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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 22 de setembro de 2019

Questões sobre relações econômicas internacionais - Paulo Roberto de Almeida


Questões de relações internacionais: palestra na Univali

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: responder a perguntas feitas na Univali; finalidade: atender a dúvidas]
  
No dia 19/09, aproveitando uma viagem que fiz a Itajaí, para um curso de mestrado sobre o Direito das migrações transnacionais da Univali, em conjunto com a Università degli Studi di Perugia, fui convidado a fazer uma palestra para alunos de graduação em Relações Internacionais (e alguns outros de outros cursos também), em torno do tema que eu mesmo indiquei: “Desconstruindo Bretton Woods: a fragmentação do multilateralismo econômico pelo novo nacionalismo antiglobalista”, cujo texto-base foi disponibilizado em meu blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/09/desconstruindo-bretton-woods.html). Na sessão de perguntas e respostas, recebi, como solicitado ao início, um conjunto de perguntas, que não puderam ser respondidas completamente, razão pela qual elaboro, nos parágrafos seguintes, temas genéricos e minhas respectivas respostas, sem identificação individual dos demandantes.

1) Sobre base americana em território brasileiro e a questão da soberania nacional
Essa proposta, absolutamente sem sentido, foi formulada no próprio dia da posse do novo presidente. A ideia foi defendida pelo novo chanceler, Ernesto Araújo, na presença do Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, e até considerada pelo próprio presidente, mas imediatamente descartada pelo ministro da Defesa e outros militares associados ao governo: general Augusto Heleno, chefe do GSI, general Villas-Boas, general Santos Cruz, ainda na Presidência, e outros. Não há a mínima possibilidade de que uma proposta estapafúrdia como essa seja concretizada, mas o fato de ter sido considerada é revelador do grau de submissão aos Estados Unidos que vem sendo exibido por certos personagens do governo Bolsonaro, em especial seu filho mais novo, já cogitado como embaixador em Washington.

2) Sobre perda de soberania nacional em decorrência de bloco regional de integração
Todo e qualquer tratado ou ato internacional que envolva compromissos de adoção de determinadas políticas ou ações conjuntas, nos planos bilateral, regional ou multilateral, sempre envolve alguma perda de soberania, no sentido em que o país passa a se abster de atuar de forma unilateral no campo coberto por esse ato internacional, ou adotar políticas e medidas que contrariem o escopo ou os objetivos do novo compromisso externo. O fato é que cada governo decide soberanamente sobre o escopo e os objetivos desse compromisso, e, tradicionalmente, submete essas novas obrigações à aprovação do parlamento, segundo os ritos constitucionais em vigor. Em diversos casos, o poder legislativo brasileiro recusou aprovação, como já ocorreu nos casos do acordo de salvaguardas tecnológicas feito em 2000 com os Estados Unidos, ou os acordos bilaterais sobre proteção e promoção de investimentos estrangeiros, nenhum deles ratificado pelo Brasil. Uma vez aceito, porém, o país disporá de menos liberdade em suas políticas domésticas, em contrapartida a benefícios que se espera auferir com a implementação desse acordo.
No caso dos processos de integração, a renúncia de soberania é ainda maior, uma vez que envolve, por exemplo, adoção de uma política comercial comum – como existe no caso das uniões aduaneiras, a exemplo do Mercosul – ou até de uma moeda comum, que é o caso do euro na União Europeia. Os países renunciam a ter políticas próprias, individuais, embora sempre possam influenciar as políticas comuns, no processo de adoção de medidas concretas.
Em alguns casos, o aprofundamento do processo de integração pode confrontar a visão de novos governantes, ou os interesses da população – bem informada ou não – e se pode cogitar do abandono do bloco, como ocorre atualmente no caso do Brexit britânico. Em princípio, todos os tratados preveem dispositivos de denúncia, renúncia ou abandono dos compromissos assumidos anteriormente, com diferentes esquemas de saída. Ou seja, o país decide retomar sua soberania nos terrenos cobertos pelo acordo de integração, mas cabe ao parlamento decidir os aspectos positivos e negativos dessa decisão.

3) Sobre o alinhamento do Brasil à política dos EUA e consequências para outros países
Em muito raras ocasiões, o Brasil alinhou sua política externa à dos Estados Unidos: isso ocorreu no imediato seguimento da Segunda Guerra Mundial, no governo Dutra, ou por ocasião do golpe militar de 1964, no contexto da Guerra Fria e de supostas ameaças de “comunização” do Brasil. Mas, esses episódios foram rapidamente superados e o Brasil voltou a adotar sua tradicional postura de autonomia na formulação e implementação de uma política externa estritamente alinhada com os interesses nacionais, o que significou que, em diversas ocasiões, o governo brasileiro se chocou o confrontou demandas dos EUA – ou de qualquer outro país – em torno de determinadas questões do relacionamento bilateral ou incluídas na agenda multilateral.
Uma outra questão é o alinhamento genérico do Brasil com posturas de países em desenvolvimento, uma característica da organização dos debates na ONU em torno dos grandes blocos existentes: países desenvolvidos, bloco socialista, países em desenvolvimento e a China (tradicionalmente independente de qualquer bloco, mas sempre se dizendo como pertencente ao grupo dos países em desenvolvimento). O Brasil sempre foi um dos líderes do G77, como era conhecido o bloco dos países em desenvolvimento, mas também buscava guiar as ações desse grupo numa linha que favorecesse seus interesses nacionais. Em algumas ocasiões se colocou a adesão à OCDE como conflitante com essa postura, o que não parece ser mais o caso, inclusive porque o sistema internacional evoluiu para arranjos e coalizões de arquitetura variada; o grupo socialista, por exemplo, desapareceu completamente. Certos temas, como meio ambiente, ou agricultura, por exemplo, cobrem países pertencentes a grupos muito diversos.
No relacionamento bilateral com os EUA o Brasil pode, e deve, buscar acordos comerciais ou quaisquer outros tipos de arranjos que ampliem o leque das interações e a possibilidade de integração entre as duas economias, mas isso não pode passar por qualquer tipo de subordinação política aos interesses comerciais americanos. Existem muito mais complementaridade entre o Brasil e a China, por exemplo, do que com os EUA, que são nossos concorrentes em vastas áreas das exportações de grãos, carnes e outros produtos.

4) Sobre a China e suas vantagens competitivas no sistema de inovação
A China é um exemplo extremamente interessante na história econômica mundial, como um dos processos mais exitosos de desenvolvimento tecnológico, uma vez que o país tinha falhado, mais de dois séculos atrás, a empreender o mesmo processo de industrialização que marcou a Europa ocidental, os Estados Unidos e outros países da então periferia, como o Japão. Em consequência ela se atrasou, e foi derrotada em guerras e invasões estrangeiras. O comunismo ainda atrasou mais ainda o país, ao cercear a formidável energia produtiva de seu povo, que foi um dos mais avançados séculos atrás, em praticamente todos os campos do conhecimento e da engenhosidade humana.
Nas últimas quatro décadas, a China, mesmo com um Estado ainda excessivamente intervencionista, empreendeu um dos mais vigorosos e exitosos processos de inovação e de modernização, em todos os campos já abertos pela anterior hegemonia ocidental nos campos do conhecimento científico e da tecnologia aplicada em serviços e produção de bens. Não há limites às possibilidades de desenvolvimento da China.

5) Sobre fragmentação do multilateralismo como resposta a crises estruturais do mundo
Respondo imediatamente que não. A fragmentação do multilateralismo NÃO se deve a supostas “crises estruturais em cadeia de um sistema econômico globalizado”. Quem deu início, de forma mais contundente, ao desmantelamento do sistema multilateral de comércio foi o presidente dos EUA, Donald Trump, numa conjuntura em que a economia do país crescia de maneira sustentada, com os menores índices de desemprego em décadas. Por razões puramente ideológicas, ou de insanidade econômica, ele começou reclamando de um fantasmagórico “globalismo” – que é um conceito difuso, sem muita consistência – para em seguida aplicar golpes e mais golpes nas interações econômicas externas dos EUA. Começou denunciando o TPP, retirando os EUA desse enorme acordo de liberalização comercial – que, no entanto, foi assinado, com os onze países restantes –, seguido do abandono do NAFTA, o acordo de livre comércio com o Canadá e o México, apenas para negociar dois novos acordos separados com esses países. Reclamou do desequilíbrio bilateral comercial com a China e deu início a uma série ininterrupta de sobretaxas ilegais e arbitrárias contra exportações de produtos chineses, e demonstrou mais de uma vez ser completamente ignorante, e arbitrário, em matéria de política comercial. Atingiu inclusive parceiros comerciais tradicionais, ao introduzir restrições a comércio de aço e alumínio e muitos outros produtos. Ou seja, se trata de um desmantelador serial de acordos econômicos e um enorme retrocesso para o sistema multilateral de comércio como um todo.

6) Sobre uma suposta “financeirização” da economia mundial e medidas contra isso
Essa alegação de uma “financeirização” da economia mundial é uma “não-questão”, uma “non issue”, como dizem os americanos, pois se existe um aumento das transações financeiras na economia mundial, isso não é imposto por ninguém em particular, ou por algum Estado ou governo, ou como resultado de alguma “conspiração” de especuladores de Wall Street. Tudo isso é uma imensa bobagem. Se existe um crescimento do setor financeiro no PIB dos países, e nas transações internacionais, isso significa simplesmente que o mundo está submergido em dinheiro, tanto como resultado do crescimento normal da riqueza criada por agentes econômicos e disponível livremente para investimento produtivo ou especulativo por particulares e empresas. Essa coisa de “especulativo”, no lugar de “rentáveis”, também é uma bobagem, pois as pessoas investem naquilo que dá mais lucro, ou retorno, e isso, sim, depende de condições econômicas ambientais colocadas pela regulação dos países. Ocorre que os governos também cometem equívocos, seja emitindo dinheiro demais para cobrir os seus gastos – e criando, assim, inflação, que é uma forma de “financeirização” –, seja, emitindo muitos títulos da dívida pública, com os mesmos objetivos, a juros atraentes, o que desvia justamente investimentos produtivos em favor de títulos financeiros do governo.

7) Sobre a possibilidade de uma “pax chinesa”, ou seja, sua futura hegemonia global
Certamente a China continuará sua irresistível ascensão, tanto em termos econômicos e financeiros, quanto no plano militar. Mas não vejo possibilidade de que ela “imponha” sua hegemonia sobre o mundo no futuro previsível, por diversas razões. Ainda que o peso relativo da economia “norte-atlântica” – Europa ocidental e América do Norte – diminua em breve tempo, em favor de uma gigantesca economia do Pacífico, cabe considerar que essa economia também integra Japão, Estados Unidos, Canadá e outros países engajados nas cadeias de valor dessa região. Por outro lado, a diminuição relativa dos ocidentais, e um crescente predomínio da China em todos os setores, não diminuirá a capacidade de pesquisa científica e de inovação tecnológica do Ocidente, inclusive no terreno militar. De toda forma, mesmo uma ascensão irresistível e “prepotente” da China não se coloca contra o universo da ordem econômica de Bretton Woods, pois a China se integrou totalmente à lógica das economias de mercado, ainda que mantenha muitas empresas estatais, gigantescas por sinal, e continue sendo um sistema de governança autoritário e centralizado.

8) Sobre o agronegócio e o retorno ao protecionismo setorial e ao mercantilismo
A maior parte das commodities agrícolas, e as minerais, são “administradas” pelos mercados, ou seja, ninguém controla absolutamente as variações de preços, que são largamente determinados pelas velhas leis da oferta e da procura. Mas, isso não impede que nos alimentos processados sejam introduzidos novos critérios de admissibilidade, como vem ocorrendo, por exemplo, com OGMs, e aplicação do protecionista “princípio da precaução”. Cada vez mais normas técnicas, regulação sanitária e diferentes tipos de certificação – algumas até respondendo a critérios “politicamente corretos” – serão colocadas no cenário do comércio internacional. Por isso mesmo o Brasil deve não apenas aumentar a sua competitividade primária, ou seja, economia de escala e upgrade tecnológico ao nível dos insumos produtivos, mas deve também se preocupar muito, cada vez mais, com NORMAS, sejam elas harmonizadoras, sejam elas indisfarçavelmente protecionistas.

9) Sobre o globalismo e o antiglobalismo
Não tenho nenhuma hesitação em dizer que essa conversa é um besteirol imenso, pois é evidente que o mundo caminha para graus crescentes de globalização e, portanto, a isso que os antiglobalistas paranoicos classificam como “perda de soberania” dos Estados nacionais por efeito do “globalismo”. Como diriam os ingleses: so what? E daí? Em lugar de lutar contra moinhos de vento, é evidente que os países, os governos devem se preocupar, antes de mais nada, em tornar a globalização uma alavanca de oportunidade para todos os seus cidadãos produtivos: qualquer inovador solitário tem condições atualmente de alcançar o mundo inteiro, sendo capacitado nas tecnologias apropriadas e tendo acesso facilitado às redes mundiais. Se existe perda de soberania, eu acho isso ótimo, pois significa que algum governo introvertido não terá condições de reverter as tendências anteriores e fechar o país em colusão com empresários protecionistas. Sou um globalizador integral e completo.

10) Sistemas de compensação no pagamento das trocas comerciais: o socialismo
O ideal perfeito seria uma abertura total de todos os países, num sistema de livre comércio universal, em caráter inclusive unilateral – ou seja, dispensando completamente quaisquer acordos negociados –, o que obviamente não existe e não existirá antes de muito tempo, se algum dia existir. O “second best” é então um sistema multilateral no qual todos se relacionam com todos os demais, num sistema de pagamentos aberto, ou seja, sem limitações de inconversibilidade dos meios de pagamento. No século XIX, a libra exerceu o papel de liquidez universal, e até as primeiras décadas do século XX. Depois o dólar assumiu esse papel, ainda que outras moedas possam ocupar alguns espaços, mas em caráter regional.
Nas épocas de crise – como nos anos 1930, e no seguimento imediato da Segunda Guerra Mundial – persistiram sistemas de escambo (troca de produtos) e de compensações, ou seja, liquidação apenas do saldo bilateral, por uma moeda comum. Em tempos normais, os sistemas devem ser abertos e intercambiáveis, com um mínimo de previsibilidade (mas as volatilidades podem ser compensadas por seguros, hedge, etc.). Como o socialismo sempre foi um sistema fechado, planejado, dirigista, ele dependia de um “equilíbrio” que precisava ser imposto de forma artificial, sem referência a preços de mercado. Na época da União Soviética, existia uma espécie de “mercado comum”, o Comecon, que funcionava à base de “rublos conversíveis”, mas apenas entre os próprios países socialistas, que tinham de aceitar uma paridade estabelecida autoritariamente pelas autoridades soviéticas e que jamais dependeu das realidades do mercado. Era um sistema totalmente ineficiente, como o próprio socialismo era uma incoerência total e absoluta, e que implodiu sem qualquer interferência do capitalismo, que até financiou os países socialistas com créditos durante muito tempo.
Nenhum sistema de compensação que seja planejado por burocratas pode funcionar adequadamente, pois as dinâmicas econômicas, os imponderáveis da vida normal, não permitem manter equilíbrios de forma artificial. Na verdade, a volatilidade é um traço normal de todos os sistemas econômicos, e cabe, portanto, ser flexível o bastante para acomodar choques e mudanças nas condições externas. Portanto, livre mercado e moeda absolutamente conversível é o ideal para o avanço dos todos os países, de todos os indivíduos do mundo.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/09/2019

sábado, 21 de setembro de 2019

Demetrio Magnoli: um novo julgamento para Lula (FSP)

Lula livre
DEMÉTRIO MAGNOLI
Folha de S. Paulo, 21/09/2019

O STF examinará, logo mais, as condenações impostas a Lula. Hoje sabemos, graças à Vaza Jato, que os processos tinham cartas marcadas. O conluio entre Estado-julgador e Estado-acusador violou as leis que regulam o funcionamento do sistema de Justiça. A corte suprema tem o dever de preservar o Estado de Direito, declarando a nulidade dos julgamentos e colocando o ex-presidente em liberdade. Lula livre. Evito adicionar o clássico ponto de exclamação porque, sob a minha ótica, Lula é politicamente responsável pela orgia de corrupção que se desenrolou na Petrobras.
A corrupção lulopetista nasce de uma tese política elaborada, em versões paralelas, por José Dirceu e Luiz Gushiken. O PT, no poder, deveria modernizar o capitalismo brasileiro, encampando o programa que uma “burguesia nacional” submissa ao “imperialismo” recusava-se a conduzir. Lula converteu a tese em estratégia, articulando a aliança entre empresas estatais, fundos de pensão e setores do alto empresariado privado que reativaria nosso capitalismo de Estado. Numa segunda volta do parafuso, parte da renda gerada pelo mecanismo financiaria o projeto de poder, assegurando ao lulopetismo uma maioria parlamentar estável e a hegemonia perene na arena eleitoral. O mecanismo corrupto provocou uma erosão nos alicerces da democracia. Lula e o PT devem ser julgados por isso, mas no tribunal certo, que é o das urnas. Não creio em bruxas. Do Planalto, Lula avalizou pessoalmente a colonização de diretorias da Petrobras por agentes do PT, do PMDB e do PP que aplicaram as regras do jogo da corrupção, distribuindo contratos ao cartel de empreiteiras e cobrando propinas destinadas tanto a seus amos políticos quanto a formar patrimônios próprios.
A promiscuidade entre o presidente e as empreiteiras estendeu-se para além das fronteiras nacionais, gerando contratos corruptos, financiados pelo BNDES, com governantes amigos na América Latina e na África. Lula beneficiou-se diretamente do mecanismo, por meio de palestras no exterior patrocinadas pelas empreiteiras. Nelas, um ex-presidente que detinha a palavra final no governo da sucessora traficava influência, trocando seus bons ofícios por remunerações milionárias. Segundo minha convicção, o tribunal dos eleitores não cobre toda a responsabilidade de Lula. Acho que ele deve responder perante a lei por uma cadeia de atos de corrupção que lhe propiciaram benefícios políticos e materiais. Mas, felizmente, na esfera jurídica, o que eu penso —e o que você, leitor, pensa— não tem valor nenhum. No Estado de Direito democrático, juízes independentes ignoram o “clamor popular”, escrevendo sentenças embasadas na lei e informadas por um processo delimitado por formalidades que protegem os direitos do réu. Fora disso, ingressamos no mundo da Justiça politizada, que é o de Putin, Erdogan e Maduro.
​​Sergio Moro agiu como juiz de instrução italiano, uma espécie de coordenador dos procuradores —mas no Brasil, onde inexiste essa figura, não na Itália, onde um juiz diferente profere a sentença. 


Batman e Robin
Moro e Dallagnol, comparsas, esculpiram juntos cada passo do processo, nos tabuleiros judicial e midiático. No Partido dos Procuradores, milita também a juíza Gabriela Hardt, que copiou a sentença de Moro para fabricar a do sítio —e que, num trecho original de sua peça plagiária, trata José Aldemário Pinheiro e Leo Pinheiro, nome e apelido da testemunha-chave, como pessoas distintas. Batman, Robin e cia merecem sentar no banco dos réus sob a acusação de fraudar o sistema de Justiça. Lula livre, não por ele ou pelo PT, mas em defesa de um precioso bem público, de todos nós, ao qual tantos brasileiros pobres precisam ter acesso: o Estado de Direito. Que o ex-presidente seja processado novamente, segundo os ritos legais, e julgado por magistrados sem partido.

A quadratura do círculo, segundo Rubens Ricupero

Que o governo sofra de transtorno bipolar a gente já sabia, mas acredito que esses "representantes" atuais de uma diplomacia olavo-bolsonarista não tenham qualquer importância para a agenda liberal da equipe econômica. Eles só atrapalham no ruído que fazem contra o globalismo, mas na maior parte das vezes se trata de pura cacofonia e histeria inconsequente.
Paulo Roberto de Almeida

Hostilidade ao 'globalismo' contradiz projeto econômico do governo

Rubens Ricupero

Neste artigo, me esforçarei, sobretudo, em examinar as interrelações entre a política externa e o projeto econômico do governo Bolsonaro, dando ênfase às iniciativas em matéria de comércio internacional, investimentos e economia.
O pano de fundo é a contradição entre uma política externa hostil ao "globalismo", e um difuso projeto econômico ultraliberal voltado à plena integração da economia brasileira ao espaço globalizado de livre circulação de bens, serviços, fluxos financeiros e investimentos.
A condição prévia da qual depende o êxito dessa integração é evidentemente a continuação da globalização, isto é, que não haja retrocesso importante na tendência à unificação e liberalização dos mercados em escala planetária. Uma característica essencial da globalização consiste na imposição aos países de padrões globais que limitam o espaço das soberanias nacionais, justamente aquilo que o atual chanceler denuncia como "globalismo".
Uma política externa soberanista, de perspectiva estritamente nacional, de hostilidade ao "globalismo", convive mal ou não convive com o cosmopolitismo da abordagem econômica ultraliberal. Como diz a expressão francesa, são coisas que hurlent de se trouver ensemble, coisas que "uivam por se encontrarem juntas", em tradução literal.
Modelo confessado do governo Bolsonaro, o governo Trump não padece da mesma inconsistência. Sua essência resume-se na frase "America First", os Estados Unidos em primeiro lugar. Pondo de lado as pretensões idealistas de governos anteriores, configura o retorno sem rebuços aos tempos de predomínio absoluto dos interesses nacionais das potências dominantes no sistema mundial.
Trump não se preocupa o mínimo com a globalização, pois julga, com razão ou sem ela, que o fenômeno favoreceu a China e outros países em detrimento dos Estados Unidos. Nem liga, ao contrário de seu antigo conselheiro, o sinistro Steve Bannon, às supostas ameaças aos valores da civilização judaico-cristã. Importa-se exclusivamente com o interesse nacional dos Estados Unidos, o qual, para megalomaníaco como ele, confunde-se provavelmente com o próprio interesse pessoal.
A fim de promover esses interesses, conta com o gigantesco poderio econômico e militar americano. Confia apenas nos meios unilaterais do poder duro: tarifas impostas ilegalmente, sem consulta à Organização Mundial de Comércio (OMC), sanções econômicas sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, ameaças de uso da força para aniquilar países, felizmente até agora mais retóricas que reais.
Realista no sentido mais imediato do termo, está pronto a desestabilizar a economia mundial, a fazer retroceder a globalização, a fim de trazer empregos de volta aos Estados que o elegeram ou de beneficiar seus interesses político-eleitorais.
A política de Trump, além de apresentar perfeita lógica interna no seu nacionalismo, soberanismo, antiglobalismo, dispõe dos meios de que necessita. Se vai ou não produzir os efeitos esperados, é outra história.
Em contraste, o governo Bolsonaro não apresenta coerência interna entre os elementos conflitantes da diplomacia antiglobalista e do projeto ultraliberal, nem desfruta dos meios de poder para sustentar sua política.
A inconsequência começa pela adesão externa a um governo que deixa claro perseguir apenas o próprio interesse, aconselhando os demais a agirem da mesma forma. Em vez de seguir o conselho, o governo Bolsonaro prefere servir não aos interesses brasileiros, mas aos interesses de um país estrangeiro.
Uma das incoerências do ultraliberalismo da política econômica do ministro Guedes está no apoio ao governo Trump, que representa a maior ameaça à continuidade da globalização, condição do sucesso da estratégia de abertura brasileira.
É o que se vê com clareza na atitude de adotar de forma acrítica a agenda internacional do governo Trump, cujos elementos não só não coincidem, na maioria dos casos também contrariam frontalmente os interesses brasileiros. O primeiro dos componentes dessa agenda, a contenção da China, pode até ser compreendida do ponto de vista de uma potência temerosa de perder sua hegemonia para o rival.
Que vantagem, porém, poderia advir para o Brasil de hostilizar o país que nos últimos dez anos tem sustentado nosso balanço de pagamentos graças aos sucessivos saldos gerados na balança comercial pela exportação de commodities?
A mesma pergunta pode ser repetida em relação aos demais pontos da agenda de segurança dos EUA. Que interesse estratégico teríamos em antagonizar a Rússia, parceira nos BRICS, relevante mercado para nossos produtos, ao Irã, um dos maiores compradores do milho e das proteínas brasileiras?
O que ganhamos em nos alinhar com Israel e EUA nas votações no Conselho de Direitos Humanos da ONU contra os palestinos ou na questão de Jerusalém, contrariando os árabes, grandes importadores de carne de frango e de proteínas do Brasil?
Em que a ameaça de abandonar o Acordo do Clima de Paris serve aos objetivos da política ambiental nacional, que tem tudo a ganhar com os mecanismos financeiros previstos para apoiar a preservação das florestas tropicais, as boas práticas em cultivos como o cacau, o café, o manejo florestal?
Nos momentos do chamado alinhamento automático com a política exterior norte-americana, nos governos dos marechais Dutra ou Castelo Branco, vivia-se o auge da Guerra Fria. Para os setores dirigentes brasileiros, a obsessão na luta contra o que se considerava a ameaça mortal da subversão do comunismo interno coincidia perfeitamente com o combate liderado por Washington no plano internacional contra Moscou, visto como origem da subversão interior.
Por mais equivocada que tenha sido essa percepção, ela dominava os espíritos daquele tempo. Hoje, não existe nem sombra de coincidência entre a agenda internacional dos EUA e os interesses brasileiros, internos ou externos.
Não obstante, as expressões de adesão a interesses estritamente trumpianos chega a gerar escândalos chocantes, como a declaração de apoio à construção do muro na fronteira com o México, a expressão de vergonha em relação aos imigrantes brasileiros ilegais, à retirada do Pacto Global sobre Migrações, todos casos nos quais o interesse do Brasil, com milhões de cidadãos vivendo no exterior, aconselhava exatamente o contrário.
Em muitos desses episódios, tem havido mudanças moderadoras nas posições apressadamente anunciadas. Um dos sinais da improvisação, superficialidade e falta de rumo da política externa reside mesmo na frequência com que o governo ziguezagueia entre orientações diferentes.
Não se sabe até que ponto as mudanças são para valer ou estão sujeitas a retrocessos. De qualquer forma, nas modificações talvez mais duráveis, como a do relacionamento com a China, a volta atrás expressa menos uma evolução autêntica de convicções como a fraqueza de meios para sustentar uma diplomacia agressiva e extremista de alto custo em termos de perdas potenciais de mercados e investimentos.
Na medida em que se mobilizam os setores exportadores ameaçados pelas perdas nos mercados da China, do Irã, dos árabes, o governo é obrigado a recuar pois não tem como compensar tais perdas. Nem consegue convencer a opinião pública de que suas escolhas são ditadas por argumentos racionais e não, como de fato ocorre, pela ideologia irracional da "lunatic fringe", a franja lunática de ideólogos pós-fascistas misturados com iluminados, astrólogos, apocalípticos e malucos de todo o gênero.
A consequência disso tudo é que a política externa está criando para o projeto econômico um risco real de deterioração da balança comercial e do balanço de pagamentos, um dos raríssimos setores que ainda se salvavam numa economia em crise. A ameaça acontece no pior momento, quando a conjuntura internacional acumula sinais de desaceleração, até de possível recessão, o comércio mundial se contrai, os preços das commodities caem, a Argentina, nosso principal mercado de manufaturados, mergulha em profunda crise e o saldo comercial diminui em relação a 2018.
A agressão aos mercados externos, que vinha se produzindo de maneira regular e constante desde o início do governo, saltou para patamar alarmante nas últimas semanas com a previsível explosão da crise das queimadas na Amazônia. Tendo subestimado a intensidade da reação internacional, o governo esboçou mudanças pouco convincentes no discurso uma vez desencadeada a crise.
Adotou, como se faz habitualmente em instantes de emergência, ações espetaculares como o envio de forças militares não treinadas para combater incêndios, esperando que o fim da estação seca e a passagem do tempo amainem a situação. Contudo, o dano, provavelmente irreparável, já foi feito. A primeira vítima é o acordo dito de livre comércio que custou 20 anos de negociação entre o Mercosul e a União Europeia.
Ninguém vai assumir o ônus de anunciar a morte oficial do acordo. O mais plausível é que ele permaneça num estágio de profunda hibernação, congelado por período indefinido. Até que alguma incerta evolução positiva na postura do governo brasileiro crie condições para permitir sua eventual submissão ao Parlamento Europeu e aos parlamentos dos países membros da União Europeia para aprovação.
Adicionalmente à indignação coletiva causada pela destruição da Amazônia no continente onde a consciência ambiental se encontra mais avançada e organizada em partidos fortes, deve-se levar em conta o efeito perdurável do estúpido conflito criado com a Françaatingida na própria figura do presidente Macron. As agressões ignóbeisao presidente francês e à sua esposa, personalidade unanimemente admirada na Europa, continuaram até as últimas semanas em atos de membros do governo que só se podem qualificar de cafajestismo.
É pouco provável que o acordo entre o Mercosul e a EFTA (European Free Trade Association) escape ao mesmo destino, após as declarações da primeira-ministra da Noruega e ao anúncio de que vários movimentos na Suíça darão início à coleta de assinaturas para a convocação de uma consulta popular contra a ratificação do convênio.
Iniciativas de boicote de produtos brasileiros vêm sendo tomadas por supermercados, grupos financeiros declaram ter renunciado à aquisição de títulos do país, fundos de pensão reexaminam seus investimentos no Brasil, inúmeras empresas importadoras do exterior comunicam à Associação Brasileira de Curtumes e Couros a suspensão de compras de couro nacional.
Ainda que essas ações não se disseminem e redundem em boicote generalizado, a antidiplomacia do governo Bolsonaro está perto de realizar a proeza de converter o Brasil num pária da comunidade internacional, ao lado da Venezuela de Maduro e das Filipinas de Rodrigo Duterte, ultimamente ausente do noticiário internacional.
Os integrantes liberais da equipe governamental, que sonhavam com uma abertura comercial que expandisse os mercados brasileiros, terão agora de correr atrás do prejuízo, gastando recursos e energia somente para limitar danos. Seria uma ilusão pensar que as perdas no mercado europeu possam ser compensadas nos Estados Unidos graças à benevolência do governo Trump.
Em primeiro lugar, porque os produtos do agronegócio exportados à UE – complexo soja, milho, carne de frango, carne bovina – constituem justamente os itens nos quais os norte-americanos são os principais concorrentes brasileiros no mercado internacional.
Em segundo lugar, porque os Democratas, que já dominam a Casa de Representantes, seguem a orientação de impor cláusulas de ordem ambiental e trabalhista cada vez mais estritas a todos acordos comerciais. Foi em decorrência dessa política que o governo Trump viu-se forçado, na recente renegociação do acordo de livre comércio com o México, a reforçar tais capítulos. Mesmo assim, a Câmara ameaça não aprovar o acordo, até hoje não submetido à aprovação legislativa.
O desastre da Amazônia e a guerra de insultos declarada à França não deixarão também de produzir impacto negativo em retardar ainda mais ou inviabilizar de vez o projeto que simboliza mais que qualquer outro o programa ultraliberal: a adesão à OCDE. Já manifestei em outros escritos a opinião de que o ingresso na OCDE vem sendo oversold à opinião pública, isto é, vendido com exagero, sem qualquer correspondência à realidade.
Certamente não creio que valha o preço descabido que nos cobraram (diversamente dos outros países na mesma situação) e que aceitamos sem avaliar suficientemente todas as consequências.
Não pretendo me deter nesses aspectos, mas o fato é que a equipe econômica atribui a essa adesão uma importância em descompasso com as posições de política externa hostis à França, país-sede da Organização, com enorme influência em suas decisões. É difícil, depois de tudo o que aconteceu, imaginar que o Comitê de Meio Ambiente da OCDE aprove, por exemplo, as práticas ambientais brasileiras na Amazônia.
Aliás, uma das incontáveis contradições da política externa bolsonarista é denunciar a ONU por supostamente impor políticas de gênero, ao mesmo tempo que abraça gustosamente, como diriam nossos vizinhos, a mais invasiva das organizações, a OCDE. Basta mencionar que a entidade das economias avançadas notificou ao Brasil que teria de modificar ou revogar nada menos de 207 leis brasileiras, ajustando-as aos padrões da instituição caso deseje tornar-se membro pleno.
Não preciso lembrar as inúmeras ocasiões nestes nove meses de governo em que os anunciados propósitos liberalizantes cederam a pressões em sentido contrário: as barreiras sobre o leite em pó importado, a interdição de importação de bananas do Equador para proteger produtores do Vale da Ribeira, região da família presidencial e, em dias recentes, a prorrogação por dez anos do acordo sobre o regime automotivo comum com a Argentina, um dos exemplos mais conspícuos de managed trade, de comércio administrado, para horror dos puristas do livre comércio.
O futuro, talvez não tão distante, dirá quanto tempo há de durar a experiência de política econômica liberal. Acumulam-se os sinais de impaciência com a demora dessa política em produzir resultados de crescimento econômico e geração de empregos.
O presidente e seus seguidores se confessam agoniados com a falta de espaço para estimular o consumo. Não é brilhante a tradição histórica do liberalismo econômico no Brasil. Será diferente esta vez com um presidente sem convicções e obcecado com a ideia fixa da reeleição?

*Rubens Ricupero é diplomata, ex-ministro do Meio Ambiente (1993-1994) e da Fazenda (1994), ex-embaixador em Genebra, Washington e Roma e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).

*Artigo originalmente apresentado em forma de palestra no 16º Fórum de Economia da FGV, realizado nos dias 9 e 10 de setembro de 2019, com o título "É possível conciliar projeto econômico ultraliberal com política externa antiglobalista?".


O chanceler Ernesto Araújo (esquerda) e o ministro da Economia Paulo Guedes (direita) são adversários ideológicos no governo (Crédito: Reprodução)