O brasileiro voador e a marcha da insensatez
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
O Estado de S. Paulo (14/10/2021; ISSN: 1516-2931; página de Opinião; link: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-brasileiro-voador-e-a-marcha-da-insensatez,70003867264?fbclid=IwAR2CtQC_VxSzKho3HV5DS5skHx0OEPogkC7WxsvUz716DoccM06I3eEzl9A). Relação de Originais n. 3978.
O título evoca uma lenda e um livro de história. A lenda é a do Holandês Voador, um veleiro holandês do século 18, cujo capitão enlouqueceu ao singrar os mares sem destino, passando a atrair outros navios, arrastando-os a uma destruição certeira no fundo do oceano. O livro é o da historiadora americana Barbara Tuchman, A Marcha da Insensatez(1984), que trata dos erros, falhas, ilusões e até crimes de governos que insistem em se afastar da realidade dos fatos para perseguir suas alucinações na condução dos negócios do Estado.
O presidente brasileiro é o holandês voador, que leva o veleiro do Brasil a uma destruição quase certeira, ao insistir em loucuras e erros de administração. Em lugar de tratar dos problemas do país – inflação, falta de crescimento, desemprego, pandemia, déficits orçamentários e aumento da dívida pública –, insiste em perseguir suas obsessões: armamentismo, voto impresso, devastação de reservas indígenas pela mineração e pelo garimpo ilegal, defesa de notícias falsas para seduzir e manter sua clientela, desprezo pela vida humana em face da pandemia e reeleição a todo custo, para escapar de processos por crimes cometidos, seus e da família.
O Brasil é o veleiro desgovernado, levado ao vórtice de um afundamento por uma administração não apenas caótica, mas totalmente desprovida de direção, tendo no timão um desequilibrado, fixado apenas em suas obsessões. A insensatez do capitão do navio fantasma insiste em submeter dois outros poderes à sua agenda destrambelhada, na qual todos devem ceder à miragem de um crescimento imaginário, bastando explorar as fabulosas riquezas escondidas da Amazônia, liberdade total em meio à pandemia, sem limites às despesas do Estado, cada qual cuidando de sua segurança por meio de suas próprias armas.
A visão do capitão do navio é a de uma guerra de todos contra todos, concepção hobbesiana da política, na qual ganha quem se impõe pela força das armas, não pela via do funcionamento das instituições, pelo respeito às leis estabelecidas, dentro dos limites do Estado. Tal visão confrontacionista foi pela primeira vez exposta no jantar na embaixada em Washington, em 2019, quando o capitão confessou sua visão peculiar como gestor, como sendo a de destruir muito do que existia, antes de se pensar em construir qualquer coisa. O que existia eram: direitos dos indígenas sobre suas reservas, limites à capacidade financeira do Executivo, preservação dos recursos naturais ou exploração sustentável, controle de armas, normas para tráfico e a segurança dos passageiros, inclusive crianças, livre trabalho de uma imprensa investigativa numa democracia sem adjetivos, enfim, o império da lei em lugar da imposição da vontade individual de um dirigente de plantão.
O Brasil vem sendo levado à marcha da insensatez nos palanques eleitorais do capitão – sustentados com dinheiro público – assim como ao isolamento no plano internacional por sua postura desvinculada das boas normas do relacionamento diplomático e de compromissos internacionais já aceitos pelo Brasil, sobretudo nas áreas ambiental e de direitos humanos. A maior loucura foi o caos no enfrentamento da pandemia, levando o Brasil, com apenas 2,7% da população mundial, a exibir mais de 12% das vítimas da Covid, atrás apenas dos Estados Unidos, penalizado por uma mentalidade antivacinal. O capitão é o último negacionista do planeta.
Até quando as instituições continuarão sendo atacadas pelo capitão, num desrespeito que beira o insulto e os ataques mais insidiosos? Até quando brasileiros ingênuos serão levados à morte pelo seu comportamento irresponsável na pandemia? Até quando continuará a comprar o apoio dos legisladores, violando o processo orçamentário? Até quando a diplomacia suportará as atitudes irresponsáveis do capitão no plano externo, deixando o Brasil isolado no diálogo com todos os seus grandes parceiros?
A marcha da insensatez levou o veleiro do Brasil ao vórtice de um afundamento pela inflação crescente, pela fuga de capitais e de investimentos, pelo descontrole dos gastos públicos por motivos eleitoreiros, fatores que nada têm a ver com a agenda da retomada econômica. O desrespeito às instituições resulta da obsessão eleitoral de um capitão que navega errante, ao sabor das correntes políticas. O veleiro está perdido num oceano de incertezas, sem bússola e sem mapas de navegação, levado pelos ventos erráticos da vontade de um capitão que não tem a menor noção dos deveres dos governantes para com os governados. O declínio é visível e encomendado, dada a ausência de qualquer objetivo compatível com os interesses do país, um velejar incessante pelos mares da loucura autoproduzida por quem tomou a direção do veleiro nacional.
Até quando a sociedade brasileira vai navegar ao sabor dos ventos, sem qualquer atenção a seus problemas mais prementes? Até quando vamos permitir essa marcha ao desastre?
[Brasília, 3978: 20 setembro 2021, 2 p.]
Versão original:
O brasileiro voador e a marcha da insensatez
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
O título evoca tanto uma lenda quanto um livro de história. A lenda é a do Holandês Voador, o capitão de um veleiro holandês do século XVIII, que enlouqueceu ao singrar os mares sem destino, passando a atrair outros navios com sua luz bruxuleante e arrastando-os a uma destruição quase certeira no fundo do oceano. O livro é o da historiadora americana Barbara Tuchman, A Marcha da Insensatez (1984), que trata, da guerra de Troia ao Vietnã, dos erros, falhas, ilusões e até crimes de governos que insistem em se afastar da realidade dos fatos para perseguir suas próprias alucinações na condução dos negócios do Estado.
O presidente brasileiro é o nosso holandês voador, que leva o veleiro do Brasil a uma destruição quase certeira, ao insistir em suas loucuras e erros de administração: em lugar de tratar dos problemas reais do país – inflação, falta de crescimento, desemprego, efeitos da pandemia, déficits orçamentários e aumento da dívida pública –, ele insiste em perseguir suas mais loucas obsessões: armamentismo, voto impresso, devastação de reservas indígenas pela mineração e pelo garimpo ilegal, defesa e promoção de notícias falsas para seduzir e manter sua clientela eleitoral, desprezo pela vida humana no enfrentamento da pandemia e reeleição a todo custo, para escapar de possíveis processos por crimes cometidos, seus e da sua família.
O Brasil é o veleiro desgovernado que está sendo levado ao vórtice de um possível afundamento por uma administração não apenas caótica, mas totalmente desprovida de direção, conduzida por um desequilibrado que tem apenas em mente aquelas suas obsessões, em lugar da correta gestão do Estado. A insensatez do capitão do nosso navio fantasma insiste em submeter os dois outros poderes à imposição de sua agenda destrambelhada, na qual tudo e todos deveriam ceder à miragem de um crescimento fantástico, bastando que se explorassem fabulosas riquezas escondidas no fundo da Amazônia, que se deixassem todos livros para trabalhar em meio a uma pandemia, que não houvesse limites às despesas do Estado e onde todos seriam livres para garantir sua própria segurança individual e se defender com suas próprias armas às ameaças representadas pelos meliantes habituais das nossas cidades, ou que honestos agricultores possam enfrentar tropas do MST decididos a invadir suas terras.
A visão bélica do presidente é a de uma guerra de todos contra todos, uma concepção hobbesiana da vida política, na qual ganha sempre aquele que se impõe com a força da vontade, não com o funcionamento correto das instituições, o respeito às leis estabelecidas e o atendimento dos limites das possibilidades do Estado. Essa visão confrontacionista foi pela primeira vez exposta no célebre jantar, em 2019, na embaixada do Brasil em Washington, na qual o presidente confessou sua visão peculiar de sua obra de gestor, como sendo, primeiro, a de destruir muito do que existia, antes de se pensar em construir qualquer coisa. O que existia eram os direitos dos indígenas sobre suas reservas, limites aos poderes administrativos e financeiros do Executivo, a preservação dos recursos naturais ou sua exploração de modo sustentável, o controle dos meios de matar, simples normas para a circulação de automóveis e a segurança dos passageiros, inclusive e sobretudo crianças, o livre trabalho de uma imprensa investigativa numa democracia sem adjetivos, enfim, o império da lei em lugar da imposição da vontade individual de um dirigente de plantão.
O Brasil vem sendo levado a uma marcha da insensatez pelos palanques eleitorais contínuos do presidente – sustentados pelo dinheiro público – assim como ao isolamento completo no plano internacional por uma postura absolutamente desvinculada das boas normas do relacionamento diplomático e em relação a compromissos internacionais já aceitos pelo Brasil, sobretudo nas áreas ambiental e de direitos humanos. A maior loucura foi, evidentemente, o caos existente no enfrentamento da pandemia o que levou o Brasil, tendo apenas 2,7% da população mundial, a exibir mais de 12% das vítimas da Covid registradas no planeta, atrás apenas dos Estados Unidos, igualmente penalizado por uma mentalidade antivacinal e contrária aos cuidados sanitários básicos, que aqui é constantemente estimulada pelo próprio chefe de Estado, possivelmente o último negacionista do planeta.
Até quando as instituições consentirão em ser atacadas por quem dirige um dos três poderes e deveria respeitar a independência dos dois outros, num desrespeito que beira o insulto e os ataques mais insidiosos? Até quando brasileiros ingênuos ou subservientes às loucuras do chefe de Estado serão levados à morte por um comportamento irresponsável na pandemia? Até quando os cuidados com os estratos mais frágeis da população continuarão a ser deixados de lado, ao mesmo tempo em que o chefe do Executivo insiste em comprar o apoio dos legisladores violando o processo orçamentário por condutos paralelos, clandestinos das verbas públicas? Até quando a cidadania responsável suportará as atitudes irresponsáveis do chefe de Estado no plano internacional, o que deixou o Brasil completamente isolado no diálogo com seus grandes parceiros tradicionais?
A marcha da insensatez no Brasil levou o veleiro do país ao vórtice de seu possível afundamento pela inflação crescente, pela fuga continuada de capitais e de investimentos, ao descontrole dos gastos públicos por motivos puramente eleitoreiros, por uma série de outros fatores que nada têm a ver com uma agenda inadiável de recuperação econômica e de respeito ao funcionamento normal das instituições, em função da obsessão eleitoral de quem passa por chefe de um Executivo que navega errante, ao sabor das correntes da política. O Brasil está perdido num oceano de incertezas, sem bússola e sem mapas de navegação, levado pelos ventos erráticos da vontade de um homem que não tem a menor noção dos deveres dos governantes para com os governados. O declínio é visível e aparentemente encomendado, dada a ausência de qualquer objetivo compatível com os interesses do país, um velejar incessante pelos mares da loucura autoproduzida por quem tomou a direção do veleiro nacional.
Até quando a sociedade brasileira vai navegar ao sabor dos ventos, sem qualquer atenção a seus problemas mais prementes? Até quando vamos permitir essa marcha ao desastre?
Paulo Roberto de Almeida
[Brasília, 17 setembro 2021, 3 p.; 1000 palavras.]