Que o governo sofra de transtorno bipolar a gente já sabia, mas acredito que esses "representantes" atuais de uma diplomacia olavo-bolsonarista não tenham qualquer importância para a agenda liberal da equipe econômica. Eles só atrapalham no ruído que fazem contra o globalismo, mas na maior parte das vezes se trata de pura cacofonia e histeria inconsequente.
Paulo Roberto de Almeida
Hostilidade ao 'globalismo' contradiz projeto
econômico do governo
Rubens Ricupero
Neste artigo, me esforçarei,
sobretudo, em examinar as interrelações entre a política externa e o projeto
econômico do governo Bolsonaro, dando ênfase às iniciativas em matéria de
comércio internacional, investimentos e economia.
O pano de fundo é a contradição
entre uma política externa hostil ao "globalismo", e um difuso projeto econômico ultraliberal voltado à plena integração da
economia brasileira ao espaço globalizado de livre circulação de bens,
serviços, fluxos financeiros e investimentos.
A condição prévia da qual depende
o êxito dessa integração é evidentemente a continuação da globalização, isto é,
que não haja retrocesso importante na tendência à unificação e liberalização
dos mercados em escala planetária. Uma característica essencial da globalização
consiste na imposição aos países de padrões globais que limitam o espaço das
soberanias nacionais, justamente aquilo que o atual chanceler denuncia como
"globalismo".
Uma política externa soberanista,
de perspectiva estritamente nacional, de hostilidade ao "globalismo",
convive mal ou não convive com o cosmopolitismo da abordagem econômica
ultraliberal. Como diz a expressão francesa, são coisas que hurlent de
se trouver ensemble, coisas que "uivam por se encontrarem
juntas", em tradução literal.
Modelo confessado do governo
Bolsonaro, o governo Trump não padece da mesma inconsistência. Sua essência
resume-se na frase "America First", os Estados Unidos em
primeiro lugar. Pondo de lado as pretensões idealistas de governos anteriores,
configura o retorno sem rebuços aos tempos de predomínio absoluto dos
interesses nacionais das potências dominantes no sistema mundial.
Trump não se preocupa o mínimo
com a globalização, pois julga, com razão ou sem ela, que o fenômeno favoreceu
a China e outros países em detrimento dos Estados Unidos. Nem liga, ao
contrário de seu antigo conselheiro, o sinistro Steve Bannon, às supostas
ameaças aos valores da civilização judaico-cristã. Importa-se exclusivamente
com o interesse nacional dos Estados Unidos, o qual, para megalomaníaco como
ele, confunde-se provavelmente com o próprio interesse pessoal.
A fim de promover esses
interesses, conta com o gigantesco poderio econômico e militar americano.
Confia apenas nos meios unilaterais do poder duro: tarifas impostas
ilegalmente, sem consulta à Organização Mundial de Comércio (OMC), sanções
econômicas sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, ameaças de uso da
força para aniquilar países, felizmente até agora mais retóricas que reais.
Realista no sentido mais imediato
do termo, está pronto a desestabilizar a economia mundial, a fazer retroceder a
globalização, a fim de trazer empregos de volta aos Estados que o elegeram ou
de beneficiar seus interesses político-eleitorais.
A política de Trump, além de
apresentar perfeita lógica interna no seu nacionalismo, soberanismo,
antiglobalismo, dispõe dos meios de que necessita. Se vai ou não produzir os
efeitos esperados, é outra história.
Em contraste, o governo Bolsonaro
não apresenta coerência interna entre os elementos conflitantes da diplomacia
antiglobalista e do projeto ultraliberal, nem desfruta dos meios de poder para
sustentar sua política.
Uma das incoerências do
ultraliberalismo da política econômica do ministro Guedes está no apoio ao
governo Trump, que representa a maior ameaça à continuidade da globalização,
condição do sucesso da estratégia de abertura brasileira.
É o que se vê com clareza na
atitude de adotar de forma acrítica a agenda internacional do governo Trump,
cujos elementos não só não coincidem, na maioria dos casos também contrariam
frontalmente os interesses brasileiros. O primeiro dos componentes dessa
agenda, a contenção da China, pode até ser compreendida do ponto de vista de
uma potência temerosa de perder sua hegemonia para o rival.
Que vantagem, porém, poderia
advir para o Brasil de hostilizar o país que nos últimos dez anos tem
sustentado nosso balanço de pagamentos graças aos sucessivos saldos gerados na
balança comercial pela exportação de commodities?
A mesma pergunta pode ser
repetida em relação aos demais pontos da agenda de segurança dos EUA. Que
interesse estratégico teríamos em antagonizar a Rússia, parceira nos BRICS,
relevante mercado para nossos produtos, ao Irã, um dos maiores compradores do
milho e das proteínas brasileiras?
O que ganhamos em nos alinhar com Israel e EUA nas votações no Conselho de
Direitos Humanos da ONU contra os palestinos ou na questão de Jerusalém,
contrariando os árabes, grandes importadores de carne de frango e de proteínas
do Brasil?
Em que a ameaça de abandonar o
Acordo do Clima de Paris serve aos objetivos da política ambiental nacional,
que tem tudo a ganhar com os mecanismos financeiros previstos para apoiar a
preservação das florestas tropicais, as boas práticas em cultivos como o cacau,
o café, o manejo florestal?
Nos momentos do chamado
alinhamento automático com a política exterior norte-americana, nos governos
dos marechais Dutra ou Castelo Branco, vivia-se o auge da Guerra Fria. Para os
setores dirigentes brasileiros, a obsessão na luta contra o que se considerava
a ameaça mortal da subversão do comunismo interno coincidia perfeitamente com o
combate liderado por Washington no plano internacional contra Moscou, visto
como origem da subversão interior.
Por mais equivocada que tenha
sido essa percepção, ela dominava os espíritos daquele tempo. Hoje, não existe
nem sombra de coincidência entre a agenda internacional dos EUA e os interesses
brasileiros, internos ou externos.
Em muitos desses episódios, tem
havido mudanças moderadoras nas posições apressadamente anunciadas. Um dos
sinais da improvisação, superficialidade e falta de rumo da política externa
reside mesmo na frequência com que o governo ziguezagueia entre orientações
diferentes.
Não se sabe até que ponto as
mudanças são para valer ou estão sujeitas a retrocessos. De qualquer forma, nas
modificações talvez mais duráveis, como a do relacionamento com a China, a
volta atrás expressa menos uma evolução autêntica de convicções como a fraqueza
de meios para sustentar uma diplomacia agressiva e extremista de alto custo em
termos de perdas potenciais de mercados e investimentos.
Na medida em que se mobilizam os
setores exportadores ameaçados pelas perdas nos mercados da China, do Irã, dos
árabes, o governo é obrigado a recuar pois não tem como compensar tais perdas.
Nem consegue convencer a opinião pública de que suas escolhas são ditadas por
argumentos racionais e não, como de fato ocorre, pela ideologia irracional da
"lunatic fringe", a franja lunática de ideólogos pós-fascistas
misturados com iluminados, astrólogos, apocalípticos e malucos de todo o
gênero.
A consequência disso tudo é que a
política externa está criando para o projeto econômico um risco real de
deterioração da balança comercial e do balanço de pagamentos, um dos raríssimos
setores que ainda se salvavam numa economia em crise. A ameaça acontece no pior
momento, quando a conjuntura internacional acumula sinais de desaceleração, até
de possível recessão, o comércio mundial se contrai, os preços das commodities caem,
a Argentina, nosso principal mercado de manufaturados, mergulha em profunda
crise e o saldo comercial diminui em relação a 2018.
A agressão aos mercados externos,
que vinha se produzindo de maneira regular e constante desde o início do
governo, saltou para patamar alarmante nas últimas semanas com a previsível
explosão da crise das queimadas na Amazônia. Tendo subestimado a intensidade
da reação internacional, o governo esboçou mudanças pouco convincentes no
discurso uma vez desencadeada a crise.
Adotou, como se faz habitualmente
em instantes de emergência, ações espetaculares como o envio de forças
militares não treinadas para combater incêndios, esperando que o fim da estação
seca e a passagem do tempo amainem a situação. Contudo, o dano, provavelmente
irreparável, já foi feito. A primeira vítima é o acordo dito de livre comércio que custou 20 anos de
negociação entre o Mercosul e a União Europeia.
Ninguém vai assumir o ônus de
anunciar a morte oficial do acordo. O mais plausível é que ele permaneça num
estágio de profunda hibernação, congelado por período indefinido. Até que
alguma incerta evolução positiva na postura do governo brasileiro crie condições
para permitir sua eventual submissão ao Parlamento Europeu e aos parlamentos
dos países membros da União Europeia para aprovação.
Adicionalmente à indignação
coletiva causada pela destruição da Amazônia no continente onde a consciência
ambiental se encontra mais avançada e organizada em partidos fortes, deve-se
levar em conta o efeito perdurável do estúpido conflito criado com a França, atingida na própria figura do presidente Macron. As agressões ignóbeisao presidente francês e à sua
esposa, personalidade unanimemente admirada na Europa, continuaram até as
últimas semanas em atos de membros do governo que só se podem qualificar de
cafajestismo.
É pouco provável que o acordo
entre o Mercosul e a EFTA (European Free Trade Association) escape ao mesmo
destino, após as declarações da primeira-ministra da Noruega e ao anúncio de que
vários movimentos na Suíça darão início à coleta de
assinaturas para a convocação de uma consulta popular contra a ratificação do
convênio.
Iniciativas de boicote de
produtos brasileiros vêm sendo tomadas por supermercados, grupos financeiros
declaram ter renunciado à aquisição de títulos do país, fundos de pensão
reexaminam seus investimentos no Brasil, inúmeras empresas importadoras do
exterior comunicam à Associação Brasileira de Curtumes e Couros a suspensão de
compras de couro nacional.
Ainda que essas ações não se
disseminem e redundem em boicote generalizado, a antidiplomacia do governo
Bolsonaro está perto de realizar a proeza de converter o Brasil num pária da
comunidade internacional, ao lado da Venezuela de Maduro e das Filipinas de
Rodrigo Duterte, ultimamente ausente do noticiário internacional.
Os integrantes liberais da equipe
governamental, que sonhavam com uma abertura comercial que expandisse os
mercados brasileiros, terão agora de correr atrás do prejuízo, gastando
recursos e energia somente para limitar danos. Seria uma ilusão pensar que as
perdas no mercado europeu possam ser compensadas nos Estados Unidos graças à
benevolência do governo Trump.
Em primeiro lugar, porque os
produtos do agronegócio exportados à UE – complexo soja, milho, carne de
frango, carne bovina – constituem justamente os itens nos quais os
norte-americanos são os principais concorrentes brasileiros no mercado
internacional.
Em segundo lugar, porque os
Democratas, que já dominam a Casa de Representantes, seguem a orientação de
impor cláusulas de ordem ambiental e trabalhista cada vez mais estritas a todos
acordos comerciais. Foi em decorrência dessa política que o governo Trump
viu-se forçado, na recente renegociação do acordo de livre comércio com o
México, a reforçar tais capítulos. Mesmo assim, a Câmara ameaça não aprovar o
acordo, até hoje não submetido à aprovação legislativa.
O desastre da Amazônia e a guerra
de insultos declarada à França não deixarão também de produzir impacto negativo
em retardar ainda mais ou inviabilizar de vez o projeto que simboliza mais que
qualquer outro o programa ultraliberal: a adesão à OCDE. Já manifestei em outros
escritos a opinião de que o ingresso na OCDE vem sendo oversold à
opinião pública, isto é, vendido com exagero, sem qualquer correspondência à
realidade.
Certamente não creio que valha o
preço descabido que nos cobraram (diversamente dos outros países na mesma
situação) e que aceitamos sem avaliar suficientemente todas as consequências.
Não pretendo me deter nesses aspectos,
mas o fato é que a equipe econômica atribui a essa adesão uma importância em
descompasso com as posições de política externa hostis à França, país-sede da
Organização, com enorme influência em suas decisões. É difícil, depois de tudo
o que aconteceu, imaginar que o Comitê de Meio Ambiente da OCDE aprove, por
exemplo, as práticas ambientais brasileiras na Amazônia.
Aliás, uma das incontáveis
contradições da política externa bolsonarista é denunciar a ONU por
supostamente impor políticas de gênero, ao mesmo tempo que abraça gustosamente,
como diriam nossos vizinhos, a mais invasiva das organizações, a OCDE. Basta
mencionar que a entidade das economias avançadas notificou ao Brasil que teria
de modificar ou revogar nada menos de 207 leis brasileiras, ajustando-as aos
padrões da instituição caso deseje tornar-se membro pleno.
Não preciso lembrar as inúmeras
ocasiões nestes nove meses de governo em que os anunciados propósitos
liberalizantes cederam a pressões em sentido contrário: as barreiras sobre o
leite em pó importado, a interdição de importação de bananas do Equador para
proteger produtores do Vale da Ribeira, região da família presidencial e, em
dias recentes, a prorrogação por dez anos do acordo sobre o regime automotivo
comum com a Argentina, um dos exemplos mais conspícuos de managed trade,
de comércio administrado, para horror dos puristas do livre comércio.
O futuro, talvez não tão
distante, dirá quanto tempo há de durar a experiência de política econômica
liberal. Acumulam-se os sinais de impaciência com a demora dessa política em
produzir resultados de crescimento econômico e geração de empregos.
O presidente e seus seguidores se
confessam agoniados com a falta de espaço para estimular o consumo. Não é
brilhante a tradição histórica do liberalismo econômico no Brasil. Será
diferente esta vez com um presidente sem convicções e obcecado com a ideia fixa
da reeleição?
*Rubens Ricupero é diplomata, ex-ministro
do Meio Ambiente (1993-1994) e da Fazenda (1994), ex-embaixador em Genebra,
Washington e Roma e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento (Unctad).
*Artigo originalmente
apresentado em forma de palestra no 16º Fórum de Economia da FGV, realizado nos
dias 9 e 10 de setembro de 2019, com o título "É possível conciliar
projeto econômico ultraliberal com política externa antiglobalista?".
O chanceler Ernesto Araújo (esquerda) e o ministro da Economia Paulo Guedes (direita) são adversários ideológicos no governo (Crédito: Reprodução)