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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 26 de janeiro de 2019

As Leis Fundamentais da Estupidez Humana, 2 (2006) - Paulo R. de Almeida sobre Carlo M. Cipolla


Todas as leis da estupidez humana (suite et fin...)

27 de abril de 2006


Em meu artigo anterior, eu havia transcrito apenas duas das cinco leis (geniosas e geniais) da estupidez humana, tal como formuladas quase duas décadas atrás pelo famoso historiador italiano Carlo Maria Cipolla (infelizmente já falecido). Fiquei, então, devendo aos leitores, a transcrição da série completa, de molde a poder compartilhar com todos os interessados o deleite de conhecer, e apreciar, os fundamentos históricos da velha “bêtise humaine”, tal como ele, um medievista reputado, a compreendia.
Transcrevo, pois, em sua exposição mais sintética possível – a partir do original italiano, uma vez que não consegui mesmo achar o pequeno volume em minhas estantes abarrotadas de livros –, essas cinco leis, agregando depois comentários do próprio Cipolla sobre seu contexto histórico-estrutural. Como diriam os americanos, quote:
1. Sempre e inevitavelmente, cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos em circulação.
2. A probabilidade de que uma certa pessoa seja estúpida é independente de qualquer outra característica dessa pessoa.
3. Uma pessoa estúpida é uma pessoa que causa um dano a outra pessoa, ou a um grupo de pessoas, sem que ela obtenha qualquer vantagem para si mesma, ou até sofrendo, ela mesma, algum dano.
4. As pessoas não estúpidas sempre subestimam o potencial nocivo das pessoas estúpidas. Em especial, os não estúpidos esquecem constantemente que, a qualquer momento, em qualquer lugar e em qualquer circunstância, tratar e/ou associar-se a indivíduos estúpidos se revela, infalivelmente, um erro custosíssimo.
5. A pessoa estúpida é o tipo de pessoa mais perigosa que possa existir.
Unquote. Cipolla acrescenta logo em seguida: “Não é difícil compreender como o poder político, econômico ou burocrático acrescenta ao potencial nocivo de uma pessoa estúpida. Mas devemos ainda explicar e compreender o que é que torna essencialmente perigosa uma pessoa estúpida; em outras palavras, em que consiste o poder da estupidez”.
 Talvez Cipolla estivesse pensando, quando escreveu estas linhas, em sua Itália natal, um país que consegue ostentar políticos tão corruptos e safados quanto o... Japão, por exemplo. Ahah!, peguei vocês: pensando que eu fosse tirar do meu bolso algum exemplo tupiniquim, não é? Mas é que vocês não conhecem a inacreditável capacidade dos políticos japoneses em se reproduzir continuamente, sua insaciedade pelo dinheiro corporativo e estatal, sua estabilidade notória, graças ao conservadorismo de uma população que ainda aprecia samurais e senhores da guerra. De minha parte, sempre achei que, mais do que uma Belíndia, ou seja, uma país meio Bélgica, meio Índia – como queria o economista Edmar Lisboa Bacha –, o Brasil era, bem mais, uma espécie de “Argentália”, ou seja, um país tão ciclotímico economicamente quanto a nossa vizinha competidora futebolística, e tão prolífico em políticos corruptos quanto a Itália, uma de nossas inspirações gastronômicas e histriônicas mais conhecidas no último século.
Bem, deixando japoneses e italianos de lado, acho que a rationale explicativa de Cipolla se encaixa como uma luva em nossa situação política atual, estes tempos de mensalão oficialmente patrocinado pelo Estado e implementado de modo absolutamente amador pelo partido no poder. Como explicar, de outro modo, que os “homens” do poder tenham roubado de forma tão canhestra, improvisada e desorganizada, e como nós, que pagamos tudo isso, suportamos passivamente a continuidade de tanta desfaçatez e tanta desonra republicana? Só pode ser por estupidez, de uns e de outros. Se não, vejamos...
Cipolla dá os motivos para tanta estupidez disseminada impunemente, durante tanto tempo, aqui como lá (supostamente): “Essencialmente, os estúpidos são perigosos e funestos porque as pessoas racionais não conseguem imaginar e compreender um comportamento estúpido. Uma pessoa inteligente pode compreender a lógica de um bandido. As ações do bandido seguem um modelo de racionalidade. O bandido quer alguma coisa ‘mais’ na sua conta. Dado que ele não é suficientemente inteligente para conceber métodos com os quais obter o seu ‘mais’ procurando ao mesmo tempo um ‘mais’ para os outros também, ele caba obtendo o seu ‘mais’ causando um ‘menos’ ao seu próximo”.
Tudo isso não é justo, mas é racional, como lembra Cipolla, e se é racional pode ser previsto. É possível, em suma, prever as ações de um bandido, as suas manobras sujas e as suas deploráveis aspirações e, talvez, se pudesse antepor algumas oportunas medidas de defesa (embora eu acrescente que, no Brasil, alguns poucos conseguiram enganar a muitos durante muito tempo). Mas, com uma pessoa estúpida, isto é absolutamente impossível. Como está implícito na terceira lei fundamental, uma pessoa estúpida pode persistir sem qualquer motivo em suas ações, sem um plano preciso, nos momentos e nos lugares mais improváveis e impensáveis. Não existe nenhuma maneira racional de prever quando uma pessoa estúpida se lançará ao ataque. Pelo que constato, acho que o Brasil está sofrendo um ataque especulativo de estupidez galopante. Vocês não acham?
Finalmente, é preciso também levar em conta uma outra característica desse tipo de situação. Como argumenta Cipolla, a pessoa inteligente sabe que ela é inteligente. O bandido está plenamente consciente de ser um bandido (ainda que eu duvide que essa regra se aplique plenamente a alguns dos nossos personagens políticos plus en vue). Em outra vertente, os ingênuos – ou néscios, diríamos nós – estão plenamente convencidos de sua própria credulidade. Mas, ao contrário de todos esses personagens, o estúpido não tem a menor idéia de que ele é um estúpido. Eis justamente o que contribui para dar maior força, incidência e eficácia à sua ação devastadora.
Com efeito, o estúpido não é sequer inquietado por aquele espírito que os ingleses chamam de self-consciousness. “Com um sorriso nos lábios, como se estivesse fazendo a coisa mais natural do mundo, o estúpido acaba tranquilamente por destruir todos os nossos planos, aniquila a nossa paz, complica a nossa vida e o nosso trabalho, nos faz perder dinheiro, tempo, bom-humor, apetite, produtividade - e tudo isso sem qualquer malícia, sem remorso e sem razão. Apenas estupidamente”.
Não tenho certeza de que o brilhante esquema teórico-histórico de Cipolla se encaixa perfeitamente neste nosso país algo surrealista, mas por vezes eu também tenho a impressão de que estamos entregues a uma tribo de néscios e de estúpidos – ou talvez até a uma quadrilha de bandidos –, que nos está fazendo perder o nosso bom humor, aquela non-chalance típica dos brasileiros, que alguns traduziriam por “jeitinho”, nosso espírito tolerante e gozador, enfim, todas aquelas qualidades e más-qualidades pelas quais somos conhecidos em várias latitudes e longitudes ao longo dos séculos.
Talvez isso já existisse de modo subreptício e subterrâneo há muito tempo, mas minha impressão é a de que todas essas más-qualidades emergiram com maior ímpeto nos últimos anos, ou estarei imaginando? A rigor, o Brasil nunca teve perigos mais “hollywoodianos”, como a máfia e o complexo industrial-militar, por exemplo. A nossa contribuição genial para o progresso da estupidez humana talvez seja mesmo essa combinação perfeita de credulidade, de estupidez e banditismo que, à diferença do outro produto bruto, faz crescer continuamente a nossa Produção Interna de Bobagens.





As Leis Fundamentais da Estupidez Humana, 1 (2006) - Paulo R. de Almeida sobre Carlo M. Cipolla


As Leis Fundamentais da Estupidez Humana, 1

 Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12 abril 2006

Com esse título, o famoso historiador econômico e medievista italiano Carlo Maria Cipolla compôs, em algum momento dos anos 1980, um pequeno ensaio, humorístico-irônico, que foi transformado em peça de teatro alguns anos depois. Em 1995, eu assisti a essa peça em Paris e, absolutamente fascinado pelo espírito irreverente do texto “ceboliano”, comprei imediatamente, no próprio teatro, o livro no qual ela tinha sido baseada, nesta edição: Allegro ma non troppo: Les lois fondamentales de la stupidité humaine (Paris: Balland 1992). O livrinho continha outros ensaios da mesma verve, como este outro: “Do papel dos condimentos (e da pimenta em particular) no desenvolvimento econômico da Idade Média”, menos brilhante que aquele sobre a estupidez, mas também divertido.

Pois bem, onze anos depois, encontrando-me agora absolutamente fascinado pela quantidade de erros, equívocos e outros “desvios” (palavra neutra, de cunho humorístico-irônico) de comportamento deste nosso “governo” – que só posso atribuir, por um lado, à sua fenomenal estupidez e, por outro lado, a uma igualmente fenomenal capacidade de mentir, de cometer perjúrio, enfim, de afundar na hipocrisia e na desfaçatez –, lembrei-me desse livrinho e fui buscá-lo em minhas estantes. Para minha frustração – e que isso me sirva de lição por não arrumar a biblioteca como deveria – não o encontrei, o que me deixou bastante ressabiado. Não seja por isso, saquei do computador – inatacável para esse gênero de recuperação – as poucas notas de leitura, que transcrevo abaixo, de trechos selecionados do ensaio de Cipolla, às quais acrescento agora comentários que acredito serem o mais à propos possíveis para estes tempos impagáveis que estamos vivendo.

Caberia, em primeiro lugar, definir o que é uma pessoa estúpida. Segundo Carlo Maria Cipolla, “os seres humanos incluem-se numa das quatro categorias fundamentais: os crédulos, os inteligentes, os bandidos e os estúpidos”. Não me lembro agora se Carlo Cipolla considera estas quatro categorias exclusivas e excludentes, mas eu tenho a nítida impressão de que alguns dos nossos atuais governantes são, ao mesmo tempo, estúpidos e bandidos, ao passo que alguns dos seus eleitores são, ao mesmo tempo (ou talvez de forma subseqüente), ingênuos, isto é, crédulos, e estúpidos. Isso acontece. Tem também aquela categoria de militante que é, se ouso dizer, um “crédulo profissional”, ou seja, um ser profundamente religioso, imbuído de uma verdade que transcende a razão.
Cipolla define a pessoa estúpida da seguinte maneira: “uma pessoa estúpida é alguém que causa um dano a outra pessoa ou a um grupo de pessoas, sem que disso resulte alguma vantagem para si, ou podendo até vir a sofrer um prejuízo”. Considerando a enorme capacidade que parecem ostentar certos dirigentes de causarem problemas para si mesmos, ao tentarem atacar seus adversários, eu considero que a definição se encaixa perfeitamente no figurino. Nunca, ninguém, em 500 anos de história do Brasil, abusou tanto da faculdade de se ridicularizar a si próprio como certos comediantes profissionais que pensam que estão num picadeiro quando na verdade ocupam altos cargos políticos. Se reconhecermos, então, a extrema habilidade que eles exibem de atirarem no próprio pé, ao pretenderem fazer alguma “armação” contra um adversário político, seria preciso considerar, nesse caso, a introdução de alguma categoria de prêmio do gênero: “Prêmio (ig)nobel de autoflagelação política”.

O historiador italiano nos alerta contra o perigo de confundir uma pessoa estúpida com uma pessoa crédula ou ingênua (isto é, pessoa que causa dano a si mesma, causando benefícios a outras) ou com um bandido (pessoa que cuida dos seus interesses e causa danos aos outros). Acho que o leitor deste espaço não corre esse risco, mas isso não elimina a possibilidade de que essas duas ou três categorias se encontrem ocasionalmente (ou de forma regular) confundidas numa única e mesma pessoa. Mas não é, longe disso, a “santíssima trindade”. No Brasil, corre-se esse risco, concretamente: existem bandidos que são estúpidos, assim como existem estúpidos que são ingênuos, embora, a julgar pela maior parte dos políticos que se encaixam no molde, seja mais difícil encontrar bandidos políticos que sejam ingênuos (mas alguns são, sobretudo de certo partido).

Ele também acha que é nitidamente impossível confundir a pessoa estúpida com a inteligente (aquela que busca benefícios para si mesma e para os demais), embora eu não tenho certeza de que esse princípio se aplique igualmente ao Brasil. Aqui, como reza um velho ditado, a esperteza pode ser “tanta que cresce e engole o dono”. Pois é isso que parece ter ocorrido nesses momentosos meses que precederam o escândalo do mensalão. Os “espertos” de certos meios políticos se julgavam expertos em patifarias, inteligentes em mil maneiras de burlar a lei e de enganar os incautos e ingênuos – que seríamos todos nós – mas eles parecem ter ido longe demais. Se achavam tão inteligentes como ninguém que foram estúpidos ao ponto de chegarem a fazer acordos de “cavalheiros” (com perdão da expressão) com gente ainda mais bandida do que eles. Deu no que deu: o bandidão se julgou lesado pelos “inteligentes” e botou a boca no trombone. Santa ingenuidade...

Das cinco leis fundamentais da estupidez humana de Carlos Maria Cipolla (só cinco?), transcrevo agora apenas duas, a primeira e a última: “Sempre, e inevitavelmente, cada um de nós subestima a quantidade de indivíduos estúpidos em circulação” – o que pode ser, digo eu, um perigo para a segurança do tráfego – e “os indivíduos estúpidos são as pessoas mais perigosas que possam existir” (eu não dizia?). Sim, elas são perigosas, para si mesmas e para todos os demais, sobretudo quando imbuídas de alguma missão salvadora e transcendental, do tipo querer tudo transformar, para dizer depois que “nunca antes, na história deste país, patati-patatá...”
Como diria um desses brokers ingleses (que não me levem a mal): “nunca antes na história deste país alguém deixou de ganhar dinheiro ao apostar na estupidez humana”. Ou seja, sempre haverá, em algum lugar incerto e não sabido, alguma pessoa estúpida o suficiente para lhe permitir ganhar tranquilamente a sua aposta. Pena que essa instituição do “brokerage” – tão comum nas terras britânicas, onde se aposta até sobre a sexualidade da família real – não seja mais disseminada neste nosso país tropical, pois poderíamos ter inúmeras oportunidades para novos ganhos (que poderiam inclusive ser taxados com uma nova contribuição ou taxa para a resolução de um enorme problema social). Ou seja, seria uma grande contribuição para o aumento do PIB (não confundir com o outro PIB, este aqui é o da Produção Interna de Bobagens...).

Com sua abordagem científico-humorística, Carlo Cipolla demonstra que a distribuição da estupidez se dá ao acaso e é independente da religião, do gênero, da cor da pele, da ideologia política, enfim, ela não tem nada de cultural. Se existisse um gene da estupidez, ele seria certamente distribuído completamente por acaso, e talvez de maneira uniforme na população, com algumas particularidades. Nossos políticos, por exemplo, não são, na média, mais estúpidos que os cidadãos comuns, mas em contrapartida, eles podem ser muito mais bandidos, e de fato o são. OK, não vamos generalizar, existem muitos políticos que não são bandidos, mas acho que para ser político é preciso ter, de toda forma, uma dose de hipocrisia acima do normal...

Finalmente, termino com esta duas considerações de Carlo Maria Cipolla sobre a manutenção do nível geral de estupidez, em condições normais de pressão atmosférica e de temperatura democrática: “Num sistema democrático, as eleições gerais são um instrumento de grande eficácia para assegurar a estabilidade de estúpidos entre os poderosos”. E, aos estúpidos, “as eleições oferecem-lhes uma magnífica ocasião para prejudicar todos os outros, sem obter qualquer ganho com as suas ações”. Acho que ele tem razão, mas poderemos fazer um teste prático de suas teorias, normalmente ambientadas num cenário italiano – que tampouco pode ser classificado como ao abrigo da estupidez –, em nossa própria terra, dentro de mais alguns meses.

Sim, antes que me esqueça, prometo procurar o livrinho nas minhas estantes para aqui transcrever, num próximo ensaio, a totalidade das cinco leis fundamentais de Carlo Maria Cipolla sobre a estupidez humana, quem sabe até introduzindo mais algumas de contrabando?

(continua...)

Miseria da diplomacia ativa e altiva (2006) - Paulo Roberto de Almeida

Em 2006, quando escrevi o trabalho abaixo, eu me encontrava no mais completo ostracismo no Itamaraty. Impedido de dirigir, por um veto da alta chefia da nova administração, os estudos de mestrado do Instituto Rio Branco – para cujo cargo tinha sido convidado pelo próprio diretor do IRBr – desde o início do governo lulopetista, em 2003, eu permaneci fora de qualquer cargo na Secretaria de Estado durante TODA a duração desse regime, só vindo a ser novamente convidado para exercer funções no Itamaraty a partir do impeachment do poste do megalomaníaco (e criminoso) líder da quadrilha que assaltou o Brasil e os brasileiros entre 2003 e 2016. 
Estando fora do serviço diplomático direto, mas ainda sendo um funcionário de carreira do Serviço Exterior, eu evitei contrariar as normas diplomáticas publicando abertamente análises que contrariassem o Zeitgeist daquele momento.
Daí resulta que eu retornei a uma prática que só havia adotado durante a ditadura militar, ou seja, escrever sob noms de plume, o que fiz com gosto e liberdade, publicando vários artigos na imprensa escrita e nos meios eletrônicos sob outros nomes.
O que vai abaixo é um dos muitos exemplos da minha produção dos anos de "travessia do deserto", como eu classifico o meu longo (2003-2016) exílio interior, em paralelo a atividades acadêmicas que sempre mantive.
Tenho muitos outros, mas por enquanto vai este, que guarda relação tanto com os muitos artigos que publiquei neste meu livro de 2014: 

        Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014)

quanto com os que eu estou publicando agora, na sequência dele: 

        Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil, 2014-2018 (Curitiba: Appris, 2019)

Segue, portanto, uma das peças de meus "anos de chumbo" sob o lulopetismo diplomático.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de janeiro de 2019



Misérias da diplomacia lulopetista
como a atual política externa enfraquece o Brasil

9 de maio de 2006

Toda política externa, como de resto qualquer política pública, fundamenta-se, como parece óbvio, sobre valores e princípios. Ambos têm a ver com normas gerais, de caráter constitucional, e com o chamado “interesse nacional”, tão difícil de ser definido quanto são diversos, e por vezes divergentes, os objetivos políticos, sociais e econômicos identificados com os diferentes grupos sociais e movimentos políticos que compõem a sociedade nacional. Na prática, o cidadão bem informado sabe identificar claramente onde se encontra o interesse nacional quando confrontado a uma questão concreta, como, por exemplo, aquela relativa aos interesses nacionais respectivos do Brasil e da Bolívia em torno da exploração de gás naquele país.
Os valores e princípios sobre os quais se fundamentou, historicamente, a política externa brasileira foram sendo sedimentados ao longo de uma trajetória que se estende de meados do século XIX, passa pelo Barão do Rio Branco, no início do século XX, pela afirmação de autonomia na era da Guerra Fria e alcança um período recente, quando governo e sociedade souberam construir uma “ferramenta diplomática” adaptada às necessidades de desenvolvimento e de inserção soberana na economia mundial.
Esses valores e princípios estão sendo aberta e clandestinamente modificados e deformados pela atual diplomacia que se pretende “ativa e altiva”. Trata-se, na verdade, de diplomacia partidária e ideológica, que se distancia significativamente das principais linhas de atuação, quando não dos valores e princípios que sempre guiaram nossa política externa. Seus valores são estranhos à sociedade brasileira e seus princípios são os de um grupo sectário que pretende atrelar o país a fantasias mirabolantes há muito enterradas no grande fracasso do socialismo.
Contrariamente à propalada defesa da soberania e do interesse nacional — que a diplomacia partidária falsamente pretende assegurar —, jamais se assistiu, em qualquer época, a tão reiteradas manifestações de renúncia explícita e implícita da soberania e a tantos desvios do interesse nacional como nos três últimos anos. A renúncia de soberania começou, aliás, antes da inauguração do governo, quando o PT definiu, preliminarmente e de maneira totalmente unilateral, que determinados países – que não é preciso mencionar quais são – seriam os novos “parceiros estratégicos” do Brasil. Independentemente de uma suposta ou real comunidade de interesses entre os objetivos permanentes do Brasil e os desses países, escolhidos em função do viés ideológico do PT, jamais se assistiu, nos anais da diplomacia mundial, um governo pretensamente cioso da soberania nacional declarar, de forma absolutamente gratuita, que tal ou qual país é seu “aliado” em causas mundiais ou regionais. Isso é totalmente estranho a nossa tradição de relações exteriores e certamente bizarro em termos de práticas diplomáticas internacionais. Trata-se de uma “renúncia preventiva de soberania”.
Essa renúncia de soberania manifestou-se concretamente, depois, em vários gestos politicamente motivados e ideologicamente defendidos, adotados pela diplomacia petista em total descompasso com os interesses nacionais e na linha oposta do que foi sugerido ou defendido por empresários e exportadores. Mencione-se o reconhecimento da China enquanto “economia de mercado”, gesto impensado e ingênuo, assim como o tratamento leniente, quando não contrário aos interesses das nossas indústrias, concedido às salvaguardas ilegais, arbitrárias e unilaterais, adotadas pela Argentina contra produtos brasileiros de exportação. Em nenhum momento o governo defendeu de modo claro e explícito os interesses dos nossos exportadores, atacados e injustamente contidos em sua competitividade comercial pelas ações protecionistas do governo argentino, a mando de indústrias incapazes de conviver com as regras estabelecidas pelo Mercosul.
A diplomacia partidária do PT também se lançou numa furiosa campanha contra a Alca, sob a alegação de que esse projeto de zona de livre-comércio hemisférico colocava em risco o Mercosul e a própria economia brasileira, na verdade rendendo-se às posições totalmente ideológicas de grupelhos antiglobalizadores que passaram a ditar as orientações de nossa política comercial. Nunca se viu, nos anais de nossa diplomacia e em anos e anos de negociações comerciais multilaterais, delegações de técnicos e peritos na matéria serem constrangidas de forma tão canhestra e intimidatória por “delegados” de movimentos como o MST, a Via Camponesa, a Rede de Integração dos Povos e outros grupos de militantes incorporados a essas delegações. Tais grupos, assim como setores da própria diplomacia e mesmo do governo, mostraram o seu regojizo quando se reconheceu que, de fato, eles tinham conseguido “implodir” a Alca.
As consequências não tardaram: os Estados Unidos passaram a assinar acordos com quase todos os países da América Latina, não apenas conquistando posições que nossos negociadores foram incapazes de assegurar, como ameaçando os mercados dos exportadores brasileiros em todos esses países. Essa atitude ideológica é totalmente contrária aos interesses nacionais brasileiros e corre o risco de custar caro aos nossos industriais e exportadores.
Uma obsessão política mal orientada e mal inspirada dos responsáveis pela nossa diplomacia também subordinou interesses concretos do nosso país à obtenção pouco realista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, levando-nos a comprometer recursos que não tínhamos com a “compra”— ilusória como depois se revelou — do apoio de países em desenvolvimento. Fomos também levados a alinhar de forma ingênua nossas posições e demandas com países que, por motivos diversos, enfrentavam obstáculos a esse objetivo em suas próprias regiões, como o Japão e Índia, na Ásia e a Alemanha, na Europa. Essa obsessão também precipitou um engajamento mal concebido na aventura haitiana: trata-se de uma tragédia que pouco tem a ver com as tradicionais missões de paz da ONU e está bem mais incluída na categoria da “construção de nações” ou “recuperação de Estados falidos”, objetivos que certamente ultrapassam nossa modesta capacitação financeira, militar e técnica.
Outra obsessão mal pensada engajou novamente recursos humanos e materiais no estabelecimento de um ilusório programa de “fome zero universal” que duplica esforços já estabelecidos no âmbito de diversos órgãos da ONU – FAO, PNUD, Programa Mundial de Alimentos, e muitos outros – e que redundou, pateticamente, na introdução de uma nova taxa sobre passagens aéreas internacionais que seremos dos poucos, junto com a França, a aplicar. O objetivo do PT, originalmente, era contudo bem pior: o estabelecimento de uma taxa geral sobre as transações financeiras internacionais cujo único resultado seria o de encarecer um pouco mais a transferência de recursos para o próprio Brasil. Raramente se viu tanta cegueira e irracionalidade.
No plano regional, os equívocos e gestos mal pensados foram tantos e tão repetidos que desfiá-los por inteiro significaria um rol imenso de bizarrices que faria corar de vergonha o Barão do Rio Branco, se vivo estivesse. Começa pela proclamação absolutamente indevida e anti-diplomática de uma pretendida “liderança” brasileira na região, como se os países vizinhos estivessem esperando essa autopromoção do Brasil a “líder natural” para saudá-la com entusiasmo e entronizá-la no altar de uma preeminência regional “inconteste”. Nunca se viu tanta inconsciência quanto nesse tipo de pretensão, aliás desdobrada em atitudes de interferência nos assuntos internos de outros países, com declarações pela imprensa dos responsáveis da diplomacia petista por ocasião de crises políticas internas nesses países.
Acrescente-se a isso manifestações de preferências políticas em campanhas eleitorais, obviamente em favor de candidatos ditos “progressistas”, que partilham das mesmas miopias ideológicas que o PT, um típico partido esquerdista latino-americano, com sua quota tradicional, e totalmente ultrapassada, de antiamericanismo e de anti-capitalismo. Não é preciso mencionar a vergonhosa atuação presidencial e diplomática no caso da “nacionalização” dos recursos energéticos da Bolívia, quando a submissão inaceitável de nossos dirigentes a interesses econômicos estrangeiros – para não mencionar a inabilidade em face das pretensões de um líder histriônico como Chávez – deixam de pertencer ao terreno do ridículo para beirar os limites da traição à pátria.
Acrescente-se que, sob a diplomacia partidária, o objetivo da integração, em primeiro lugar no Mercosul, foi convertido de meio de modernização produtiva e de inserção competitiva na economia internacional em objetivo exclusivo e obsessivo – como tantos outros, aliás –, o que contaminou a agenda que vinha sendo pacientemente construída desde os anos 1980. Em nome desse objetivo finalístico mal definido e muito mal implementado, todas as concessões foram feitas. Invocou-se, como pretexto, uma tão equivocada quanto canhestra “diplomacia da generosidade”, que recomendava aos nossos importadores comprar produtos mais caros na região, apenas para ajudar os vizinhos, em lugar de contemplar o interesse primário dos nossos consumidores.
São tantos os gestos infantis, tão repetidas as iniciativas equivocadas, as ações politicamente motivadas e ideologicamente orientadas, que a diplomacia “ativa e altiva” do governo petista merece ser rebatizada de ingênua e desastrosa.
Reverter os efeitos dessa diplomacia partidária, que também deixa suas marcas no próprio Itamaraty – com exemplos tão bizarros como o de uma “escola de reeducação de diplomatas” funcionando na Secretaria-Geral –, não será tarefa fácil, pois os equívocos já atingiram o prestígio da diplomacia brasileira no exterior.