas passadas, quando alertava continuamente para o perigo do “meio sucesso” ou do “meio fracasso” – uma situação na qual o país não conhece o pleno sucesso da estabilização, que induziria reformas suplementares e criaria o clima de confiança necessário para alimentar um processo de crescimento sustentado, nem a ruína do fracasso completo, que comandaria, sem hesitação, a realização de reformas estruturais radicais.
Roberto Campos é provavelmente único, por suas características pessoais e por suas posições independentes, no seio de um grupo bastante reduzido de intelectuais públicos no Brasil: o dos livres-pensadores. Mais ainda: dentro dessa pequena família, ele se filia a uma espécie ainda mais escassa, a dos rebeldes com causa, a dos que não se prendem a qualquer escola oficial, a dos que se recusam a deixar de exibir pensamento próprio apenas porque são servidores do Estado, a dos que pensam fora dos dogmas oficiais, das verdades estabelecidas e dos lugares comuns.
Roberto Campos nunca se esquivou de denunciar as falácias da demagogia política e do populismo econômico, assim como da repartição de benesses sem apoio no realismo econômico. Não hesitou em renunciar a posições oficiais (a presidência do BNDE e a chefia da embaixada em Washington) quando achou que não podia sustentar posturas irresponsáveis. Ele também foi único, em sendo diplomata, em não hesitar em criticar – até de forma irônica – as tomadas de posição equivocadas do Itamaraty e dos governos militares no plano externo.
Ele foi aquele que viu antes, mais e melhor do que qualquer outro de sua geração ou mesmo das gerações atuais, um intelectual que pensou o Brasil de forma tão completa, tão dedicada e tão racional que ele ainda está presente, integralmente, nas soluções que nossa geração precisa encontrar para os problemas atuais, com base nas mesmas recomendações que ele teve o cuidado de formular décadas atrás.
Ele foi um “profeta responsável”, como se denominou ao final de seu livro de memórias, um empreendimento inigualado na literatura brasileira e que deveria ser leitura quase compulsória para todos os candidatos a integrar a tecnocracia nacional Aos cem anos, Roberto Campos ainda vive.”
SERVIÇO:
Obra: O homem que pensou o Brasil
Autor: Paulo Roberto de Almeida (organizador)
Editora: Appris
Preço: R$ 65 (edição impressa) e R$ 18 (edição digital
*PAULO ROBERTO DE ALMEIDA, ORGANIZADOR DO LIVRO “O HOMEM QUE PENSOU O BRASIL”, É DIRETOR DO INSTITUTO DE PESQUISA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS (IPRI)

Os trechos acima foram retirados de uma seção de meu capítulo introdutório ao livro que organizei em homenagem ao Roberto Campos.
 Paulo Roberto de Almeida 

domingo, 16 de abril de 2017

Roberto Campos: sessao especial no Senado - 17/04/2017, 11:00hs

Nesta manhã de segunda-feira 17/04, o Senado, estimulado pela sua bancada mato-grossense, realiza uma sessão especial em homenagem ao mais ilustre titular de um mandato pelo seu estado de origem (embora tenha feito carreira no Rio de Janeiro e internacionalmente). 
Não tenho a menor ideia de como será essa sessão, mas recebi um convite para dela participar. Tampouco sei se me darão a palavra, e por quanto tempo.
Se isso ocorrer, e se eu tiver pelo menos 5 minutos para um pequeno pronunciamento, pretendo dizer algo na linha do que vai abaixo. Como partirei imediatamente depois para o Rio de Janeiro, para participar do lançamento do livro que organizei, já anunciado, O Homem que Pensou o Brasil: itinerário intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Editora Appris, 2017), não terei tempo de verificar ou de registrar o que ocorrerá nessa sessão do Senado. Não poderei tampouco postar este texto, por isso o faço preventivamente.
Quem puder sintonizar a TV Senado, gravar e disseminar a sessão, por favor, me avise, para poder assistir depois. 
Aproveito a ocasião, para postar, mais abaixo, um pequeno trecho de meu capítulo no livro que trata da primeira fase da atividade parlamentar de Roberto Campos.
Paulo Roberto de Almeida 




Sessão especial no Senado em homenagem a Roberto Campos



Paulo Roberto de Almeida

 [Texto-guia para pronunciamento; resumo dos argumentos]





Senhor presidente, senhores senadores,

Caros amigos e admiradores do ex-senador, diplomata e economista Roberto Campos,

            Permito-me, em primeiro lugar, esclarecer que não compareço a esta sessão especial enquanto Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag/MRE, mas simplesmente como cidadão brasileiro, como professor, no caso como autor e organizador deste livro, Homem Que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos, uma obra que empreendi sem que qualquer demanda externa ou sugestão institucional me fosse feita, unicamente por prazer intelectual e como expressão de minha admiração intelectual por um homem, um economista e um colega diplomata, em relação ao qual eu me sentia uma espécie de “opositor ideológico” em minha já distante juventude esquerdista.

Senhor presidente,

Ainda são relativamente raros os brasileiros que podem exibir a felicidade de chegar aos cem anos, como é o caso, por exemplo, de outro ilustre diplomata, liberal como Roberto Campos, ainda que não economista, mas pensador político e filosófico, José Osvaldo de Meira Penna, que comemorou cem anos no último mês de março.

São ainda mais raros os indivíduos que, chegando ou não aos cem anos de vida, podem ser lembradas por grandes feitos, em favor do país, ou de toda a humanidade. Roberto Campos, que teria chegado aos cem anos nesta data, não teve essa felicidade. Mas ele já tinha obtido, ainda em vida, a raríssima distinção de ter se convertido em verdadeiro ícone da inteligência nacional, em insigne representante de uma classe muito restrita de indivíduos que alcança a glória ainda durante a sua longa vida ativa, e isso numa sucessão de pequenas vitórias obtidas com muito esforço individual, com muita dedicação aos estudos, com uma persistência notável para quem, finalmente, tinha saído de origens modestas, e que parecia destinado à vida monástica, tal era sua paixão pelos estudos, mas dispondo de recursos familiares extremamente modestos.

Roberto Campos se distinguiu primeiro enquanto diplomata, desde 1939, depois como economista de altíssima qualidade, a partir de sua formação nas universidades George Washington e Columbia, em 1947, em seguida mediante seu crescimento na condição de tecnocrata preparadíssimo, na fase de construção do Estado brasileiro, por meio de sua participação na Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, no início dos anos 1950, o que foi consolidado quando de sua nomeação, no decorrer dos anos 1950, como diretor e, mais adiante, como presidente do BNDE, dois cargos a que ele renunciou quando percebeu que a entidade estava sendo usada para fins políticos, não para a finalidade precípua para a qual tinha sido criada. Não hesitou, tampouco, em renunciar à chefia da embaixada em Washington, ainda em meados de 1963, quando teve a certeza de que o presidente Goulart não estava preparado para o cargo que ocupava e que colocava em risco a credibilidade do Brasil no exterior, ao exercer o que o distinguiu durante boa parte de sua carreira no PTB: demagogia política e populismo econômico.

Não esteve nem de longe envolvido no movimento que levou ao golpe de 1964, uma vez que passou boa parte do primeiro bimestre do ano viajando pelo Extremo Oriente, que ainda conhecia mal até aquele momento. Quando voltou ao Brasil, o golpe já tinha chegado à sua fase decisiva e foi assim que, sem pedir e sem buscar, tornou-se o ministro símbolo da primeira fase do regime militar, o homem que presidiu ao mais importante processo de reformas já conhecido no Brasil em todos os tempos. A maior parte das reformas por ele empreendidas, junto com seu colega da Fazenda, Otávio Gouvêa de Bulhões, de certa forma perdura até hoje, ainda que muitas delas deformadas por erros e distorções acumuladas ao longo do tempo, especialmente na área tributária.

Mas o que faria hoje, se vivo fosse, Roberto Campos, ante à situação vivida pelo Brasil e pelos brasileiros depois de mais de uma década de descalabros perpetrados no terreno econômico e em outros domínios da vida pública também? Em primeiro lugar, creio que Roberto Campos teria morrido deprimido, ao contemplar a Grande Destruição construída pelos companheiros no poder, muito por inépcia administrativa, ainda mais por incompetência econômica, mas também por uma corrupção nunca antes vista neste país. Em segundo lugar, não lhe seria difícil conceber um plano de salvação nacional, um programa completo de recuperação econômica, ele que já tinha concebido vários, desde os anos cinquenta, com sucesso variado segundo os dirigentes do momento.

Ele poderia, por exemplo, retomar quase inteiramente, o seu pronunciamento inaugural neste Senado, feito em 8 de junho de 1983, e resumido no capítulo XIX do seu livro de memórias, intitulado “As lições do passado e as soluções do futuro”. Ele mesmo diz, na sua Lanterna na Popa, que esse discurso “foi talvez a melhor peça que já escrevi, como síntese de problemas e propositura de soluções” (p. 1073). Com exceção do problema da dívida externa, hoje relativamente irrelevante (mas não o da dívida doméstica, este dramático), todas as demais questões guardam notável semelhança com o pavoroso quadro atual, assim como ainda se aplicam inteiramente os remédios que ele propunha naquela ocasião. Recomendo aos senhores senadores que releiam atentamente tudo o que ele disse naquele dia de 1983 para constatar o que estou afirmando agora. Ali figura um programa completo de regeneração do Brasil, totalmente válido para os dias que correm, tanto no diagnóstico, quanto nas prescrições de políticas econômicas.

Eu também recomendaria que se lesse atentamente o seu discurso de despedida da Câmara dos Deputados, realizado dezesseis anos depois, em janeiro de 1999, um pronunciamento que ele mesmo chama de “retrospecto melancólico”, ao fazer um balanço, bastante frustrante, da imensa distância que ele constatava existir entre o potencial de reformas e as possibilidades de progresso, alinhadas em seu discurso de início de mandato parlamentar, em 1983, e o desempenho finalmente medíocre seguido pelo Brasil no período decorrido desde então. Ele listava, entre outras, reformas que tinham deixado de ser feitas, aliás até hoje: abolição de monopólios estatais, reformas estruturais do Estado (administrativa, fiscal e previdenciária) e a privatização de estatais e a outorga de serviços (p. 1436 da 4a edição das memórias).

Finalmente, senhores senadores, termino por imaginar que Roberto Campos, se vivo fosse, ficaria muito frustrado com o funcionamento desta mesma Casa, na qual se exerceu durante oito anos, e nos oito anos seguintes na Câmara, durante os quais travou muitas batalhas contra os inimigos das reformas, contra as corporações de ofício, contra os mandarins do Estado, contra os monopolistas e estatizantes de todos os tipos. Ele não deixaria de constatar uma baixa propensão a empreender essas reformas necessárias, e uma tendência a eludir o grave problema da baixa produtividade no Legislativo em geral, ao lado da procrastinação em cortar na carne das suas próprias despesas, em face do grave problema fiscal e orçamentário enfrentado pelo país. Campos se perguntaria o que aconteceu com a Câmara Alta, com este Senado, que reluta em enfrentar de modo corajoso a vasta lista de reformas que a sociedade exige da representação política.

Senhores, leiam ou releiam Roberto Campos, como eu mesmo fiz para a feitura deste livro, O Homem que Pensou o Brasil, e reflitam sobre suas palavras e sobre os seus ensinamentos. Aos cem anos de seu nascimento, Roberto Campos ainda tem muito a nos dizer. Muito obrigado pela oportunidade que me foi dada.



Paulo Roberto de Almeida


Brasília, 11 de abril de 2017


Transcrição de trecho do meu capítulo: 
12. Roberto Campos: uma trajetória intelectual no século XX  
in:
O Homem que Pensou o Brasil: itinerário intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Editora Appris, 2017)
(...)
12.18. De tecnocrata a político: a ética da convicção, num país anti-weberiano

Depois de sete anos à frente da embaixada no Reino Unido, Roberto Campos decidiu dizer “Adeus à diplomacia” (segundo o título do capítulo XVII das memórias) para se dedicar à política, começando por concorrer a um cargo senatorial por Mato Grosso, seu estado natal.

De diplomata e tecnocrata passaria a ser um ‘policrata’. Mais tarde saberia que no Legislativo não é fácil fazer o bem. Resignei-me ao objetivo mais modesto de evitar o mal.

Assim terminou minha carreira diplomática. (...)

Meu grande pecado, em ‘ambas as vidas’ [ele está aqui invocando as memórias de Chateaubriand, que também tinha sido o embaixador francês em Londres, na Restauração], foi dizer a verdade antes do tempo. Pecado, em termos pessoais, que voltaria a repetir em nome da ‘ética da convicção’ [aqui evocando os conceitos políticos de Max Weber (1959)]. (1994: 1032).

Ao contrário de Chateaubriand, a providência não me inspirou para escrever em Londres uma obra iluminada como as Mémoires d’outre tombe. As memórias do visconde foram escritas ao  longo de trinta anos e se destinavam a publicação póstuma. Não tenho a menor intenção de escrever um livro póstumo.

Contento-me com este meu relato – A lanterna na popa – sem a qualidade estética da obra de François-René, mas com igual angústia existencial ante os caprichos do destino, coisa que, como dizia Machado de Assis, rima com divino. (1033)



Suas memórias são muito precisas quanto aos fatos econômicos e aos eventos políticos, com uma soma impressionante de valores, números pessoas e circunstâncias, mas talvez incompletas, ao evocar o lado da vida sentimental, como nota em seguida:

Tal como as Mémoires d’outre tombe, meu relato é de grande discrição quanto à vida sentimental. Não tive, de resto, nada de eroticamente comparável à sua longa ligação com Madame Récamier, que dava ao velho nobre empobrecido os prazeres do leito, a partilha da bolsa e a excitação intelectual do saloon da Abbaye-aux-Bois. (1033)



Na verdade, a excitação intelectual ele conseguia, certamente, nos debates com os economistas estruturalistas, ou heterodoxos, e com a esquerda, em particular, como certa vez num face-a-face com líder comunista Luiz Carlos Prestes, em um debate na televisão. Mas tampouco lhe faltaram prazeres mais mundanos e certa partilha da bolsa (a sua), como transpareceu vez ou outra em tabloides sensacionalistas. Este ensaio, contudo, se dedica à história de suas ideias, sobretudo aquelas asperamente econômicas, e não contempla, como as memórias de Chateaubriand, qualquer relato sobre a vida sentimental do homem de “convicções” com vocação de estadista, como Chateaubriand, aliás. Em todo caso, foi com esses sentimentos de “restauração”, ou de recomeço, como tantas vezes fez na vida o eminente homem público, publicista e estadista francês, que Roberto Campos mandou empacotar seus pertences em Londres para retornar ao Brasil.

Antes de abandonar Londres, porém, foi gratificado, como já tinha sido o caso quando de sua despedida de Washington, com um editorial no mais prestigioso jornal econômico internacional, o Financial Times (26/08/1982), que ele transmitiu a Brasília:

A seção “Men and Matters” do Financial Times publicou hoje, sob o título ‘Back to Brazil’, a seguinte nota: ‘London will loose one of its wittiest diplomats next month, when Brazilian Ambassador Dr. Roberto Campos returns home after seven years at the Court of St. Jame’s. He will be succeeded by former Brazilian Minister Gibson Barboza, currently Ambassador to Rome.

Campos, whose reputation as an after-dinner speaker has been largely established in the City’s banking circles, trained for the priesthood before deciding his interests were too wordly. He then went to Washington to add a degree in Economics to those he already held in Philosophy and Theology. He was Economics Professor at the University of Brazil from 1956/61 and much of his Foreign Service career has been spent in financial and economic development negotiations. Appropriately enough for a country with $80bn of foreign borrowing, he is widely recognized as an expert on international debt. This week Campos is in Brazil opening his campaign for a seat in the Senate to represent his home state of Mato Grosso. His political opponents had better beware. As former Brazilian president Kubitschek said of him: ‘Don’t ever get into an argument with Campos. He’s bound to win even if you make him communicate in Braille. (Maço Pessoal RC; telegrama 1222/82 de Londres)



Finalmente, eleito senador pelo Mato Grosso nas eleições de novembro de 1982, Roberto Campos passa à condição de “agregado” do Quadro Permanente do Ministério das Relações Exteriores a partir de 17 de novembro de 1982, o que teoricamente lhe habilitaria a voltar à carreira, se tal fosse sua decisão, antes da aposentadoria compulsória. Sua aposentaria de fato só aconteceria em abril de 1985, aos 68 anos de idade (expedientes constantes do Maço Pessoal de RC).

Roberto Campos foi, possivelmente, o mais intelectual dos homens públicos a ter frequentado o Senado, ainda que “vidas paralelas” possam ser detectadas no passado, como relembra uma crônica de Machado de Assis sobre o Senado do Império, a propósito de um longo discurso do Visconde do Rio Branco, ao retornar de uma frustrada missão no Prata, antes da guerra do Paraguai. Pois foi com um discurso similar, senão semelhante, que Roberto Campos estreou no Senado em 8 de junho de 1983, “após três meses de recuperação de um enfarte” (1994: 1073). Ele começou citando, sem o dizer, discursos feitos na Assembleia Geral em 1831, sob a Regência Trina Permanente, sobre a situação econômica do Brasil naquele momento de grandes dúvidas sobre os destinos da nação, logo após o final do Primeiro Reinado.

Ele adota, como registrado logo ao início de sua longa fala, uma postura analítica, para abordar, sistematicamente sete grandes problemas do país, alinhados cartesianamente em torno dos seguintes temas: 1) a displicência demográfica; 2) a imprevidência energética; 3) a sacralização do profano (o intervencionismo estatal e o desrespeito à hierarquia das leis); 4) a nova demonologia (as multinacionais, o FMI, etc.); 5) a gaveta dos sonhos (a ilusão da ilha da prosperidade, a cura indolor da inflação, a ilusão distributiva); 6) a panaceia jurisdicista (ou seja, as soluções formais) e 7) as lições e as soluções da crise (inflação, exportação, déficit do setor público, reforma tributária, etc.).

Esse longo discurso, publicado posteriormente nos Ensaios Imprudentes (“As lições do passado e as soluções do futuro”; 1987: 11-48), encerra um imenso programa de reformas e de modernização do Brasil, que deve ter sido escutado atentamente pelo senadores presentes (alguns devem ter cochilado no meio), mas que – a despeito de ser “a melhor peça que já escrevi” (1994: 1073) – não produziu nenhum efeito, não só no plano intelectual, numa casa de homens práticos, mas também no plano da prática, uma vez que os seus colegas estavam mais voltados para a busca de soluções pessoais do que nacionais. Ele não tardou a reconhecer que “minha capacidade de análise e previsão era vastamente superior à minha capacidade de persuasão e mobilização (idem).

Retrospectivamente, ele faz um julgamento mais matizado sobre os efeitos da primeira grande peça de oratória:

O discurso inaugural e as propostas tiveram boa divulgação na imprensa e razoável aceitação no Congresso, ao nível da percepção intelectual. Mas feriam alguns tabus demagógicos e, como todas as inovações, não mereceram mais que simpatia desconfiada, que nunca se traduziu em aceitação entusiasmada. Nessa altura, no Senado, eram poucos os liberais genuínos. A ideologia predominante era o nacional-populismo, e eu sempre detestei esses dois ismos – o nacionalismo e o populismo. Fiz muitos amigos, mas tive poucos aliados. (1994: 1079)



Dentre os novos “companheiros” de debates, um velho conhecido de diatribes intelectuais:

Os debates intelectualmente mais estimulantes eram com Fernando Henrique Cardoso. Àquela altura não se havia ainda livrado do entulho ideológico da teoria de dependência, que o levava a exagerar o problema da dívida externa, propondo inclusive a absurda Resolução n. 82 do Senado, que vedava a conversão dos títulos da dívida externa em ações, pelo valor face, e conferia ao devedor o direito unilateral de avaliar a sua própria capacidade de pagamento e o nível de reservas que considera desejáveis. Perfilhava, outrossim, teses favoráveis ao nacionalismo informático e ao dirigismo estatal, ainda que com mais elegância e sofisticação intelectual dos os nacional-populistas da época. (1080)



Mas ele reconhece de pronto:

Na realidade, minha vida no Senado foi uma sucessão de batalhas perdidas: as principais foram a batalha da informática, a batalha contra a ortodoxia [sic] do Plano Cruzado e a resultante moratória, e a batalha contra a Constituição brasileira de 1988.

Minha reabilitação viria somente ao final do mandato, quando o colapso do socialismo e a queda do muro de Berlim me transformaram de herege imprudente em profeta responsável. (1080)



Os trabalhos da Constituinte congressual de 1987-88 representaram uma espécie de condensação, em doses concentradas, de todas as irracionalidades contra a quais ele tinha se batido durante toda a sua vida: os conhecidos pecados populistas, nacionalistas, protecionistas, estatizantes, se manifestaram nas tumultuadas sessões das comissões encarregadas dos diferentes capítulos da enorme Carta Magna, extremamente detalhada, finalmente promulgada em outubro de 1988. Ao título de “Constituição dos Pobres” dada a ela pelo presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães, Campos respondeu imediatamente com o epíteto de “Constituição contra os pobres”. Como registrou um estudioso da “retórica” da Constituinte:

Em lugar de pavimentar o caminho para uma elevação dos padrões de vida dos não privilegiados, os dispositivos propostos iriam antes acarretar, através de uma série de consequências não pretendidas, o efeito contrário. A tentativa de garantir aos brasileiros uma ‘carta social’ completamente desenvolvida iria resultar em mais pobreza, desemprego, privações e miséria. (Costa, 1998: 131)



Como ainda destaca esse pesquisador dos trabalhos de Campos na Constituinte, ele se esforçou ao máximo para evitar que seus colegas na Assembleia, ao pretender atribuir no papel benefícios sociais, terminassem por “cometer dois males conectados entre si: a subavaliação dos custos e a sobrecarga da comunidade de negócios”. Os resultados, para Campos, não demorariam a se manifestar:

os benefícios experimentariam um aumento nominal... As empresas reagiriam de várias maneiras.. Algumas tentariam absorver os custos, com sucesso variado, mas o resultado mais provável será que os lucros serão reduzidos, e em consequência os investimentos e a criação de empregos. (Campos, artigo “As consequências não-pretendidas”, 13/03/1988, apud Costa, p. 132)



A despeito de que as esquizofrenias econômicas tenham sido em grande medida superadas pelo curso ulterior da política econômica, sua última batalha, de certa forma, ainda não acabou: “A Constituição de 1988... criou uma democracia disfuncional, que piorou as condições de governabilidade do país” (1112). Ele que se bateu intensamente pela introdução de um regime de tipo parlamentar clássico, ou por um parlamentarismo presidencialista, de tipo francês, nunca teve a satisfação de ver um processo real de reformas políticas ser empreendido antes do final do regime militar. Uma outra emenda que ele propôs, limitando o intervencionismo estatal, tampouco teve melhor sorte.

Quero crer que a história brasileira teria sido diferente e melhor, se essas retificações de rumo tivessem sido aprovadas em 1984. Não teríamos tudo a maluquice intervencionista do Plano Cruzado em 1986, e a crise do impeachment de Collor não teria ocorrido em 1992. (1118)



Roberto Campos manteve a esperança, durante certo tempo, de que era possível “educar” os senadores nas boas virtudes da racionalidade, da lógica elementar, da mera observação dos fatos e das simples evidências econômicas. Com o tempo, ele foi se convencendo de que o velho patrimonialismo português podia ter sido alterado por força da mudança nas instituições, ao longo dos vários regimes constitucionais, mas que ele nunca tinha sido extinto de verdade; ele subsistia sob novas roupagens e novos argumentos, como aliás tinha demonstrado Raymundo Faoro em sua clássica tese sobre a formação do patronato político brasileiro. 
(...)

Íntegra no livro: O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos; Paulo Roberto de Almeida (org.). Curitiba: Editora Appris, 2017, 373 p.; ISBN: 978-85-473-0485-0); disponível para venda no link: http://editoraappris.com.br/produto/o-homem-que-pensou-o-brasil-trajetoria-intelectual-de-roberto-campos; formato e-book: http://editoraappris.com.br/produto/e-book-o-homem-que-pensou-o-brasil-trajetoria-intelectual-de-roberto-campos.

Roberto Campos no Estadao: artigos diversos

Começando pelo seu discurso de despedida do Congresso, pronunciado num plenário quase vazio da Câmara dos Deputados em janeiro de 1999, o Estadão reproduz uma série de artigos publicados pelo economista-diplomata-intelectual, neste link:
http://brasil.estadao.com.br/blogs/arquivo/roberto-campos-no-estadao/

Roberto Campos no Estadão

Edmundo Leite
O Estado de S. Paulo, 15 Abril 2017 | 16h28

Além de ser personagem de inúmeras reportagens durante sua trajetória de economista, diplomata, ministro, parlamentar e escritor, Roberto Campos (1917-2001) escreveu dezenas de artigos que foram publicados ao longo de mais de quatro décadas no Estadão. O seu discurso de despedida da vida parlamentar foi publicado na íntegra em 31 de janeiro de 1999.
“Comecei esse discurso dizendo de minha frustração por ter ao fim de três mandatos encontrado o país com os mesmos problemas do início. Isso me faz lembrar o famoso e quase intraduzível poema de T.S. Elliot, o ‘East Giddings’, no ‘Four Quartets’: “The end of all our exploring / Will be to arrive where we started / And know the place for the first time.” “O fim de toda a nossa busca / Será chegar ao lugar onde começamos / E ter a sensação de descobri-lo pela primeira vez”.

Estadão – 31.1.1999