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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Mini-reflexão sobre a condição de professor - Paulo Roberto de Almeida

 Mini-reflexão sobre a condição de professor 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

  

Venho de uma família muito pobre, tanto materialmente, quanto educacionalmente. Meus avós, imigrantes europeus mais de um século atrás, vindos ao Brasil para trabalhar nas fazendas de café, de São Paulo ou do sul de Minas, eram perfeitamente analfabetos, e assim permaneceram até o fim de suas vidas. Meus pais tiveram uma educação primária interrompida pela necessidade de trabalhar, e assim não tinham nenhum certificado de ensino, embora soubessem ler e escrever; o fato é que não havia livros em minha casa. Eu mesmo tive de começar a trabalhar muito cedo, mas muito cedo mesmo, para ajudar numa casa que se equilibrava entre a penúria e a pobreza. Enfim, as perspectivas de vida não eram muito promissoras na primeira infância, e o futuro profissional teria sido provavelmente construído a partir de um domínio vinculado a alguma atividade ou ocupação manual. 

O que fez a diferença, no caso creio que absoluta, foi a existência, no nosso modesto bairro do sul da cidade de São Paulo, antes chamado de “chácara Itaim”, depois de Itaim Bibi, caracterizado por ruas de terra e muitos terrenos baldios, de uma biblioteca pública infantil, recentemente aberta em torno de meus cinco anos, ou seja, em meados dos anos 1950. Comecei a frequentar a biblioteca Anne Frank dois anos antes de aprender a ler, o que se refletia em atividades puramente reativas, jogos, revistas infantis pelas ilustrações e, o que me dava mais prazer, os filmes que eram passados regularmente: Os Três Patetas, Gordo e Magro, Roy Rogers, Tarzan, Oscarito e Grande Otelo, Zorro, e sobretudo os desenhos animados dos anos 1950, Looney Tunes, Disney e outros. Foram momentos de felicidade na primeira infância, em meio à vida austera da pequena casa em construção numa pequena rua do final da Avenida Imperial (futura Av. Horácio Lafer), abaixo da Avenida Iguatemi (futura Av. Faria Lima).

Assim que aprendi a ler, na tardia idade de sete anos, passei a ler todos os livros, ou quase todos, que chamavam minha insaciável atenção. A enorme felicidade era constituída pelo fato de que os livros se espalhavam pelas paredes de uma enorme sala de leitura, sendo que uma outra sala adjacente, eles estavam em estantes de ferro. Eu podia então percorrer todas as estantes, e a única recomendação das bibliotecárias era que não repuséssemos os livros nas estantes, mas os deixássemos numa mesa, para serem guardados por elas. Já adulto, e contando com um daqueles primeiros computadores portáteis, percorri novamente aquelas estantes e anotei febrilmente títulos e autores que preencheram minha infância: infelizmente, essa notação se perdeu, e quando voltei à biblioteca, muitos anos depois, tudo tinha sido renovado, e “meus livros” desapareceram. Lembro-me de Monteiro Lobato, evidentemente, praticamente todos os infantis (embora eu também lançasse os olhos sobre os “de adultos”, que não chegaram a me atrair antes da adolescência), mais aqueles de coleções seriadas: Emilio Salgari, Karl May (Winnetou), contos árabes de Malba Tahan e dezenas de outros que vou rememorar no devido tempo. Alguns desses já seriam leituras de adolescentes, e foram “enfrentados” já perto dos onze ou doze anos, quando passei a ter aulas integrais, no Ginásio Vocacional Oswaldo Aranha, entre 1962 e 1965. 

Até então, ou seja, quatro anos de primário e um de “admissão”, eram em regime parcial, estudos matinais, sendo que parte da tarde era tomada por trabalho (pegador de bola de tênis em clube, ou empacotador de supermercado, por exemplo), ao lado da biblioteca e partidas de futebol ou outras brincadeiras na rua de terra. O que era excepcional na biblioteca é que quando ela fechava, em torno das 18hs, eu podia levar dois ou três livros para ler em casa, um a possibilidade a que inapelavelmente eu recorria de modo sistemático. Passava então parte da noite lendo esses livros na cama, até que a ordem materna vinha para apagar a luz, por necessidade de economia. Ao sair do ginásio e ingressar no colegial noturno, curso “clássico”, comecei a trabalhar regularmente durante o dia, como “office-boy” numa empresa estrangeira do centro de São Paulo, e aproveitava as saídas a trabalho para ingressar rapidamente nas bibliotecas disponíveis: a Municipal Mário de Andrade, a da Faculdade de Direito da USP, no Largo de S. Francisco, a da Confederação Nacional do Comércio, no Vale do Anhangabaú e a mais longínqua da USIA, junto ao Consulado americano na Avenida Paulista. Havia ainda a mal localizada da “associação cultural” Brasil-Estados Unidos, numa paralela da Av. 9 de Julho e devo estar esquecendo algumas outras. Em todas elas, eu me inscrevi para retirar livros e ler em casa, ou nas viagens de ônibus, a caminho do trabalho. 

Ao preparar-me para os vestibulares na USP – não para Direito, como desejava a família, mas para o curso de Ciências Sociais, de cujos professores eu já tinha lido os livros mais importantes –, eu comecei a dar aulas gratuitas para candidatos à universidade, sem que eu disponha agora das referências exatas dessa atividade, para especificar tempo e lugar: apenas me lembro que era em uma sala de colégio. Meu ingresso em Ciências Sociais da USP se deu naquele ambiente conturbado da “batalha da Maria Antônia”, quando, em outubro de 1968, a “extrema-direita” do Mackenzie atacou, de maneira selvagem, a “esquerda” da Fefelech, a conhecida Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP; fomos rapidamente deslocados para os “barracões” da Cidade Universitária, onde comecei os estudos no início de 1969. As boas perspectivas de estudar com os grandes professores do curso, os mestres da Escola Paulista de Sociologia – Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardos, Octavio Ianni, entre outros – foram brutalmente cortadas pouco depois, quando esses e muitos outros professores foram compulsoriamente aposentados pelo Ato-5 da ditadura militar, contra a qual eu já vinha protestando nas ruas desde os tempos do colegial. Sem pretender estender muito este relato prévio à minha carreira de professor, apenas confirmo que, a partir desse momento, decidi sair do Brasil, não apenas por qualquer desilusão com respeito à “cassação” dos meus professores, mas também em consideração a questões de minha própria segurança pessoal, uma vez que estava vinculado a grupos de resistência à ditadura militar (no espaço de pouco mais de um ano passei por três deles, em razão dos sucessivos fracionamentos desses grupos, já praticamente acuados pela repressão brutal). 

Os quase sete anos passados em autoexílio na Europa – retomada da graduação em Ciências Sociais, mestrado em Economia e início de um doutoramento, ainda em Ciências Sociais – me confirmaram num futuro profissional decididamente acadêmico, o que me decidi a iniciar ainda antes de terminar o doutoramento. A volta ao Brasil trouxe, porém, uma surpresa: imediatamente após ter iniciado minha carreira de professor, na área da Sociologia e da História Econômica, fui surpreendido pela abertura de concurso direto para a carreira diplomática, em meados de 1977, o que representou uma decisão de surpresa e não prevista. O ingresso na diplomacia for relativamente fácil, dada minha carga de leituras acumuladas, mas nunca abandonei a atividade paralela do magistério superior, o que finalmente empreendi assim que retornei de meus dois primeiros postos no exterior, com o doutorado concluído.

E assim foi feito, durante toda a duração da carreira diplomática, que agora decidi encerrar, praticamente de forma contínua, com as interrupções inevitáveis por saídas a serviço, mas com alguma atividade acadêmica nesses postos do exterior, ainda que de maneira ad hoc, ou temporária. Posso dizer que fui um professor que “esteve” diplomata durante quatro décadas, tanto é que colegas e chanceleres do Itamaraty costumavam me chamar de “professor”, não exatamente pelo cargo do momento, conselheiro ou ministro. Mesmo como embaixador (ou ministro de primeira classe), nunca objetei, até pedi, que me chamassem de professor, pois é esta minha verdadeira natureza, a primeira se ouso dizer. 

Concluo pela pergunta mais óbvia: por que, tendo uma carreira de relativo prestígio como a diplomacia, praticamente tranquila e satisfatória – inclusive no plano intelectual, pois este é o meu critério principal em qualquer atividade assumida –, decidi empreender e dar continuidade a uma segunda (talvez primeira) carreira que me impôs certo sacrifício pessoal e familiar, tendo em vista aulas noturnas, ocupação com preparação de matérias, correção de provas, orientação de alunos, participação em bancas, aceitação de convites para seminários (vários implicando viagens fora de Brasília) e diversos outros encargos decorrentes desse desafio voluntariamente assumido e perseguido por todos os anos, em paralelo à profissão principal, igualmente exigente (viagens em fins de semana, ausência em conferências e reuniões internacionais, etc.) e finalmente mais remuneradora? 

Se ouso responder pela postura mais simples, eu diria apenas que atendi a um apelo interno, aquele despertado em mim ainda quando criança ou adolescente, ao perceber que o aprendizado, o conhecimento, a capacitação pessoal era a única maneira de superar a antiga condição de pobreza e de ausência inicial de perspectivas mais promissoras de vida. Numa resposta mais elaborada, talvez autocongratulatória, seria o desejo consciente de devolver à sociedade, em geral, a brasileira em particular, tudo aquilo que recebi dessa sociedade nos primeiros ciclos de ensino e até o universitário (parcialmente pago, quando na Europa). Mas essa devolução não precisa de intermediários, de escolas ou faculdades, pois faço isso por minha própria conta, desde quando decidi iniciar o trabalho de ensino e orientação voluntária de alunos, via ferramentas sociais; as primeiras foram gratuitas, no Geocities ou algumas outras, depois paguei meu domínio para montar meu próprio site, no qual colocava à disposição de todos meus trabalhos sobre Mercosul, integração e os temas mais diversos de relações internacionais, política externa e história diplomática. 

O fato é que desde o final dos anos 1990 e criei meu próprio espaço de ensino, de comunicação, de divulgação e de interação com alunos e colegas acadêmicos, o que nunca mais cessou, apenas aumentou, desde então, por meio do site (www.pralmeida.org), de vários blogs (até afunilar no Diplomatizzando) e das outras ferramentas disponíveis. Em todos esses espaços de comunicação social, por meio da participação em inúmeros eventos em minhas áreas de especialização, tenho exercido minha primeira “profissão” – que eu diria que é apenas dedicação – de professor, ou de mestre, o que for melhor. 

Gostaria, neste momento, de agradecer a todos os meus alunos, sobretudo aqueles mais questionadores ou contestadores, pois foram eles que me obrigaram a aperfeiçoar meus argumentos, a duplicar minhas leituras, a preparar melhor as minhas aulas, textos e trabalhos diversos. Sou sinceramente agradecido, pois que são esses alunos que legitimam e testam a qualidade de minhas aulas e trabalhos, sem que eu dependa de qualquer cargo ou instituição para tal desempenho, pois que poderiam simplesmente, largar tudo isso e concentrar-me apenas na carreira diplomática, quaisquer que fossem as condições que enfrentei nesta última (supostamente a primeira), e elas foram em diversas ocasiões bastante desafiantes. Com efeito, não é segredo para os mais bem informados que, dada minha natureza contestadora, ou contrarianista – eu apenas falaria de uma postura de ceticismo sadio –, cheguei a enfrentar algumas “contrariedades” na carreira, geralmente em decorrência de publicações fora da “verdade oficial”, ou diretamente contrárias às posições do momento, o que resultou em algumas “punições” (telegramas relembrando as normas de discrição) por não respeitar os pedidos de autorização superior para publicar artigos (que nunca vinham, por sinal) e até num longo ostracismo, durante toda gestão lulopetista no Itamaraty. No horroroso governo atual fui exonerado do cargo que ocupava (para grande alívio da minha parte), e sofri retaliações financeiras, por atos que eu não hesitaria em classificar como assédio moral. 

Estou bem na carreira de professor e nela continuarei enquanto minhas forças e capacidade intelectual assim o permitirem, ou enquanto for requisitado bilateralmente por estudantes, pesquisadores ou colegas professores. Tenho tido bastante satisfação a partir dessas atividades, o que pode ser confirmado pelo volume da produção intelectual acumulada (enquanto escreve, constato que estou no trabalho n. 3.997, ao lado de mais de 1.400 já publicados, nos seus vários formatos), e pelos livros publicados, vários livremente disponíveis a partir de meu blog ou site. Meus trabalhos falam por si próprios, mas minhas aulas e o julgamento que se possa ter sobre elas dependem dos alunos que tive e que ainda terei. A palavra está com eles.

Muito obrigado a todos, o grande abraço acadêmico...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3997: 15 outubro 2021, 5 p.


Mini-reflexão sobre a opção pelo declínio: Brasil e Argentina - Paulo Roberto de Almeida

 Mini-reflexão sobre a opção pelo declínio: Brasil e Argentina

 

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)


 

Quando sociedades resolvem se suicidar, elas fazem um pouco como Argentina e Brasil, independentemente que seja pela via da “esquerda” ou da “direita”, o que não tem nenhuma importância nesses casos de nações que resolvem entregar seus destinos respectivos a líderes supostamente salvacionistas que, paradoxalmente, só aprofundam o processo de decadência. 

O Brasil, com características próprias, exibe o mesmo itinerário que conduziu a Argentina a mais de 80 anos de declínio continuo e, o que é pior, evitável mas incontornável: o caminho das não-reformas, o da entrega de seus respectivos destinos a elites medíocres, a preservação da não-educação, do desprezo pela cultura sofisticada, a continuidade da corrupção política e também nos meios empresariais, enfim, a preservação de um ambiente de negócios que é totalmente antiempreendedor e nefasto para o investimento estrangeiro e para a inserção global. 

Sinto dizer, mas o Brasil é um país totalmente preparado para não crescer, para vegetar na mediocridade imobilista durante certo tempo mais. Quanto tempo? Impossível dizer, mas o suficiente para deixar uma ou duas gerações acostumadas à mediocridade, assim como ocorreu, e ainda ocorre, com a Argentina, e isso independentemente de serem introduzidos sinais exteriores, e superficiais, de “modernidade”.

Na verdade, o Brasil se arrasta letargicamente, há duzentos anos em direção a um futuro medíocre: delongado na extinção do tráfico escravo e da própria escravidão, retardado na construção de um sistema de educação de massas de boa qualidade, nunca fez reforma agrária de verdade, e tampouco empreendeu uma revolução industrial – nossa industrialização se fez aos saltos, oportunistas e descontínuos, sem conexões com cadeias de valor internacionais, o que também é devido a nosso nacionalismo entranhado e ao nosso persistente protecionismo que só serve a empresários rentistas – e nunca soube corrigir as taras sempre presentes do mandonismo e do patrimonialismo.

Como querem, agora, que o Brasil seja uma nação próspera e um país desenvolvido? Vai ser difícil, na ausência de um diagnóstico correto de nossos males e de uma disposição clara para adotar as prescrições adequadas em função da realidade e para empreender as reformas necessárias. Para isso seria preciso ter uma visão clara dos desafios e coragem para superá-los, o que requer estadistas, não liderança medíocres como as que temos atualmente.

Sinto ter de anunciar: bem-vindos a um horizonte de declínio e de conformidade com a estagnação secular. Já aconteceu antes, com outras nações; agora é a nossa vez.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3832, 02 de janeiro de 2021


Até o fim, Chico Buarque

Até o fim

Quando nasci veio um anjo safado
O chato do querubim
E decretou que eu estava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim

Inda garoto deixei de ir à escola
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão, eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fiM

Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim
Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso
Em Quixeramobim
Não sei como o maracatu começou
Mas vou até o fim

Por conta de umas questões paralelas
Quebraram meu bandolim
Não querem mais ouvir as minhas mazelas
E a minha voz chinfrim
Criei barriga, a minha mula empacou
Mas vou até o fim

Não tem cigarro acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim?
Eu já nem lembro pronde mesmo que eu vou
Mas vou até o fim

Como já disse era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu estava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim

Composição: Chico Buarque

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Minha carta pedindo a renúncia do chanceler acidental, em janeiro de 2021 - Paulo Roberto de Almeida

 Confesso que eu tinha esquecido completamente, mas acabei caindo por acaso numa postagem do começo do ano na qual eu pedia a renúncia do chanceler acidental, o tal da Era dos Absurdos. Não sei como ela apareceu na minha tela, mas eis aí o que escrevi em janeiro.

Não sei se foi por isso que o PIOR chanceler de todos os tempos em todos os países renunciou ao cargo – na verdade foi empurrado para fora – mas o fato é que eu devo tê-lo deixado ainda mais deprimido.

No intervalo entre janeiro e outubro, acabei publicando mais dois livros: O Itamaraty Sequestrado, em formato Kindle, e Apogeu e Demolição da Política Externa, em distribuição em formato impresso pela Appris.

Paulo Roberto de Almeida


quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Carta aberta a um diplomata completamente fora do tom - Paulo Roberto de Almeida

 Carta aberta a um diplomata completamente fora do tom  

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivorecomendar renúnciafinalidade: declaração a colegas de carreira

 

Diplomata EA, 

Eu estava, recentemente, revisando a lista de minhas resenhas de livros – eu fiz centenas delas – e deparei-me com esta aqui, que na verdade nunca teve divulgação plena, pois a RBPI só publicava resenhas curtas, e eu sempre fiz resenhas-artigos, no modelo da The New York Review of Books, uma jornal literário da esquerda americana, que tenho certeza é do seu conhecimento. A ficha desta resenha, que acabo de publicar em sua íntegra, é esta aqui (e tenho certeza de que você também conhece o meu blog, muito crítico como sempre): 

518. “O Mercosul por quem o fez”, Brasília, 17 março 1996, 3 p. Resenha de Sérgio Abreu e Lima Florêncio e Ernesto Henrique Fraga Araújo: Mercosul Hoje (São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1996). Inédito na versão completa. Publicado em versão resumida na Revista Brasileira de Política Internacional (vol. 39, n. 1, janeiro-julho 1996, p. 175-177). Divulgado em versão integral blog Diplomatizzando (27/01/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/01/o-mercosul-por-quem-o-fez-resenha-do.html). Relação de Publicados n. 194.

 

Ao reler a avaliação bastante positiva que fiz desse livro, constatei que, até o final de 2018, nunca mais havia lido qualquer coisa inteligível saída de sua pluma. Ouvi falar de dois ou três romances bizarros mas nenhum colega soube me dizer algo inteligível sobre eles, e a única resenha que li – de um jornalista da revista Época, logo ao início deste governo – não me motivou a buscá-los para tomar conhecimento do que poderia haver de interessante neles. Também deve ser de seu conhecimento que durante quase duas décadas eu assinei a seção Prata da Casa na revista da nossa Associação, resenhando a cada número quatro ou seis obras de diplomatas, mas nunca tive a oportunidade de receber esses “romances” para resenhar. Falha sua, pois quem sabe eu teria algo de inteligente a dizer sobre coisas antigas, quando o Brasil, ainda que ameaçado pela turma do Foro de S. Paulo e pelo marxismo cultural, parecia ser um país mais normal do que atualmente.

Em todo caso, quando voltei a lê-lo novamente, num blog de nome aparentemente inspirado nos círculos wagnerianos – Metapolítica 17: contra o globalismo –, confesso que fiquei estarrecido pelo conjunto de afirmações absurdas e propostas estapafúrdias. Foi tal o choque, que desandei imediatamente a formular argumentos contrários em meu blog Diplomatizzando – que eu chamo de quilombo de resistência intelectual –, o que deve tê-lo motivado a me exonerar do cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais numa segunda-feira de Carnaval, uma data estranha para gesto já tão esperado. O choque e o estranhamento foram tais – não só daqueles escritos vitriólicos, mas também das entrevistas raivosas, dos discursos excêntricos, das aulas estranhas para os alunos do Instituto Rio Branco – que eu fiz aquilo que sempre faço quando me deparo com algo fora do normal: ponho-me logo a registrar minhas impressões e contra-argumentos. 

Até aqui foram quatro livros sobre essa estranha fase de nossa diplomacia, uma verdadeira Era dos Absurdos (a EA, que deve entrar para a história), o que me ocupou de uma forma absolutamente inútil, tendo em vista pesquisas sérias e livros mais consistentes que eu poderia estar escrevendo e publicando. Tenho certeza de que você também já tomou conhecimento desses livros, que podem tranquilamente ser acessados no meu citado blog, quaisquer que sejam seus sentimentos e reações a eles. Creio até que foi o primeiro desses livros – Miséria da Diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019) – que o motivou a tomar novas medidas punitivas contra mim, até por meio de ilegalidades, como o fato de cortar meu salário do mês de janeiro de 2020, a pretexto de “faltas injustificadas”, quando eu havia justificado cada uma delas (em duas, aliás, estávamos juntos em eventos dos bravos militares, no Forte Apache e no próprio Ministério da Defesa). Eu poderia lhe dizer que a raiva não é boa conselheira, mas não creio que adiantasse muito, pois desde a Guerra de Troia, ela já produziu muitos gestos insensatos nas relações humanas.

Pois foi quando “redescobri” essa resenha nunca publicada integralmente que tomei a decisão de escrever-lhe uma carta aberta, como convém num caso de interesse público, como é essa horrível gestão sua à frente de nosso tão infeliz ministério. Nunca assistimos, em 200 anos de construção do Brasil pela sua diplomacia – parafraseando a obra já clássica de um colega, o embaixador Rubens Ricupero, que também deve fazer parte de sua biblioteca, tenho certeza disso – um itinerário tão desastroso na condução de nossa política externa. Sei que muito disso é devido aos aloprados no poder, aquela família de crenças ultrapassadas, e até mesmo reacionárias, e não a seus sentimentos profundos. 

Mas, ao fim e a cabo, é o seu nome que está em causa, numa quase unanimidade da mídia, como associado à pior gestão do Itamaraty desde o início sob a responsabilidade de um dos pais da pátria e ao longo de dois séculos de lento estabelecimento de uma diplomacia reconhecida como excelente por todos os nossos parceiros externos, a começar pelos vizinhos e todas as grandes potências. Não é mais o caso atualmente, tanto é que assistimos incrédulos ao seu discurso do Dia do Diplomata de 2020, quando, de sua própria boca, saiu a fatídica palavra: “sejamos párias”. Foi uma declaração original em 200 anos de independência, como todos saberemos reconhecer; talvez tenha sido o ponto mais baixo de sua desastrosa gestão, uma espécie de epitáfio que há de permanecer como a marca única e distintiva de um período vergonhoso, mas que ocupará mais algumas páginas de um futura obra que devo ainda escrever: uma história sincera do Itamaraty, na qual relatarei os pontos mais baixos de sua horrorosa gestão. 

Pois é com base em todas essas constatações que eu me permito recomendar-lhe a única coisa decente que você ainda poderia fazer para aliviar nossas agruras de diplomatas de carreira: renuncie EA, faça isso em benefício da Casa que o acolheu tão bem nas últimas três décadas, mas que agora se encontra deprimida pelo pavoroso cenário de fracassos evidentes e de alucinações delirantes. Reparou que eu sequer o chamei de “chanceler acidental”, o que fiz de forma consciente ao longo dos últimos dois anos? Acredito que o adjetivo é plenamente devido, mas o substantivo não lhe cabe, pois essa qualificação só se aplica a quem conduz, de fato, a implementação da política externa, o que nunca foi o seu caso.

Para sua tranquilidade, e antes que o seu caso se agrave ainda mais, renuncie, para o alívio da quase totalidade de seus colegas, e até de certos membros da família, que levam o terrível constrangimento de verem destruídos os fundamentos da política externa pela qual tanto lutaram, entre ventos e marés, inclusive a diplomacia blindada do regime militar. Sua gestão é um desastre, suas ideias são anacrônicas ou delirantes, seu servilismo a dirigentes estrangeiros é uma vergonha não só para os diplomatas, mas para todos os brasileiros. Salve o que pode ainda ser salvo de sua carreira renunciando, inclusive para não me obrigar a escrever um quinto livro sobre esta Era dos Absurdos diplomáticos.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3848, 27 de janeiro de 2021

 

 

Um comentário:

Unknown disse...

Obrigado! Por mais diplomatas com coragem de denunciar a tragédia dos tempos atuais.

O brasileiro voador e a marcha da insensatez - Paulo Roberto de Almeida (OESP)

O brasileiro voador e a marcha da insensatez

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

O Estado de S. Paulo (14/10/2021; ISSN: 1516-2931; página de Opinião; link: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-brasileiro-voador-e-a-marcha-da-insensatez,70003867264?fbclid=IwAR2CtQC_VxSzKho3HV5DS5skHx0OEPogkC7WxsvUz716DoccM06I3eEzl9A). Relação de Originais n. 3978.

  



O título evoca uma lenda e um livro de história. A lenda é a do Holandês Voador, um veleiro holandês do século 18, cujo capitão enlouqueceu ao singrar os mares sem destino, passando a atrair outros navios, arrastando-os a uma destruição certeira no fundo do oceano. O livro é o da historiadora americana Barbara Tuchman, A Marcha da Insensatez(1984), que trata dos erros, falhas, ilusões e até crimes de governos que insistem em se afastar da realidade dos fatos para perseguir suas alucinações na condução dos negócios do Estado. 

O presidente brasileiro é o holandês voador, que leva o veleiro do Brasil a uma destruição quase certeira, ao insistir em loucuras e erros de administração. Em lugar de tratar dos problemas do país – inflação, falta de crescimento, desemprego, pandemia, déficits orçamentários e aumento da dívida pública –, insiste em perseguir suas obsessões: armamentismo, voto impresso, devastação de reservas indígenas pela mineração e pelo garimpo ilegal, defesa de notícias falsas para seduzir e manter sua clientela, desprezo pela vida humana em face da pandemia e reeleição a todo custo, para escapar de processos por crimes cometidos, seus e da família. 

O Brasil é o veleiro desgovernado, levado ao vórtice de um afundamento por uma administração não apenas caótica, mas totalmente desprovida de direção, tendo no timão um desequilibrado, fixado apenas em suas obsessões. A insensatez do capitão do navio fantasma insiste em submeter dois outros poderes à sua agenda destrambelhada, na qual todos devem ceder à miragem de um crescimento imaginário, bastando explorar as fabulosas riquezas escondidas da Amazônia, liberdade total em meio à pandemia, sem limites às despesas do Estado, cada qual cuidando de sua segurança por meio de suas próprias armas. 

A visão do capitão do navio é a de uma guerra de todos contra todos, concepção hobbesiana da política, na qual ganha quem se impõe pela força das armas, não pela via do funcionamento das instituições, pelo respeito às leis estabelecidas, dentro dos limites do Estado. Tal visão confrontacionista foi pela primeira vez exposta no jantar na embaixada em Washington, em 2019, quando o capitão confessou sua visão peculiar como gestor, como sendo a de destruir muito do que existia, antes de se pensar em construir qualquer coisa. O que existia eram: direitos dos indígenas sobre suas reservas, limites à capacidade financeira do Executivo, preservação dos recursos naturais ou exploração sustentável, controle de armas, normas para tráfico e a segurança dos passageiros, inclusive crianças, livre trabalho de uma imprensa investigativa numa democracia sem adjetivos, enfim, o império da lei em lugar da imposição da vontade individual de um dirigente de plantão. 

O Brasil vem sendo levado à marcha da insensatez nos palanques eleitorais do capitão – sustentados com dinheiro público – assim como ao isolamento no plano internacional por sua postura desvinculada das boas normas do relacionamento diplomático e de compromissos internacionais já aceitos pelo Brasil, sobretudo nas áreas ambiental e de direitos humanos. A maior loucura foi o caos no enfrentamento da pandemia, levando o Brasil, com apenas 2,7% da população mundial, a exibir mais de 12% das vítimas da Covid, atrás apenas dos Estados Unidos, penalizado por uma mentalidade antivacinal. O capitão é o último negacionista do planeta. 

Até quando as instituições continuarão sendo atacadas pelo capitão, num desrespeito que beira o insulto e os ataques mais insidiosos? Até quando brasileiros ingênuos serão levados à morte pelo seu comportamento irresponsável na pandemia? Até quando continuará a comprar o apoio dos legisladores, violando o processo orçamentário? Até quando a diplomacia suportará as atitudes irresponsáveis do capitão no plano externo, deixando o Brasil isolado no diálogo com todos os seus grandes parceiros? 

A marcha da insensatez levou o veleiro do Brasil ao vórtice de um afundamento pela inflação crescente, pela fuga de capitais e de investimentos, pelo descontrole dos gastos públicos por motivos eleitoreiros, fatores que nada têm a ver com a agenda da retomada econômica. O desrespeito às instituições resulta da obsessão eleitoral de um capitão que navega errante, ao sabor das correntes políticas. O veleiro está perdido num oceano de incertezas, sem bússola e sem mapas de navegação, levado pelos ventos erráticos da vontade de um capitão que não tem a menor noção dos deveres dos governantes para com os governados. O declínio é visível e encomendado, dada a ausência de qualquer objetivo compatível com os interesses do país, um velejar incessante pelos mares da loucura autoproduzida por quem tomou a direção do veleiro nacional. 

Até quando a sociedade brasileira vai navegar ao sabor dos ventos, sem qualquer atenção a seus problemas mais prementes? Até quando vamos permitir essa marcha ao desastre? 


[Brasília, 3978: 20 setembro 2021, 2 p.]


Versão original:


O brasileiro voador e a marcha da insensatez

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

 

 

O título evoca tanto uma lenda quanto um livro de história. A lenda é a do Holandês Voador, o capitão de um veleiro holandês do século XVIII, que enlouqueceu ao singrar os mares sem destino, passando a atrair outros navios com sua luz bruxuleante e arrastando-os a uma destruição quase certeira no fundo do oceano. O livro é o da historiadora americana Barbara Tuchman, A Marcha da Insensatez (1984), que trata, da guerra de Troia ao Vietnã, dos erros, falhas, ilusões e até crimes de governos que insistem em se afastar da realidade dos fatos para perseguir suas próprias alucinações na condução dos negócios do Estado. 

O presidente brasileiro é o nosso holandês voador, que leva o veleiro do Brasil a uma destruição quase certeira, ao insistir em suas loucuras e erros de administração: em lugar de tratar dos problemas reais do país – inflação, falta de crescimento, desemprego, efeitos da pandemia, déficits orçamentários e aumento da dívida pública –, ele insiste em perseguir suas mais loucas obsessões: armamentismo, voto impresso, devastação de reservas indígenas pela mineração e pelo garimpo ilegal, defesa e promoção de notícias falsas para seduzir e manter sua clientela eleitoral, desprezo pela vida humana no enfrentamento da pandemia e reeleição a todo custo, para escapar de possíveis processos por crimes cometidos, seus e da sua família. 

O Brasil é o veleiro desgovernado que está sendo levado ao vórtice de um possível afundamento por uma administração não apenas caótica, mas totalmente desprovida de direção, conduzida por um desequilibrado que tem apenas em mente aquelas suas obsessões, em lugar da correta gestão do Estado. A insensatez do capitão do nosso navio fantasma insiste em submeter os dois outros poderes à imposição de sua agenda destrambelhada, na qual tudo e todos deveriam ceder à miragem de um crescimento fantástico, bastando que se explorassem fabulosas riquezas escondidas no fundo da Amazônia, que se deixassem todos livros para trabalhar em meio a uma pandemia, que não houvesse limites às despesas do Estado e onde todos seriam livres para garantir sua própria segurança individual e se defender com suas próprias armas às ameaças representadas pelos meliantes habituais das nossas cidades, ou que honestos agricultores possam enfrentar tropas do MST decididos a invadir suas terras. 

A visão bélica do presidente é a de uma guerra de todos contra todos, uma concepção hobbesiana da vida política, na qual ganha sempre aquele que se impõe com a força da vontade, não com o funcionamento correto das instituições, o respeito às leis estabelecidas e o atendimento dos limites das possibilidades do Estado. Essa visão confrontacionista foi pela primeira vez exposta no célebre jantar, em 2019, na embaixada do Brasil em Washington, na qual o presidente confessou sua visão peculiar de sua obra de gestor, como sendo, primeiro, a de destruir muito do que existia, antes de se pensar em construir qualquer coisa. O que existia eram os direitos dos indígenas sobre suas reservas, limites aos poderes administrativos e financeiros do Executivo, a preservação dos recursos naturais ou sua exploração de modo sustentável, o controle dos meios de matar, simples normas para a circulação de automóveis e a segurança dos passageiros, inclusive e sobretudo crianças, o livre trabalho de uma imprensa investigativa numa democracia sem adjetivos, enfim, o império da lei em lugar da imposição da vontade individual de um dirigente de plantão. 

O Brasil vem sendo levado a uma marcha da insensatez pelos palanques eleitorais contínuos do presidente – sustentados pelo dinheiro público – assim como ao isolamento completo no plano internacional por uma postura absolutamente desvinculada das boas normas do relacionamento diplomático e em relação a compromissos internacionais já aceitos pelo Brasil, sobretudo nas áreas ambiental e de direitos humanos. A maior loucura foi, evidentemente, o caos existente no enfrentamento da pandemia o que levou o Brasil, tendo apenas 2,7% da população mundial, a exibir mais de 12% das vítimas da Covid registradas no planeta, atrás apenas dos Estados Unidos, igualmente penalizado por uma mentalidade antivacinal e contrária aos cuidados sanitários básicos, que aqui é constantemente estimulada pelo próprio chefe de Estado, possivelmente o último negacionista do planeta. 

Até quando as instituições consentirão em ser atacadas por quem dirige um dos três poderes e deveria respeitar a independência dos dois outros, num desrespeito que beira o insulto e os ataques mais insidiosos? Até quando brasileiros ingênuos ou subservientes às loucuras do chefe de Estado serão levados à morte por um comportamento irresponsável na pandemia? Até quando os cuidados com os estratos mais frágeis da população continuarão a ser deixados de lado, ao mesmo tempo em que o chefe do Executivo insiste em comprar o apoio dos legisladores violando o processo orçamentário por condutos paralelos, clandestinos das verbas públicas? Até quando a cidadania responsável suportará as atitudes irresponsáveis do chefe de Estado no plano internacional, o que deixou o Brasil completamente isolado no diálogo com seus grandes parceiros tradicionais? 

A marcha da insensatez no Brasil levou o veleiro do país ao vórtice de seu possível afundamento pela inflação crescente, pela fuga continuada de capitais e de investimentos, ao descontrole dos gastos públicos por motivos puramente eleitoreiros, por uma série de outros fatores que nada têm a ver com uma agenda inadiável de recuperação econômica e de respeito ao funcionamento normal das instituições, em função da obsessão eleitoral de quem passa por chefe de um Executivo que navega errante, ao sabor das correntes da política. O Brasil está perdido num oceano de incertezas, sem bússola e sem mapas de navegação, levado pelos ventos erráticos da vontade de um homem que não tem a menor noção dos deveres dos governantes para com os governados. O declínio é visível e aparentemente encomendado, dada a ausência de qualquer objetivo compatível com os interesses do país, um velejar incessante pelos mares da loucura autoproduzida por quem tomou a direção do veleiro nacional. 

Até quando a sociedade brasileira vai navegar ao sabor dos ventos, sem qualquer atenção a seus problemas mais prementes? Até quando vamos permitir essa marcha ao desastre? 

 

 

Paulo Roberto de Almeida

[Brasília, 17 setembro 2021, 3 p.; 1000 palavras.]


Repensar las relaciones internacionales tras la pandemia - Bertrand Badie (Anuario Cidob 2021)

Repensar las relaciones internacionales tras la pandemia

CIDOB, Anuario Internacional 2021
Barcelona Centre for International Affairs
https://www.cidob.org/en/articulos/anuario_internacional_cidob/2021/repensar_las_relaciones_internacionales_tras_la_pandemia
Publication date:
07/2021
Author:
Bertrand Badie, profesor, Institut d’Études Politiques, París
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A lo largo de las últimas décadas se alcanzó un consenso prácticamente unánime entre profesionales y analistas de la política internacional: las relaciones internacionales podían ser interpretadas como una suerte de competencia ancestral entre estados-nación, abocados al cuestionamiento permanente del poder. Bajo este prisma, la paz se vio reducida a la simple ausencia de guerra, un precario, sutil y más bien cínico equilibrio de fuerzas que poco a poco derivó en el “equilibrio del terror” de la Guerra Fría. El único lenguaje aceptado fue el de los intereses nacionales contrapuestos, apoyados por recursos militares cuyo efecto disuasorio u ofensivo resultaba decisivo: ¡Thomas Hobbes podía descansar en paz, con la aureola del gran erudito de la filosofía política moderna! Se impuso la geopolítica, basada en el triple postulado de que las relaciones internacionales se regían por las normas del juego interestatal, la competencia por el poder y la afirmación y defensa territorial.

Sin embargo, ninguna de estas premisas nos sirve ya para comprender la complejidad del mundo actual. Todas ellas se han visto, como mínimo, cuestionadas, cuando no sacudidas o incluso fulminadas. Y posiblemente, la vertiente más trágica de las relaciones internacionales contemporáneas radica en la negativa casi dogmática de los príncipescontemporáneos a tomar en consideración estos cambios; su obstinada determinación en creer que el mundo de hoy se mide y se aborda como el de ayer. Si nos fijamos en los postulados de la descripción clásica del orden internacional, nada resiste el escrutinio contemporáneo: los estados ya no son los únicos actores significativos en las relaciones internacionales y el lugar de los militares es cada vez más incierto y menos decisivo, siendo la victoria en el campo de batalla un suceso excepcional. Paradójicamente, las potencias dan muestras de su impotencia, el equilibrio de fuerzas resulta inestable y los intereses nacionales se ven cada vez más superados por otros más globales y más solidarios con todo el planeta; en definitiva, las cuestiones prioritarias apelan más a la humanidad global que a la nación particular.

Rupturas cada vez más profundas

En realidad, este mundo hobbesiano o westfaliano (consagrado por la Paz de Westfalia, en 1648), que se creía eterno, pasará a la historia como una mera secuencia de la historia de la humanidad, aquella en la que Europa creyó confundirse con el mundo y forjó su configuración a partir de la lucha constante entre los nacientes estados-nación. Su posterior injerto en una América de radical europeo no modificó la situación. Sin embargo, tres factores han emergido para trastocarlo todo: la descolonización, la despolarización y, sobre todo, la globalización, sometida actualmente a un proceso crítico de revisión.

La descolonización fue la primera etapa de esta deconstrucción: aconteció de manera discreta y para muchos inadvertida, ya que se creía entonces –no sin cierta arrogancia– que era esencialmente un fenómeno “periférico”, que tenía lugar en el ignoto “tercer mundo”. Sin embargo, los procesos de descolonización daban ya pistas de las carencias del paradigma geopolítico de entonces: grandes potencias eran derrotadas por otras más débiles, naciones no occidentales ganaban relevancia en el sistema internacional, veíamos también a sociedades que se movilizaban al margen de los estados –de su diplomacia y de su ejército­, todos ellos fenómenos que se consolidaban ajenos a un sustrato westfaliano. Como consecuencia de la descolonización –que fue súbita e improvisada, se alumbraron estados con poca legitimidad y cuya capacidad redistributiva ha resultado ser tremendamente limitada.

En segundo lugar, la despolarización –resultante de la caída del Muro de Berlín en 1989, hizo que se derrumbara la última muralla hobbesiana. La bipolaridad, introducida tras la Segunda Guerra Mundial, prolongó artificialmente el juego geopolítico entre dos superpotencias militares confrontadas físicamente sobre el terreno en torno al denominado “telón de acero”. Hasta 1989, las dos potencias rivales se alimentaron mutuamente. La noción de los dos “bandos” en lucha encajaba perfectamente con la noción de los dos “gladiadores” que popularizó el Leviatán. Solo los gigantes militares debían ser tenidos en cuenta: los demás estados eran poco más que peones, despreciando el hecho de que algunos habían desarrollado ya una remarcable capacidad económica.

Sin embargo, ha sido la globalización –el tercer factor disruptivo– la que ha puesto todo el paradigma en tela de juicio. Aunque es difícil de definir, sabemos que sus principales elementos constitutivos son la inclusión, la interdependencia y la movilidad. Y la incorporación de un número cada vez mayor de estados a un único sistema interconectado ha provocado la revolución más profunda que haya afectado nunca al orden internacional: la creación de un descomunal sistema social de alcance planetario, que por ende, ha resultado también ser el más desigual de todos los sistemas sociales implantados hasta la fecha. Como consecuencia de la pléyade de desigualdades que se evidenciaron (económica, sanitaria o educativa) la agenda internacional se vio empujada a cambiar de rumbo: las cuestiones sociales internacionales fueron de repente más decisivas para la estabilidad y la paz mundial que los misiles acumulados aquí y allá, o que el sacrosanto equilibrio de poder. Por lo tanto, para sobrevivir, la diplomacia debería haber acompañado estos cambios, algo que en la práctica no ha sabido hacer.

Por su parte, el efecto de la creciente interdependencia ha sido notable y transformador: al relativizar la soberanía, ha ampliado la noción de dependencia, que ya no vinculaba solamente al débil con el fuerte, sino que ahora otorgaba también un valor a la relación inversa. Con el avance de la globalización, los poderosos de antaño han pasado a depender también, al menos en parte, de los más débiles. Los nuevos conflictos, generados por socios con modestas capacidades estratégicas, han tenido un efecto debilitador en las potencias consolidadas, como hemos visto en Irak, Yemen, Afganistán y el Sahel. Asimismo, el ciclo de las crisis económicas ha puesto cada vez más a los fuertes a merced de los más débiles; el viejo entramado de alianzas de protección se ha visto amenazado por la creciente autonomía de las potencias más pequeñas, como por ejemplo, en la relación entre Estados Unidos e Israel, cada vez más distante del modelo del “hermano mayor” protector que impone la línea a seguir.

Por último, la creciente movilidad de las personas, los bienes, las imágenes y las ideas, estimulados por el progreso tecnológico, los transportes y, sobre todo, la comunicación, especialmente la digital, está creando un nuevo mundo, alejado de la geopolítica de antaño y notablemente desterritorializado. Lo internacional es cada vez más virtual y menos territorial; las fronteras ya no son los instrumentos de control casi absoluto que fueron en su día, mientras que los imaginarios, las solidaridades e incluso las luchas se desnacionalizan cada vez más, rompiendo así los paradigmas del pasado como la vieja dupla “war-making/state-making” descrita en su día por el historiador estadounidense Charles Tilly 1.

La invención de la seguridad global

El concepto de seguridad, que en su versión tradicional era la piedra angular de las antiguas relaciones internacionales, también se está rediseñando por efecto del nuevo paradigma. En el esquema más clásico, la seguridad solo se concebía en términos nacionales. Se imponía como protección imprescindible en la beligerancia interestatal. De nuevo, y desde una perspectiva esencialmente hobbesiana, es por el mero hecho de existir el Estado que este ya está expuesto automáticamente a la amenaza potencial que le plantean sus semejantes. Si el pacto social reduce la probabilidad de violencia doméstica interindividual, la ausencia de un contrato entre soberanos los condena a vivir bajo la amenaza mutua y la inseguridad perpetua. La arena internacional ha sido durante varios siglos el escenario de los "estados gladiadores“ y ha configurado de este modo la geopolítica clásica. Sin embargo, como consecuencia de los nuevos factores que hemos identificado, ha surgido gradualmente un tipo diferente de seguridad, que ha reemplazado la tradicional amenaza nacional por una amenaza global. Cuatro parámetros inéditos han cambiado entonces la definición de la construcción de la seguridad tradicional.

En primer lugar, la amenaza ya no se basa únicamente en la presencia de un enemigo potencial o real. El vínculo absoluto que solía establecerse entre inseguridad y hostilidad carece de sentido hoy en día, puesto que el riesgo contemporáneo responde mucho más a las disfunciones del sistema que a las pérfidas intenciones de otros. La inseguridad sanitaria, la ambiental (responsable de cerca de 8 millones de muertes al año según la OMS) y la alimentaria (otros 9 millones de muertes anuales) se cobran hoy muchas más víctimas que la guerra y el terrorismo juntos. Y, sin embargo, un virus y su evolución hacia una pandemia, al igual que el cambio climático, son amenazas sistémicas cuyo detonante humano se explica más por la suma de negligencias individuales que por una hostilidad deliberada hacia una comunidad concreta. Sin embargo, ya sea por automatismo o por malicia política, vemos como de nuevo estas amenazas se procesan con el filtro de lo nacional, a menudo para estigmatizar al otro y cerrar filas –por ejemplo, hablando del “virus chino”– lo que resta más que suma a su resolución. En este contexto, el reflejo geopolítico busca más preservar el viejo orden que comprender y mitigar el impacto de las nuevas amenazas. Es por ello por lo que lo más sabio en este caso sería promover una disociación radical entre los dos conceptos: inseguridad y enemistad.

En segundo lugar, la inseguridad global ya no es fruto de una estrategia deliberada o de la feroz competencia entre estados. Sucede más bien al contrario, es la dinámica competitiva la que se vuelve disfuncional. Debido a que la noción de amenaza ha cambiado, la lógica de suma cero pierde su sentido: lo que yo gano ya no lo pierde necesariamente el otro, ni viceversa. La estrategia del jinete solitario se vuelve bruscamente contra quien la emplea. Ganar la “guerra de las vacunas” a costa de los demás es solo una victoria pírrica que, a la larga, aumenta la vulnerabilidad de quien toma la iniciativa. Sucede lo mismo con la deforestación masiva, que genera pingües beneficios a corto plazo que con el paso del tiempo son contraproducentes. En definitiva, las cuestiones de esta naturaleza no pueden resolverse a nivel nacional, sino que exigen mecanismos de gobernanza global eficaces y que adopten una perspectiva win-win, que resulta impopular entre los políticos ya que empaña su balance de resultados de corto plazo.

En tercer lugar, uno de los atributos de las nuevas amenazas es que tienden a desmilitarizar parcialmente las políticas de seguridad. Y esto da lugar a una paradoja importante: lejos de ser la expresión de una lucha por el poder, los nuevos conflictos surgen precisamente de las carencias y las debilidades del sistema, como la ausencia de seguridad global, alimentaria, económica o ambiental. Mientras que en el pasado los riesgos de seguridad internacional se abordaban esencialmente con intervenciones militares, la solución a estos nuevos conflictos reside más bien en actuaciones en el ámbito social.

Por último, estas nuevas amenazas ya no se dirigen contra un territorio limitado, sino contra la humanidad en su conjunto, y a pesar de los espejismos que prometen algunas opciones políticas, ni los muros ni el encierro son una protección efectiva. Los espacios abiertos se imponen a la territorialidad cerrada de ayer: donde antes el encierro ofrecía virtudes estratégicas, ahora es la integración la que aporta soluciones nuevas. Al mismo tiempo, la seguridad adquiere cada vez más importancia como bien común de la humanidad, entendida como una comunidad cada vez más definida e impulsada por la “solidaridad de facto” que surge de la exposición común a un mismo peligro, ya sea un virus, la hambruna, la contaminación o la desertificación. Esta comunalización de la seguridad es el sustrato de una cultura de seguridad compartida, una especie de opinión pública globalizada.

Sin embargo, en esta evolución de la seguridad tradicional, hablamos en todo momento de un proceso que sigue siendo frágil. La conciencia respecto a las nuevas amenazas ha surgido de manera progresiva y desigual. En relación con las cuestiones ambientales, las evidencias tomaron forma a finales de los sesenta, con los primeros vertidos de petróleo, como el del buque Torrey Canyon, de pabellón liberiano, que contaminó las costas de Francia y el Reino Unido en marzo de 1967. La conmoción fue grande; las imágenes de playas mugrientas y aves agonizantes tuvieron un profundo impacto sobre la opinión pública e impulsaron la creación de las primeras ONG ambientalistas, convirtiendo la defensa de la naturaleza en una causa mundial. Otras catástrofes de la misma índole, agravadas por distintas formas de contaminación, en Seveso (1976), Bhopal (1984) o Chernóbil (1986), también modelaron la percepción de inseguridad ambiental que nos ocupa en la actualidad. Ahora bien, la relación del público general con estas cuestiones siguió siendo algo distante, ya que la inmensa mayoría de la población mundial nunca se había visto expuesta directamente a catástrofes como las enunciadas. La concienciación era un fenómeno intelectual. Del mismo modo, también para los dirigentes, la gestión global de las cuestiones ambientales representaba un coste político importante, cuyos beneficios se dilataban a medio o incluso a largo plazo y, por lo tanto, fuera de los tiempos que marcan las lógicas electorales. Lo que en la práctica inhibía actuaciones efectivas más allá de promesas retóricas y compromisos vagos por los que seguramente no tendrían que rendir jamás cuentas.

La crisis pandémica actual debería haber tenido un efecto muy diferente. Por primera vez en la historia de la humanidad, el mismo riesgo y, de hecho, el mismo miedo, golpeó casi simultáneamente a toda la población mundial, sin excepción, y con una fuerza y una imprevisibilidad comparables, cebándose en ricos y pobres, fuertes y débiles, activos e inactivos. La amenaza sanitaria no ha sido abstracta ni teórica: ha creado un peligro íntimo y palpable. Aunque algunos gobiernos han intentado nacionalizarla e interpretarla según los parámetros de la vieja geopolítica, a nadie se le escapa que los impactos de la nueva seguridad han mutado y afectan a todas las dimensiones de la vida social. Todo el mundo ha asistido a la interacción acelerante de los peligros globales: la inseguridad sanitaria ha repercutido directamente en la inseguridad económica, agravando la pobreza y, consecuentemente, la inseguridad alimentaria y educativa. Tampoco ha pasado por alto su relación más o menos directa con la inseguridad ambiental. Sin embargo, lo que podría haber sido un punto de inflexión importante en el funcionamiento del sistema internacional, no tuvo el impacto transformador que cabría esperar. ¿Por qué? 

La rigidez del sistema internacional

Muchos creían que la pandemia, que surgió a principios de 2020, sacudiría el orden internacional, reformularía el concepto de seguridad global y expandiría la agenda y las capacidades del multilateralismo. Para sorpresa de algunos, no fue así: el nuevo paradigma no ha sido asumido por ninguno de los dirigentes del planeta; la OMS, en lugar de verse reforzada, se ha visto vilipendiada por su “incapacidad” e incluso ha sido acusada de plegarse a los intereses de alguno de sus estados miembros. Al mismo tiempo, en todas partes hemos visto resurgir los nacionalismos, buscando alimentar de nuevo la rivalidad internacional: la guerra de las mascarillas, la guerra de las pruebas diagnósticas, la guerra de las vacunas, el cierre de las fronteras, las mutuas acusaciones de responsabilidad de la pandemia o el cuestionamiento de las cifras oficiales son ejemplos de ello.

El retorno a la crispación del sistema internacional tiene fácil explicación. En primer lugar, se debe a un factor cultural, al del hábito de los estados westfalianos a medir cualquier fenómeno internacional en términos de poder y competencia. El “efecto poder” actuó en detrimento de los Estados del Viejo Mundo, agravando los efectos de la pandemia. También China hizo suya esta visión cuando buscó beneficiarse de una “diplomacia médica” tejida a conciencia. Sin duda, la sensación de emergencia favoreció el instinto conservador: había que reaccionar con rapidez y contundencia, y para ello se recurrió a las viejas prácticas de siempre en lugar de apostar por fórmulas menos ensayadas, pero más innovadoras. Y cómo no, algunos dirigentes no tardaron en recurrir a los chivos expiatorios de siempre para ganar puntos frente a la opinión pública: culpar a un contubernio de chinos, inmigrantes y extranjeros es un recurso que aún hoy sigue dando sus frutos.

Sin embargo, lo esencial se dirimió en otra parte. El sistema internacional no es solo una cuestión de cultura y costumbre: también está estructurado por instituciones y normas que canalizan el poder de unos y otros y, por consiguiente, también de aquellos cuya ocupación principal es no perderlo. Las grandes potencias se han distinguido así por resistirse a la idea de una gobernanza global, promovida por una coalición más poblada pero menos eficaz, que abarca al personal de las instituciones internacionales, la emanación de las sociedades civiles –especialmente las ONG, y también a algunas “potencias globalizadas” que intentan apoyarse en la globalización para lograr un nuevo estatus. Esta coalición no ha logrado transformar el núcleo duro del sistema internacional hasta la fecha, pero sí ha logrado dar visibilidad a la nueva agenda internacional, confiriendo todo el protagonismo a la idea de globalidad. Los primeros atisbos de esta coalición aparecieron en los años setenta y ochenta, cuando del seno de la “sociedad civil global” emergieron las primeras ONG con un alcance plenamente mundial (Greenpeace en 1971, Worldwatch en 1974, Conservation International en 1984, etc.), al tiempo que las Naciones Unidas se dotaron de comisiones de expertos y personalidades relevantes donde debatir acerca de cuestiones como el desarrollo internacional (por ejemplo, la Comisión Brandt), el medio ambiente (Comisión Brundtland) o la gobernanza global, creando el sustrato del informe Our Global Neighborhood (1995)2.

Todo ello dará lugar también a un nuevo lenguaje, una nueva gramática con la que la opinión pública mundial y una emergente clase política internacionalizada estarán cada vez más familiarizados. En la misma dirección apuntaron también el “Discurso del Milenio” de Kofi Annan, los ocho Objetivos de Desarrollo del Milenio (ODM) derivados de este, y los diecisiete Objetivos de Desarrollo Sostenible (ODS) que impulsó Ban Ki-moon en 2015 y que se fijaron como meta el 2030.

Sin embargo, pasar a la acción y producir políticas públicas realmente innovadoras ha resultado ser mucho más difícil. En relación con el multilateralismo de la ONU, las resistencias provienen esencialmente del Consejo de Seguridad, que se niega obstinadamente a redefinir y ampliar su concepción de la seguridad, y sigue anclado en nociones de 1945, basadas exclusivamente en el interestatismo, las relaciones de poder y la interpretación geopolítica y estratégica que imperaban al término de una sangrienta guerra mundial. Las cuestiones de seguridad humana no se introdujeron en el Consejo hasta muy tarde: por primera vez en julio de 2000 (Resolución 1.308 del Consejo de Seguridad de las Naciones Unidas) y en referencia a la epidemia de VIH/sida, especialmente aguda en África. Aunque el Consejo admitió entonces que la enfermedad era una amenaza para la paz y la estabilidad mundiales, apeló únicamente al riesgo que suponía para las tropas desplegadas en Operaciones de Mantenimiento de la Paz. Dos tímidas resoluciones sobre el ébola tampoco cambiaron la situación. El golpe final llegó en plena crisis de la COVID-19 cuando, en marzo de 2020, el Consejo no logró aprobar una resolución contundente sobre la amenaza letal que suponía para la humanidad. Del mismo modo, los devastadores problemas de seguridad alimentaria no se abordaron hasta mayo de 2018 (Resolución 2.417 del Consejo de Seguridad de las Naciones Unidas), ¡73 años después de la creación de las Naciones Unidas! Incluso entonces, el tema se abordó tangencialmente, para denunciar el uso del hambre como arma en los conflictos militares. Respecto a los debates ambientales, los primeros tuvieron lugar en 2007 y desde entonces han sido difíciles e intermitentes, llevando al delegado ruso, Vasili Nebenzia, a proclamar, en enero de 2019, que el examen de estas cuestiones por parte del Consejo de Seguridad era “excesivo” y “contraproducente”.

La inhibición del Consejo de Seguridad también tiene lugar respecto a la política exterior de los estados, sobre todo de las potencias clásicas; esta está estimulada por la ola neonacionalista y populista que avanza simultáneamente en las viejas potencias y en las emergentes (Brasil, India, Turquía, etc.). Este fenómeno se debe en gran medida a los excesos neoliberales de la globalización y a la dificultad que tienen los Estados para “globalizar” su poder, es decir, encontrar su encaje en el nuevo escenario global. En cambio, asistimos a un repunte de actores no estatales, de las interacciones sociales y de las movilizaciones ciudadanas que reaccionan a la polarización política: hoy en día, la esfera social se transforma más rápido que la política y le impone de facto reformas que no pueden subestimarse. La Primavera Árabetuvo su origen en movilizaciones sociales sin una organización política en la base. Todo el año 2019 estuvo salpicado de movimientos comparables en América Latina, Oriente Medio, el norte de África e incluso en Francia, donde proliferó el movimiento de los “chalecos amarillos”. Todos estos movimientos se han alimentado de la globalización, han aprovechado las oportunidades que brindaba y en ella han reflejado su crítica; junto a las ONG y a las redes globales, sostienen la defensa de un enfoque más social de las cuestiones internacionales y más abierto a las cuestiones planetarias.

Frente a ello, los estados han optado por la resiliencia, es decir, la capacidad de encajar los golpes y absorber sus impactos, para salvar el orden vigente y evitar transformarlo. La decisión frente a la disyuntiva entre abrazar el cambio o no, oscila entre dos visiones del futuro: por un lado, el miedo al desastre inmanente; por el otro, la creencia de que la reforma podría traer nuevas oportunidades. Ambas visiones tienen sus pros y sus contras: el miedo puede llevar tanto a una revisión de las prácticas y los instrumentos, como a la crispación y el repliegue nacionalista. La sensación de oportunidad puede llevar tanto a la adhesión a un nuevo orden percibido como más fiable como a la aparición de nuevos incentivos para volver a “ir por libre”. Será la historia la que tendrá la última palabra. 

Notas:

1- N. del E.: según el paradigma expresado por el historiador Charles Tilly, la construcción del Estado y el estado de guerra son dos dinámicas que mantienen una relación positiva, es decir, se refuerzan mutuamente. Tilly llega a preguntarse en un aforismo: “¿Quién fue primero, la guerra o el Estado?”

2- El informe se encuentra accesible en el siguiente enlace: http://www.gdrc.org/u-gov/global-neighbourhood/