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terça-feira, 19 de setembro de 2023

Falando de "moeda comum": como surgiu o euro (2000) - Paulo Roberto de Almeida

 Em 2000, ainda antes que o euro fosse lançado, eu já escrevia, de forma bastante otimista, sobre o euro,  a moeda que deveria tr sido lançada em 1975, mas que andou sofrendo pelo caminho, a partir da derrocada da ordem de Bretton Woods.

Eis o texto que escrevi, transcrito abaixo: 

719. “Euro: a moeda europeia”, Washington, 14 janeiro 2000, 6 p. Texto de verbete para a Enciclopédia de Direito Brasileiro. Revisto em 30/09/2000, para refletir o resultado negativo do plebiscito na Dinamarca e a decisão pela entrada da Grécia na UEM. Publicado em Carlos Valder do Nascimento e Geraldo Magela Alves (coords.), Enciclopédia de Direito Brasileiro, 2. volume: Direito Comunitário, de Integração e Internacional (Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002; ISBN 85-309-0860-0), p. 214-219. Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44555431/O_euro_a_moeda_europeia_2002_). Relação de Publicados n. 330.


O euro: a moeda europeia

  

Paulo Roberto de Almeida

Washington, 14 janeiro 2000.

Publicado em Carlos Valder do Nascimento e Geraldo Magela Alves (coords.), Enciclopédia de Direito Brasileiro, 2. volume: Direito Comunitário, de Integração e Internacional (Rio de Janeiro: Forense, 2002; ISBN 85-309-0860-0), p. 214-219. Relação de Publicados n. 330.

 

A inauguração do euro, em janeiro de 1999, como moeda oficial — embora ainda sob forma escritural até o final de 2001 — de onze dos quinze países-membros da União Europeia, seguida de sua introdução efetiva, a partir de janeiro de 2002, como meio circulante único dos integrantes da chamada “Euroland”, representam, para a Europa e para o mundo, o início de uma fase de grandes transformações no sistema monetário internacional, até agora marcado pela presença dominante do dólar enquanto instrumento de intercâmbio, reserva de valor e unidade de referência para dezenas de países integrando o sistema financeiro mundial. Essa etapa recente do movimento de unificação monetária na Europa ocidental deriva de um longo processo de aproximação econômica que pode ser remontado à visão integracionista de Jean Monnet, do final dos anos 1940, e à concepção política que presidiu desde então, à integração europeia.

Com efeito, ainda que não mencionada expressamente nos primeiros instrumentos jurídicos da integração europeia – o Tratado da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), de 1951, e os Tratados de Roma, de 1957 – o projeto de um “poder monetário” estava implícito nos propósitos a vocação “unionista” que foram dando sustentação econômica ao alargamento progressivo dos campos de intervenção da então Comunidade Europeia. Os primeiros seis países que assinaram os Tratados de Roma (Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos) já previam trabalhar com políticas econômicas comuns, nomeadamente no domínio da agricultura. Esses campos foram sendo depois ampliados para novos domínios, como os da indústria e da ciência e tecnologia, ainda que não com o monitoramento estrito em matéria de organização da produção e da comercialização como na agricultura ou com o abandono completo de soberania em matéria de política comercial que representou a concretização da união aduaneira, em 1968, e do mercado comum pleno nas etapas subsequentes.

O movimento “unificacionista” no campo monetário começa efetivamente a caminhar em meados dos anos 1960 — em pleno regime de paridades fixas do sistema de Bretton Woods –, a partir do plano Barre (1967-69) e do relatório Werner de união monetária (de 1968, mas aprovado em 1970 e prevendo sua realização num espaço de dez anos). Ambos foram tornados inexequíveis pelo desmantelamento, entre 1971 e 1973, do sistema de Bretton Woods que, ao operar a desvinculação do dólar de seu valor fixo em ouro, significou igualmente a interrupção desse processo por etapas de unificação das moedas nacionais da então Comunidade Europeia.

No regime de livre flutuação de moedas que se seguiu, os países europeus avançaram nos esforços de coordenação, estabelecendo primeiro a “serpente dentro do túnel” e depois, como resposta política à crise do sistema monetário internacional, o Sistema Monetário Europeu (1979). O SME – com um número variável de países participantes, segundo as épocas – funcionava segundo um mecanismo de banda cambial ajustável entre as moedas participantes (tendo o marco alemão como âncora), mas com paridades estreitamente correlacionadas entre si. De fato, durante a maior parte de existência do SME, o mundo viveu em constante turbulência monetária, ocorrendo grandes variações nos valores respectivos das principais moedas, o deutsche mark, o iene japonês e o dólar dos Estados Unidos. No interior do próprio SME, contudo, as margens de variação recíproca estabelecidas para moedas como o marco alemão e o florim holandês eram, obviamente, bem menores do que aquelas permitidas para a flutuação de moedas mais “fracas” como a lira italiana. 

Em 1986, a adoção do acordo conhecido como “Ato Único Europeu” deslancha o processo de unificação definitiva do mercado comum, instituindo uma série de medidas adicionais de liberalização econômica, em especial na prestação de serviços, inclusive financeiros, e na circulação de capitais. Em 1989, o relatório Delors já proclamava o objetivo de uma futura moeda comum, podendo-se considerar o ecu – European currency unit, até então um simples instrumento de contabilidade orçamentária – como o antecessor do euro. Mas é o Tratado de Maastricht sobre a União Europeia, de 1992, que dá os fundamentos jurídicos da união econômica e monetária (UEM) e da moeda única europeia.

O Tratado de Maastricht, que entrou em vigor em novembro de 1993, estabeleceu três fases para a concretização da UEM: a primeira, com início em 1º de Julho de 1990, permitiu a livre circulação de capitais e o oferecimento de serviços bancários além-fronteiras; a segunda, começando em 1º de Janeiro de 1994, constituiu uma fase intermediária de preparação para a moeda única, tendo assistido ao estabelecimento da independência dos bancos centrais nacionais e à criação do Instituto Monetário Europeu, já com sede em Frankfurt. A terceira fase, que começou em 1º de janeiro de 1999, viu o estabelecimento do Banco Central Europeu — no lugar do IME – e o lançamento da moeda única (cujo nome, euro, tinha sido escolhido dois anos antes).

No decurso da segunda fase seriam definidos os países habilitados a entrar na terceira fase da união monetária, segundo rígidos requisitos de “bom comportamento macroeconômico”, o que significou a instauração de uma coordenação reforçada das políticas econômicas nacionais, visando a reduzir a inflação, as taxas de juros e as flutuações cambiais, assim como os déficits e a dívida pública dos Estados. Os principais critérios de convergência definidos pelo Tratado de Maastricht referiam-se à estabilidade dos preços, à disciplina orçamentária, às contas públicas, à convergência das taxas de juros e à estabilidade das taxas de câmbio. Concretamente, eles significaram que os países desejosos de aderir à moeda comum necessitariam cumprir os requisitos seguintes: a taxa de inflação não poderia ser superior em mais de um ponto e meio percentual à média dos três Estados-membros com as taxas menos elevadas de inflação; o déficit público não deveria ultrapassar 3% do PIB e a dívida pública não poderia ultrapassar 60% do PIB; a taxa de juros de longo prazo não poderia ser superior em mais de dois pontos percentuais à média dos três Estados-membros com as taxas menos elevadas; no plano cambial, deveriam ser observadas, durante dois anos, as margens normais do SME, sem tensões graves nem desvalorizações, o que nem sempre pôde ser alcançado.

Com uma avaliação algo mais política do que estritamente econômica dos critérios de Maastricht (uma vez que nem a Bélgica nem a Itália, por exemplo, se qualificavam do ponto de vista da dívida pública), em 1998 foram definidos os Estados-membros que participariam do euro a partir de 1º de janeiro seguinte. O Conselho Europeu de Bruxelas (maio de 1998) determinou que os Estados-membros participantes seriam em número de onze: Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos e Portugal. Três outros membros da UE, Dinamarca, Reino Unido e Suécia, decidiram, por escolha própria, permanecer à margem do novo esquema monetário e apenas um, a Grécia, não conseguiu se qualificar em diversos critérios importantes. No final de 1998, foram fixadas irrevogavelmente as taxas de câmbio entre o euro e as moedas nacionais, bem como entrou em vigor a legislação sobre o euro, com o que os mercados monetários e cambiais passaram a poder operar com euros.

A opção dos Estados-membros da UE pela renúncia à soberania monetária e em favor da administração coletiva da coordenação macroeconômica apresenta forte conteúdo emblemático para a Europa unida do século XXI e para seu subsequente papel internacional. O elemento fundamental desse avanço na “união cada vez mais estreita dos povos europeus” no plano monetário é de natureza interna e tem a ver, em termos kantianos, com o compromisso irrevogável dos países membros com uma ordem comunitária como garantia de “paz perpétua” no continente. Adicionalmente, as funções que o euro possa assumir futuramente enquanto “moeda mundial” e seu papel eventual de desafio à hegemonia internacional do dólar representarão a consequência natural da afirmação ulterior do poder econômico da União Europeia no plano internacional.

De fato, o euro confirma uma das tendências mais evidentes do processo de globalização, em curso acelerado desde a derrocada final do socialismo no começo dos anos 90, movimento tendente a unificar mercados, concentrar força e poder nas mãos de alguns global players e vincular estreitamente circuitos produtivos e financeiros. Ele também reforça as tendências à estabilidade do processo de integração europeia no que se refere aos mecanismos de coordenação intergovernamental de políticas macroeconômicas – o que parece ser válido para experiências similares de integração, como seria supostamente o caso do Mercosul –, ainda que a adesão permanente das autoridades financeiras nacionais, em relação a eventuais “desvios” orçamentários, por exemplo, tenha tido de ser reforçada por um “Pacto de Estabilidade e Crescimento”, concluído em meados de 1997. Esse último acordo representou, como se sabe, um difícil compromisso entre aqueles que defendem, antes de mais nada, a manutenção do poder de compra da nova moeda – como é o caso do Bundesbank e outros aderentes da ortodoxia monetária – e os que privilegiam seu papel “social” e que gostariam de ver o Banco Central Europeu promover políticas de estímulo à criação de empregos, como os franceses e italianos. Cabe recordar a esse propósito que, de acordo com disposições do próprio Tratado de Maastricht, as autoridades monetárias nacionais são proibidas de financiar déficits orçamentários, prevendo ainda o Pacto penalidades pecuniárias para aqueles Estados que incorrerem em desvios significativos em relação aos critérios de Maastricht nesse particular (máximo de 3% do PIB de déficit orçamentário e compromisso político de manutenção do equilíbrio fiscal).

No plano interno, as vantagens do euro parecem evidentes: ele simplesmente suprime os riscos de câmbio, reforça o mercado único e a convergência das economias e favorece o investimento na zona do euro. Suas vantagensmicroeconômicas também são facilmente demonstráveis, sobretudo do ponto de vista do viajante e do consumidor, ao facilitar as operações financeiras transfronteiras, eliminar os encargos relacionados com as operações cambiais e tornar totalmente transparente a comparação dos preços entre países e mais especialmente regiões fronteiriças (e portanto a eventual punção fiscal exercida por alguns Estados).

O período de transição, que vai de 1º de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2001, assiste ao desenvolvimento de processos importantes do ponto de vista da implantação da nova moeda: os principais agregados monetários e a emissões passam a ser de responsabilidade exclusiva do BCE, os mercados financeiros passam a operar em euros, ainda que do ponto de vista prático o euro só pode ser utilizado sob forma escritural (mas qualquer pessoa passa a poder ter uma conta bancária em euros e emitir cheques nessa moeda). Finalmente, no primeiro semestre de 2002, se terá a circulação das notas e das moedas de euros, de modo concomitante à retirada progressiva das notas e das moedas nacionais. O mais tardar em 1º de julho de 2002 se assistirá à supressão do curso legal das notas e moedas nacionais e passam a circular unicamente notas e moedas de euro. Entretempos, outros candidatos – os atuais ou futuros países membros da UE – poderão decidir-se por sua incorporação à UEM.

Do ponto de vista da “geopolítica” do sistema financeiro internacional, o euro será, inevitavelmente, um formidável concorrente em face do dólar, este até agora marginalmente complementado pelo deutsche mark e pelo iene japonês enquanto moedas de intercâmbio e expressão de ativos econômicos. A nova moeda terá efeitos diversos, de grande amplitude, nas áreas do comércio de bens e serviços, de fluxos de investimentos (de risco e de portfólio), dos mercados financeiros (isto é, empréstimos e créditos), das reservas em divisas dos países extra-europeus e, também, no âmbito do sistema monetário internacional, o que está vinculado ao poder econômico da União Europeia.

A importância da União Europeia na economia mundial pode ser comparada à dos Estados Unidos. Com uma população de aproximadamente 300 milhões de pessoas, o PIB comunitário de cerca de 9 trilhões de dólares — similar ao norte-americano — cai ligeiramente quando computado apenas o peso da “Euroland”, mas deve aumentar para volumes equivalentes quando os países hoje ausentes da união monetária a ela aderirem numa fase seguinte. A Europa mobiliza parte significativa – perto de um terço – do comércio mundial, assim como ela constitui, igualmente, fonte importante de capitais internacionais de empréstimo e de investimento direto nos mercados emergentes. Seria de se esperar, por exemplo, que com base na política conservadora do Banco Central Europeu, o euro contribua para a estabilização dos mercados financeiros globais, ao lado do papel ainda dominante do dólar e da importância reduzida do iene nas transações comerciais e financeiras internacionais. Não há, entretanto, nenhum acordo de princípio entre as autoridades monetárias dos Estados Unidos, da “Euroland” e do Japão para a manutenção de paridades correlacionadas entre suas respectivas moedas, o que indica obviamente que o sistema monetário e financeiro internacional continuará a ser tão turbulento e instável como ele tem sido desde a derrocada do padrão-ouro ao final da belle époque e do desmantelamento do regime de Bretton Woods nos anos 1970.

O fato inédito é que assistimos ao começo do final — um cenário ainda longínquo, reconheça-se — da hegemonia do dólar no sistema financeiro internacional. Esse declínio da predominância absoluta do dólar será tanto mais lento quanto forem incertos os elementos propriamente econômicos e tecnológicos que poderão sustentar uma ascensão da Europa a sua antiga posição de world’s banker. Em favor do dólar deve-se lembrar que os padrões dominantes tendem a ganhar por inércia. Em favor do euro pode-se adiantar sua menor volatilidade intrínseca e seu papel político positivo em outras experiências de integração regional, a começar pelo Mercosul. De fato, um mercado comum pleno requer, quase que naturalmente, uma moeda comum e o fato da existência do euro deverá atuar como catalisador político e econômico no processo de ampliação ulterior da União Europeia.

O comportamento de uma moeda, contudo, é tanto a expressão das condições objetivas da economia que a sustenta quanto o resultado de fatores sociais e psicológicos subjacentes, basicamente a confiança dos detentores em seu futuro poder de compra. Desse ponto de vista, o euro (ainda que apenas virtual) sofreu, desde sua introdução, alguns percalços monetários e políticos: ele não apenas enfrentou, em 2000, uma inesperada desvalorização de 25% frente ao dólar, em vista de um desempenho econômico mais fraco (e da maior taxa de desemprego) na Europa, como manifestou-se uma certa desafeição dos cidadãos em relação ao que é percebido como um excesso de centralismo legislativo e de controles burocráticos por parte de Bruxelas. Com efeito, a despeito dos progressos efetuados pela Grécia no sentido de sua incorporação à UEM (a partir de 2001) e da campanha favorável conduzida pelo big business nos prováveis membros, em especial na Grã-Bretanha, o plebiscito dinamarquês sobre a introdução do euro, efetuado em setembro de 2000, com resultados negativos, pode sinalizar o reforço das correntes contrárias à unificação monetária nos demais países e o aparecimento de uma espécie de “marcha lenta” no processo de integração europeia. 

Que ensinamentos ou que consequências poderiam ser extraídos a partir da experiência europeia para um esquema de integração conduzindo tendencialmente a um mercado comum como o Mercosul? Se é verdade que este não pretende permanecer uma simples zona de livre comércio ou uma união aduaneira imperfeita, como hoje, a questão da moeda única deve ser colocada como objetivo final, ainda que longínquo. Um mercado comum pleno, repita-se, pede naturalmente a moeda única. Atualmente, contudo, parece evidente que o problema não se coloca ainda em termos de moeda, mas simplesmente como uma obrigação de coordenação de políticas econômicas. Este é um requisito essencial para que choques assimétricos (sempre à espreita) não introduzam dificuldades adicionais e uma séria distorção nos efeitos potencialmente benéficos do processo integrativo. As autoridades financeiras dos países-membros do Mercosul devem reconhecer, antes de mais nada, que as políticas cambiais são uma matéria de interesse comum e que a interação constante entre formuladores de políticas e o permanente intercâmbio de informações entre seus operadores constituem passos indispensáveis para a coordenação de políticas nas áreas monetária e cambial. Essa coordenação deve ser institucionalizada progressivamente, até atingir-se o “ponto de não-retorno”, quando a própria renúncia de soberania monetária passa a ser considerada como uma garantia adicional de boa gestão macroeconômica e um passaporte para a estabilidade.


Referência: A principal fonte de informação sobre o euro e as economias dos países membros é a página do banco Central Europeu, que comporta textos em português: http://www.ecb.int.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Preparado para a

Enciclopédia de Direito Brasileiro

sob a coordenação dos profs. Carlos Valder do Nascimento

e Geraldo Magela Alves (Editora Forense).

2º volume: Direito Comunitário, de Integração e Internacional.

[Washington, 719: 14.01.2000]

[Revisão, 719b: 30.09.2000]

Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44555431/O_euro_a_moeda_europeia_2002_);

divulgado no blog Diplomatizzando (22/11/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/o-euro-moeda-europeia-2000-in.html). Relação de Publicados n. 330.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Concurso Itamaraty: órgão lança certame para oficial de chancelaria (Correio Braziliense)

Concurso Itamaraty: órgão lança certame para oficial de chancelaria

O edital de abertura, publicado nesta segunda-feira (18/9), oferta 50 vagas imediatas e 50 para formação de cadastro de reserva

18/09/2023 15:31 | Atualização: 18/09/2023 15:31

Raphaela Peixoto*

Minervino Júnior/CB/D.A.Press
 O Ministério das Relações Exteriores (MRE) lançou, nesta segunda-feira (18/9), o concurso público para o provimento do cargo de oficial de chancelaria do serviço exterior brasileiro. O edital de abertura oferta 50 vagas imediatas, além de 50 oportunidades para formação de cadastro de reserva. 


A função exige diploma, devidamente registrado, de conclusão de curso superior em qualquer área de formação. O salário é de  R$ 10.169,77 para jornada de 40 horas semanais.

 

Será admitida a solicitação de inscrição somente via internet, na página oficial do concurso, no período entre 22 de setembro a 11 de outubro. O valor da taxa de inscriçao é de R$ 120,00.  

Da seleção 

O certame será executado pelo Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (Cebraspe). Ao todo, a seleção terá as seguintes etapas:
  • a) primeira etapa: prova objetiva e prova discursiva, de caráter eliminatório e classificatório;
  • b) segunda etapa: curso de formação, de caráter eliminatório e classificatório.
A prova objetiva será composta por 60 questões do tipo múltipla escolha, com cinco opções (A, B, C, D e E), sendo uma única resposta correta. Já a prova discursiva, consistirá de duas questões discursivas (uma de lingua portuguesa e uma de lingua inglesa), no valor de 20 pontos cada, a serem respondidas em, no mínimo, 35 linhas e, no máximo, 45 linhas cada. 

A primeira etapa do certame será realizada nas seguintes capitais: Belém (PA), Brasília (DF), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP). A aplicação desta fase está marcada para 10 de dezembro. 

Curso de formação 

O curso de formação terá a carga horária de 40 horas presenciais e  será realizado em Brasília/DF, em período e local a serem divulgados no edital de convocação para essa etapa. A avaliação do curso de formação consistirá de prova objetiva, composta de 50 questões de múltipla escolha, com cinco opções (A, B, C, D e E) e uma única resposta correta. 

*Estagiária sob supervisão de Talita de Souza

O que esperar do discurso de Lula na AGNU? - Paulo Roberto de Almeida

 O que esperar do discurso de Lula na AGNU?

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Comentários prévios ao primeiro discurso de Lula 3, na AGNU, em seu retorno à diplomacia presidencial

 

 

Não cabe esperar nada de muito espetacular desse discurso, o que poderia ter ocorrido, em tom até grandiloquente, se por acaso a abertura dos debates na Assembleia Geral tivesse sido feita nas primeiras semanas do ano, quando do retorno de Lula à presidência, depois de amargar mais de um ano de prisão e de uma campanha dramática no país, nas eleições de 2022, até as ameaças de golpe, antes e já instalado no poder. O que havia de alívio e até de satisfação, em diversos interlocutores estrangeiros, com o retorno de Lula ao poder, se devia em grande medida à deterioração extraordinária da imagem externa do país sob Bolsonaro, como resultado de suas posturas notoriamente autoritárias, de quebra das tradições diplomáticas brasileiras, de destruição sistemática do meio ambiente e de descaso, ou até desprezo, pelos direitos humanos, territórios indígenas, ataques à imprensa e à própria democracia brasileira.

Essa boa acolhida, de princípio, feita a Lula, tanto pelos parceiros ocidentais, quanto, e mais enfaticamente pelos seus aliados do Brics ou do assim chamado Sul Global, começou a se desvanecer com suas declarações a respeito sobretudo da guerra de agressão da Rússia à Ucrânia. Desde as primeiras semanas, em viagens do próprio e visitas de personalidades estrangeiras, Lula confirmou sua estranha neutralidade objetivamente favorável a Putin, mesmo em seus crimes de guerra contra a Ucrânia, numa suposta alegação de “preocupações russas com sua segurança” (sic). Depois, Lula promoveu duas reuniões em Brasília e em Belém do Pará, respectivamente sobre o retorno da integração sul-americana nos moldes anteriores da Unasul e sobre o desenvolvimento sustentável na Amazônica (compreendendo oito países do continente), nas quais suas teses não foram acolhidas com o sucesso esperado, inclusive no acolhimento da Venezuela como se fosse uma democracia e em relação às metas de desmatamento ou exploração de recursos fósseis na região. 

Em seguida vieram as reuniões do G7 em Hiroshima e do Brics em Joanesburgo, que também confirmaram sua postura como defensor informal de Putin, causando, novamente, novas reações negativas da parte das democracias avançadas da OCDE, que todas apoiam a Ucrânia na sua resistência a agressão criminosa da Rússia. Ou seja, Lula deixou de ser o democrata do Terceiro Mundo, defensor dos direitos humanos e de uma ordem mundial baseada em normas multilaterais e no Direito Internacional, para se converter em um aliado de duas grandes autocracias desejosas de constituir um bloco de aliados convergentes com uma visão não ocidental do sistema internacional e interessados na criação de uma ordem alternativa à atualmente existente. Sua entrevista à TV indiana, no quadro do encontro do G20, confirmou essa visão não comprometida com a defesa dos DH, ao questionar inclusive a continuidade do Brasil no Estatuto de Roma e a contestação da ordem de prisão decretada contra Putin.

Cabe registrar que, antes de se dirigir a Nova York, Lula passará por Cuba, tanto para uma visita bilateral a seus amigos da ilha dominada por uma ditadura comunista sexagenária, quanto para participar de uma reunião do G77, na qual ele tentará renovar suas pretensões a líder regional e grande sustentador dos interesses do chamado Sul Global, numa ampla gama de reivindicações, que sempre se baseiam na responsabilidade dos países ricos por todas as agruras que atingem os países pobres, desde os problemas do meio ambiente, da pobreza e da miséria, quanto da reduzida ajuda que os primeiros deveriam prestar a estes últimos.

O discurso de Lula na AGNU de 2023 ainda está sendo ultimado pelo Itamaraty, e depois será ainda revisto pelo assessor presidencial, o ex-chanceler pelos oito anos dos dois primeiros mandatos de Lula, Celso Amorim, considerado por muitos jornalistas como o chanceler real, ou virtual, ao lado de Mauro Vieira, que é uma espécie de titular nominal, sobretudo no que tange os grandes assuntos da agenda mundial e regional. Pode-se arriscar o seguinte, quando ao seu conteúdo: depois de quatro anos de discursos bizarros, nos quais Bolsonaro tratava mais de questões internas do que internacionais – no primeiro ano, em 2019, Bolsonaro disse que havia salvo o Brasil do socialismo –, Lula deverá ler, com o rigor que o Itamaraty sempre imprime a essas ocasiões, uma sucessão de posturas mais frequentes na pauta de interesses do Brasil – desenvolvimento, cooperação, multilateralismo, defesa de objetivos sociais, no sentido da redução da pobreza e desigualdades – e algumas mais ligadas à visão política do PT: a reforma da ordem internacional, a mudança da Carta das Nações Unidas com o ingresso de novos membros permanentes no seu Conselho de Segurança, as reivindicações mais agressivas quanto à responsabilidade dos países ricos no fenômeno do aquecimento global, e também pedidos mais insistentes para que esses países financiem não só os programas de combate ao desmatamento nos grandes países em desenvolvimento como a transferência de tecnologias para a transição energética e até industrialização sustentável.

Lula, provavelmente, se absterá de voltar ao assunto TPI – que já causou muita polêmica dentro e fora do país –, mas continuará oferecendo seus bons préstimos genéricos para contribuir com a cessação de hostilidade e para negociações de paz no conflito da Ucrânia. Ou seja, não será muito diferente daquilo que o Itamaraty e alguns assessores menos adeptos de declarações improvisadas como as que já foram feitos por Lula já vêm se esforçando por imprimir às declarações externa do Brasil, mas não será surpresa se Lula insistir nos seus temas preferenciais, vinculados às questões sociais. Recentemente foi firmado um acordo entre a FAO e o governo brasileiro para a criação de um “Centro Josué de Castro” no Rio de Janeiro, destinado ao combate à fome no plano internacional. Lembre-se que, já em 2003, Lula tento universalizar o seu programa brasileiro de Fome Zero, que não foi implementado por representar duplicação com iniciativas já tomadas pela própria FAO e pelo PNUD, sob a forma de um Programa Mundial de Alimentos.

Não se sabe se haverá algo mais ousado, ou até espetacular, mas o Brasil atual, inclusive por posturas de Lula já não muito bem recebidas por interlocutores tradicionais, não parece reunir as condições ideais para liderar novas iniciativas no plano multilateral, tanto porque o espaço para a cooperação vem sendo sensivelmente reduzido pelos sinais tangíveis de uma nova Guerra Fria, desta vez talvez mais econômica do que geopolítica. A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia introduziu realmente uma cunha entre as grandes potências democráticas e seus contendores autocráticos, com expectativas indefinidas por parte desse Sul Global, mais um logotipo sem características precisas do que uma realidade concreta em tornos de congraçamento de interesses claramente expressos. No momento, o que se tem é o velho G7 e uma OCDE de quase quarenta membros (vários ex-socialistas e alguns do antigo Terceiro Mundo) e uma tentativa de bloco contraposto a este, representado de forma mais nítida por um Brics ampliado e mais duas dezenas de candidatos em associar-se a ele (provavelmente visando mais cooperação generosa da China do que uma oposição direta às velhas potências coloniais, das quais também aguardam a ajuda habitual).

Lula ainda tem uma boa imagem em diversos meios, mas a nova Guerra Fria e o conflito na Ucrânia, assim como sua falta de liderança na própria região, podem ser óbices a uma consagração no cenário onusiano. Cabe registrar que o presidente Zelensky também estará presente: Lula vai se encontrar com ele? Provavelmente não, pois que já evitou esse encontro na reunião do G7 de Hiroshima.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4480, 15 setembro 2023, 3 p.

 

 

Is this how globalisation ends? - Barry Eichengreen (Prospect)

A globalização não acaba; é um processo contínuo, desde a mais remota antiguidade, com altos e baixos em função de eventos políticos, desastres naturais, catástrofes econômicas e outras rupturas geopolíticas ou de natureza vária. O que ocorre atualmente é um rescaldo da pandemia e, sobretudo, um acirramento da oposição entre algumas das grandes potências, por erros de cálculo, arrogância, expansionismo imperialista, etc. Vai passar, mais um "baixo" na trajetória da globalização, que vai continuar assim por baixo por certo tempo. (PRA)

 PROSPECT 

From the October 2023


Is this how globalisation ends?

Our interconnected, hyperglobalised economy survived the financial crisis, Brexit, Donald Trump and the pandemic. Now it faces a new kind of threat—and this time it really could be fatal

 

By Barry Eichengreen

 

September 6, 2023


The death of globalisation has been declared more often than you can count. Yet despite myriad tensions and challenges, the global system of production, trade and finance endures. Globalisation survived the Global Financial Crisis. It survived Brexit and four years of Donald Trump’s presidency. And it survived Covid-19, confounding predictions that the virus would spell an end to global supply chains. 

It is tempting to conclude that globalisation is simply too deeply embedded in modern society to be reversed. Corporations such as Apple, which designs its products in California but manufactures in Asia, derive enormous benefit from the ability to hire talent, source inputs and conduct assembly operations in multiple countries around the world. What is true of large corporations and manufacturers is increasingly true of small companies and services as well. The Wall Street Journal wrote recently of Scottevest, a travel clothing firm that once employed 20 office workers at its headquarters in Ketchum, Idaho but now instead uses graphic designers in Ukraine, customer service agents in Albania and an order processor in India, all made possible by the internet’s global reach.

Brexit may prevent British farmers from employing eastern European labour, but if they want reliable fruit-pickers they still need foreign workers, some now imported from as far away as South Africa and Indonesia. Covid-related shipping container shortages and port shutdowns may have interrupted supplies of foreign goods, but this only confirmed how much consumers depend on imported merchandise in the course of daily life. Large corporations, small companies, fruit farmers and consumers understand that globalisation is an indispensable aspect of our 21st-century world. They can be expected to protest forcefully—and effectively—against attempts to turn back the clock.

At least, that’s the theory. In reality, this Panglossian narrative is too simple. For current threats to globalisation are more serious than their predecessors. They are of a different sort than past threats successfully rebuffed. 

With the benefit of hindsight, we can see that the heyday of late 20th- and early 21st-century globalisation was the two-decade period ending with the onset of the Global Financial Crisis in 2008. Over those 20-odd years, global exports and imports rose even faster than global GDP, driven by the fast growth of China and its integration—along with other emerging markets—into the global trading and financial system. An increasing share of this trade was in parts and components, as production processes were disaggregated and distributed internationally, aided by advances in global transportation (such as containerisation) and communication (the internet once again). Cross-border financial flows likewise grew faster than global GDP in the decade leading up to the crisis, as global banks and non-bank financial firms extended their international reach. 

The past 15 years, by contrast, have seen global trade and capital flows rise no faster than global GDP. World exports plus imports are equivalent to about 50 per cent of world GDP—roughly where they were before the Global Financial Crisis. Cross-border financial assets as a share of global GDP are similarly about as high today as on the eve of the crisis. Globalisation may not be over, but the age of “hyperglobalisation”—when international transactions grew even faster than the world economy—is evidently over.

So, what was different about the past 15 years? And where does the global economy go from here?

As is often the case, more than a single factor was at work. China’s double-digit economic growth slowed over this period, along with its contribution to the rise of foreign trade and investment. Responding to the Global Financial Crisis, banks -“deleveraged” (reduced their debt levels), while bank regulation tightened, slowing the breakneck rate of expansion of cross-border interbank lending.

But if you were to sum up the headwinds faced by globalisation during this period in two words, these would be: populist backlash. Successive crises, and policymakers’ management of those crises, created mounting popular discontent with the operation of the global economic system. In the Global Financial Crisis, Wall Street was bailed out while Main Street was not. As Daron Acemoglu and Simon Johnson recount in their recent book, Power and Progress, the US insurer AIG received $182bn of federal government aid in autumn 2008 in order to avoid bankruptcy, but was nonetheless permitted to pay out half a billion dollars in bonuses, including to some of the individuals responsible for the firm’s ills. Nine financial firms that were among the largest recipients of bailout money were allowed to pay, in total, 5,000 employee bonuses of more than $1m. 

Workers who lost their jobs in the recession received no comparably generous support. A backlash was predictable. On the left, it coalesced in 2011 as the Occupy Wall Street campaign, and then as the global Occupy movement led by young people denouncing inequality, globalised finance and the political influence of the 1 per cent.

This was a consequential—if somewhat inchoate—political movement. But it did not topple globalisation, financial or otherwise. Political figures, frequently on the left and not unsympathetic to Occupy’s underlying message, were already taking steps to address the excesses of financial globalisation. In the US, figures such as Barney Frank and Elizabeth Warren championed legislation to protect consumers, strengthen financial supervision and limit the need for future bank bailouts. The UK adopted the Financial Services Act of 2012, replacing the Financial Services Authority with a different framework—built around the new Financial Conduct Authority and Prudential Regulation Authority, along with strengthened regulatory powers for the Bank of England—with the goal of enhancing regulatory oversight, monitoring systemically important financial institutions and providing orderly resolution as an alternative to bailouts. The European Central Bank, in its role as supervisor of systematically important Eurozone banks, clamped down on cross-border flows. The boffins in Basel, sitting on the Committee on Banking Supervision, promulgated new requirements for how much capital banks must have on hand. We can question whether these reforms went far enough, but they provided some evidence of responsiveness to popular complaints.

Brexit, and Trump’s election in 2016, were quintessential populist moments. Trump capitalised on anti-elite and anti-immigrant sentiment, the political and financial class on the one hand and foreigners on the other being classic targets of populist ire. He claimed globalisation, along with the “deep state”, was the crux of America’s problems. The global trading system was unfair to US business. The World Trade Organisation (WTO) was treating the country “very badly”. Immigration was threatening America’s prosperity and its way of life. Trump’s response was to slap tariffs on imports from China—and also from Europe and Canada. He threatened to withdraw from the WTO and blocked appointments to its appellate body, withdrew the US from the Trans-Pacific Partnership trade deal, rewrote the North American Free Trade Agreement and began constructing a “big, beautiful wall” across America’s southern border.

© Lo Cole 23

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Yet not even Trump could reverse globalisation. Banking and business elites, conscious of the advantages of a globalised economy, not least for themselves, pushed back on his vow to withdraw from the WTO. They pushed back against the most egregious of his tariffs. Silicon Valley, which imports large numbers of entrepreneurs and engineers, pushed back against restrictive changes in immigration law and practice. All this is consistent with the premise that globalisation is deeply embedded. 

In addition, however, the political system took notice of the dislocations that Trump sought to exploit. Acknowledging the “China shock”—the fact that the increase in imports from economies such as China’s into the US disproportionately affected the job prospects of certain workers in certain regions—the Biden administration retained Trump’s tariffs on that country. To address inequality, it pushed (with mixed success) for a more generous federal minimum wage, student loan forgiveness and higher taxes on the wealthiest Americans. It advanced subsidies and tax breaks for companies bringing manufacturing jobs back to the US. Its ideas for immigration reform stalled in Congress, admittedly. Nevertheless, the broad thrust of these policies was to avoid the excesses of hyperglobalisation and compensate its losers. It was to signal that the political system heard their voices. 

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This article is from the October 2023 issue


Brexit was about “taking back control” from faceless bureaucrats in Brussels, faceless European bureaucrats being the bête noire of British critics of globalisation. It was about Britain’s inability to regulate immigration as it wished, whether on economic or identity-related grounds, so long as it remained in the European single market. And it, too, was about the China shock, with studies like that by Italo Colantone and Piero Stanig in the American Political Science Review showing that support for Leave was systematically higher in regions hit harder by import competition from China. 

Brexit has not exactly enhanced Britain’s economic prospects, but neither has it significantly dented globalisation. It wasn’t meant to: its proponents claimed that “Global Britain”, rather than turning inward, would quickly negotiate free trade deals with scores of countries around the world. We are still waiting, but no matter. Neither has Brexit damaged globalisation’s European dimension. Britain’s manifest difficulties have not encouraged other countries to follow it out of the single market; quite the contrary. Brexit has not even reduced immigration, which in Britain reached an all-time high in 2022. Leaving the European Union and its single market just changed the immigrants’ countries of origin. The need for foreign doctors and nurses, as well as foreign fruit-pickers, has not gone away. 

Covid could have seriously damaged globalisation, as countries closed their borders, containerships piled up off the Port of Long Beach and producers and policymakers gained new appreciation of the fragility of global supply chains. It could have frayed US–China relations further and aggravated xenophobia, with talk of lab leaks, infection arriving via foreign airliners, and Trump cackling about the “kung flu”. In this context, there was ample potential once again for a populist backlash to spell the end of globalisation. But it turned out otherwise. Governments provided unprecedented support to constituents whose incomes and welfare were threatened by the global pandemic. The potential for backlash was thereby contained.

Hence, aspects of globalisation dented by Covid were allowed to recover. International travel is back with a vengeance, assisted by vaccines and natural immunity. The Federal Reserve Bank of New York’s Global Supply Chain Pressure Index, which measures mainly shipping and air freight costs, is back below pre-pandemic levels, in an impressive demonstration of the adaptability of global logistics. Rather than abandoning global supply chains, producers have sought to build in additional redundancy and resilience, sourcing from countries closer to home and cultivating suppliers from multiple parts of the world. This reflects, and serves as yet more evidence of, the fact that from an immediate economic standpoint the advantages of globalisation are profound. 

It also is a reminder that globalisation is about more than economics—it’s about security, national and international. And herein lies the real and present danger to globalisation as we know it.

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Specifically, the US under Biden is taking a more aggressive position regarding imports and exports of advanced technology to and from China. In part, this may reflect a desire to slow China’s economic rise and protect high-tech jobs in the US. More fundamentally, however, these measures aim at slowing China’s acquisition and development of dual-use technologies—those that can be used for both military and civilian purposes—that provide it with advantages in espionage and on the battlefield. 

Globalisation is about more than economics. It is about security

Thus, in 2022 the US banned sales and imports of select new communications equipment made by the Chinese companies Huawei and ZTE, fearing that their gear could enable Chinese surveillance of US communications. It placed restrictions on video surveillance and radio systems made by the Chinese companies Hikvision, Dahua and Hytera, specifying that importation and sale of such systems would be approved only if it could be shown that they would not be used for purposes relating to public safety, security of government facilities or national security more widely. In promulgating these rules, the US Federal Communications Commission cited an “unacceptable risk” to US national security. 

At the beginning of 2023 the Biden administration then halted approval of most licences for US companies to export to Huawei. Though the Trump administration had already added Huawei to the so-called “entity list” of blacklisted companies, the Commerce Department continued to provide licences to US firms such as Qualcomm and Intel, so long as their exports were not high-speed 5G related. The US also imposed extensive restrictions on the export to Chinese groups of chipmaking equipment and of advanced semiconductors used in everything from artificial intelligence to hypersonic weapons. Most recently, in August, Biden issued an executive order restricting US investment in China in high-tech sectors such as microelectronics and quantum computing. 

China has hit back with its own “unreliable entity list”, blacklisting two US aerospace and defence companies. This prohibits them from trading or investing in China, while denying entry and work permits to their executives. Beijing has also slapped export restrictions on gallium and germanium, two metals widely used in semiconductors and electric vehicles, and hinted about a similar ban on exports of rare earths. 

Cumulatively, then, all three principal strands of globalisation linking the US and China have been impacted: foreign trade, foreign investment and migration in connection with work.

As with other measures, for example financial sanctions on Russia, the US, realising that unilateral sanctions are ineffective in a globalised world, has sought to enlist the support of other countries, voluntary or otherwise. It has used its “entity list foreign direct product rule” to ban sales to Huawei by firms in other countries of any item making use of US inputs. Though European tech associations objected to this “extraterritorial application” of US export controls, they were able to do little about it. The US urged the Dutch government to block sales of advanced lithography machines by Veldhoven-based ASML, the only company in the world currently capable of producing such specialist semiconductor-manufacturing equipment (and which in practice was anyway not exporting its cutting-edge tech to China). The Dutch pushed back, reminding the US that European trade policy is decided at the EU level and that they were obliged to consult with their European partners. In March of this year the Dutch government gave way to US pressure and joined the ban.

And in much the same manner that the US pressures its allies, we can expect China to apply analogous pressure to countries in its sphere of influence.

The future of globalisation thus turns on two sets of questions. First, can geopolitical rivals such as the US and China limit trade, investment and knowledge transfer in products and processes with national security and military implications while otherwise continuing to do business with one another? Or will tensions inevitably spread to other products and sectors, negatively affecting trade and investment ties between the two countries generally? 

Notwithstanding the severe US-China tensions, the two countries remain among one another’s most important trading partners. The US Treasury secretary, Janet Yellen, insists that American restrictions will remain “narrowly targeted” and “would not be broad controls that would affect US investment broadly in China.” The objective, as Yellen and her Biden administration colleagues put it, is to “de-risk”, not to “decouple”. 

But the very concept of national security, or at least its breadth of application, is amorphous. Do electric vehicles with onboard computers receiving over-the-air software updates, when produced using foreign technology, constitute a national security risk if passengers would, for example, be left vulnerable to having their movements tracked?

The distinction between de-risking and decoupling, similarly, is in the eye of the beholder. US direct investment in China hit a near 20-year low last year. US private equity and venture capital investments in China fell by fully three-quarters from 2021 to 2022. That’s about as decoupled as it can get. In the first five months of this year, US merchandise imports from China were down 24 per cent from the same period one year earlier. Mexico has now overtaken China as America’s numero uno trade partner. US companies such as HP and Apple have been moving production out of China in favour of other emerging markets. To be sure, the extent to which these trends reflect rising costs, slowing growth and political repression in China, as opposed to geopolitical tensions, remains uncertain. But there is no question that geopolitical strains pointing to the possibility of further restrictions on bilateral trade and investment are one factor at work.

The second question is, will other countries be forced to align themselves with one of the two camps or be able to continue doing business with both? Countries such as Germany, that are staunch US allies but also depend heavily on the Chinese market, clearly want to have it both ways. The strategy for relations with China published by the German government over the summer labels China a “systemic rival”, but also points to the desirability of maintaining bilateral trade and denies any intention of “imped[ing] China’s economic progress and development”.

But the case of ASML and the Dutch government bowing to US pressure suggests that countries wanting to have it both ways may not succeed. The US continues to press its European and Asian allies to limit investment in China. If tensions between Washington and Beijing ratchet up further, countries will be forced to ally with one side and bar trade, investment and technology transfer to the other. Certainly a shooting war over Taiwan would have this effect. It would have devastating implications for more than just globalisation, of course. But one can also imagine more limited conflicts—more accusations of espionage, the development of reported Chinese military training facilities in Cuba—that, if less dramatic, would work in the same direction, undermining globalisation as we know it. 

Countries have shown an ability to deal with financial crises, public health emergencies and populist eruptions that, left unattended, would threaten globalisation. They have shown the capacity to rein in financial globalisation where this has been allowed to run amok. They have inoculated their populations, economically and politically, as well as medically, against a virus whose contagious international spread is itself a consequence of global interconnectedness. They have shown a recognition, at least belatedly, that globalisation doesn’t automatically lift all boats and that its viability rests on policies and programmes to compensate the losers. What they have not shown is that globalisation is compatible with geopolitical rivalry and geostrategic risk. The US and China, in particular, will have to develop a strategy for ratcheting down that risk if globalisation is to survive.

Barry Eichengreen is, with Asmaa El-Ganainy, Rui Esteves and Kris Mitchener, currently completing a new book on public debt. His last book was “The Populist Temptation: Economic Grievance and Political Reaction in the Modern Era” (Oxford)

 

 

O problema da Rússia é de natureza civilizatória - M. Podoliak, @HairFuror1901

 Não existe apenas um confronto geopolítico entre a Rússia e o Ocidente (o que resultou de Bretton Woods, Gatt, Otan, OCD, G7, UE), e sim uma confrontação de matureza civilizatória, como resumido nesta postagem de um intelectual russo.

From @Podolyak_M:

“It is a big mistake to try to look at this war as a problem of Ukraine and Eastern Europe. Putin's Russia today has become, without a doubt, the problem of humanity - and this problem did not arise yesterday. Throughout its history, Russia has been missing out on the events that shaped the modern world order, and therefore has fallen hopelessly behind the East and West. Russia did not take part in the Thirty Years' War, "slept through" the formation of the Peace of Westphalia, and therefore does not know the concept of "sovereignty." Russia did not end as an empire as a result of World War I. Russia has not undergone repentance and transformation after the collapse of the USSR for the crimes of the Reds - yesterday's communists and imperial nationalists have put on the masks of democrats. Putin's Russia cannot find its place in the modern world, and therefore invests in undermining the world order. Instead of ideas and meanings, it has the complexes of its elites. On this path, Russia in Putin's form is doomed to failure - and we are already seeing it, although the size and scope of the country stretches the process over time and hides the pathogenesis from external observers. The task of responsible countries in all parts of the world is to let Russia crash against the rock of Ukraine and let the world move on. This includes letting the future of Russia move on without Putin. This is not a matter of politics. This is a matter of universal civilization.”

Comentário de um leitor:

“The Russia Federation was offered the opportunity to join the EU when the Soviet Union fell apart.  In 2008 Putin irreversibly changed that possibility for Russians when he decided he wanted to be President-for-Life and Russians said: "OK, you think for us!"”

@HairFuror1901



O que Putin quer de Lula? O que ele vai conseguir? (abril de 2023) - Paulo Roberto de Almeida

 O que Putin quer de Lula? O que ele vai conseguir? 

 

 Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 25 de março de 2023

 

Em meados de abril próximo [2023], o eterno chanceler da Rússia, Sergei Lavrov deverá visitar o Brasil, e seu mais importante encontro não será, talvez, com o chanceler oficial, Mauro Vieira, mas provavelmente com o chanceler oficioso, Celso Amorim. Ambos se conhecem de longa data, antes ainda que tramassem conjuntamente a transmutação do BRIC original – uma mera plataforma de investimentos em economias emergentes, sugerida pelo economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs – em um BRIC diplomático, com a adjunção dos outros dois países incluídos no acrônimo, Índia e China. Tal transfiguração da lagarta do BRIC, antes da emergência do BRICS – que mais se parece com um ornitorrinco, dadas as suas bizarras características– transcorreu nos dois últimos anos do primeiro mandato de Lula (2003-2006), quando a sigla já tinha adquirido certa notoriedade de imprensa, em vista do grande dinamismo econômico então apresentado pelas quatro grandes economias emergentes. Foi um gesto ousado, pois a sigla estava concebida para apresentar não mais do que carteiras, ou portfólios, de investimentos com promessas de grandes retornos, voltados para alguns fundos sequiosos de boas oportunidades de mercado.

Depois de vários encontros entre os respectivos chanceleres, o BRIC diplomático foi oficialmente lançado numa reunião de cúpula realizada em Ecaterimburgo em 2009, mas não atravessou mais do que dois anos no seu formato inicial, passando a incorporar a República da África do Sul, pelas mãos da China, desde 2011. O sucesso de mídia foi enorme, desde essa fase inicial, pois que os países avançados do Ocidente ainda enfrentavam o rescaldo das crises imobiliária, securitária e bancária de 2008, que teve início nos Estados Unidos e logo se propagou para as outras economias de mercado, ao passo que os BRICS, pelo menos a China e a Índia, pareciam imunes às turbulências e mantinham suas taxas de crescimento relativamente satisfatórias. O novo BRICS navegava de vento em popa, e já na cúpula de Fortaleza, em 2014, fazia aprovar um banco de fomento a investimentos, o NDB, e um mecanismo de socorro contingente, vagamente similar aos mecanismos de ajuste existentes no FMI: os encontros anuais dos cinco líderes recebiam os holofotes da mídia e choviam as demandas de novos candidatos ao bloco que prometia ultrapassar o PIB do G7 antes da primeira metade do século. Depois disso, a dinâmica econômica do grupo se enfraqueceu.

O curioso é que nessa primeira fase, a Rússia ainda fazia parte de um puxadinho do G7, o G8, formado na fase de transição do socialismo ao capitalismo, nos anos 1990, para facilitar a acomodação da gigantesca e nuclearmente poderosa Rússia – mesmo depois da implosão e fragmentação do império soviético – às novas regras do velho e duro capitalismo. Não apenas isso, como deferência política especial a um grande, mas esfarrapado, “parceiro” da primeira Guerra Fria: na cúpula do G7 em Kananaskis, no Canada, em 2002, a Rússia foi reconhecida como “economia de mercado”, muito antes dela ser aceita no Gatt-OMC, ou sequer ser considerada apta a integrar a OCDE (o que ela não fez até hoje, mesmo tendo sido aceita na OMC em 2015, muito depois da bem mais capitalista China). Mas o fato é que o G8 tinha uma conformação exclusivamente política, e de menor relevância do que a alta agenda econômica e financeira do G7, que continuava se reunindo com os ministros de finanças das sete grandes economias de mercado, sem a contraparte russa.

Essa distinção diminutiva do G8 parecia incomodar o novo líder russo, Vladimir Putin (designado por Ieltsin para sucedê-lo desde 1999), tanto que, num pronunciamento à nação, no início de 2005, ele já declarava que o colapso da União Soviética tinha sido “a maior catástrofe geopolítica do século” e “uma tragédia para os russos”. Essa declaração foi feita quase às vésperas das comemorações do 60. aniversário da vitória final da finada URSS na Segunda Guerra Mundial, oficialmente chamada de “Grande Guerra Patriótica”. Que ela possa ter sido uma “tragédia para os russos” é compreensível, pois que alguns milhões deles ficaram além das fronteiras da nova República Federal da Rússia, que também passou a enfrentar revoltas separatistas, como na Chechênia, selvagem reprimida. Mas, se houve alguma “catástrofe”, ela foi certamente extremamente benéfica para milhões de outros europeus, e muitos habitantes das antigas satrapias da Ásia central, que passaram a dirigir os seus próprios destinos, não sem seguidas interferências do urso russo, sempre temido.

Dois anos depois, dirigindo-se diretamente aos países ocidentais na conferência sobre segurança de Munique, em fevereiro de 2007, Putin alertava duramente os países ocidentais com respeito às preocupações de segurança de seu país, e já fazia referência ao BRIC, então em formação, da seguinte forma: 

O PIB combinado, em paridade de poder de compra, de países como Índia e China já é maior do que o dos Estados Unidos. Um cálculo similar com o PIB dos países do BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China – ultrapassa o PIB total da UE. E, segundo os especialistas, esse diferencial só vai crescer no futuro. (Discurso e debate de Putinna Conferência de Munique sobre Política de Segurança, 10/02/2007; disponível: http://www.en.kremlin.ru/events/president/transcripts/24034).

 

O debate que se seguiu a esse discurso franco e contundente de Putin, já assumindo os ares de um novo czar, foi extremamente revelador do espírito com que ele contemplou o ingresso de diversos países vizinhos, ex-integrantes do império soviético, às estruturas políticas e militares da Otan, chegando praticamente às portas de São Petersburgo: a Estônia e a Letônia, rapidamente aceitas, com a Lituânia e vários outros da Europa central e oriental, na organização do tratado do Atlântico Norte. Esse processo continuou moderadamente até que a tentativa da Georgia de aderir à Otan, em 2008, despertou a violenta reação da Rússia, que ocupou partes do seu território setentrional; na verdade, essa iniciativa se devia não à Otan, mas a um referendo realizado em janeiro daquele ano, na Georgia, que revelou que 77% da população era favorável ao ingresso na organização de segurança coletiva. 

O caso mais complicado, obviamente, se referia ao segundo maior país da Europa, depois da própria Rússia. A Ucrânia, formalmente independente desde 1991, mas não considerada para adesão à Otan, tinha inclusive firmado com a Rússia, em 1997, um tratado de amizade, cooperação e parceria, pelo qual eram fixados o princípio de uma “parceria estratégica”, o reconhecimento da inviolabilidade das fronteiras existentes, o respeito pela integridade territorial e o compromisso mútuo de não ser usado o território de nenhuma das partes para afetar a segurança da outra. Depois da invasão da Crimeia, em 2014, poucos meses antes da cúpula do BRICS de Fortaleza, a Ucrânia declarou sua intenção de não renovar esse tratado em setembro de 2018. Mas, já imediatamente após a invasão da península, em fevereiro de 2014, os principais países do Ocidente adotaram sanções, ainda que moderadas, contra a Rússia; ela foi expulsa do G8, que voltou ao seu formato original.

Nesse tempo, e desde antes, forças russas já atuavam provocativamente nas províncias separatistas do Donbas, ameaçando, portanto, a integridade territorial da Ucrânia. O Brasil, teoricamente conhecido como possuindo uma diplomacia de estrita adesão à Carta da ONU e ao direito internacional, permaneceu estranhamente à margem do conflito, sem tomar qualquer posição sobre uma das mais graves violações ao princípio onusiano de não interferência nos assuntos internos de outros países. À época, a presidente Dilma Rousseff, não querendo dificultar a vinda de Putin para a cúpula do BRICS, evitou, deliberadamente, manifestar qualquer posicionamento oficial do Brasil sobre a flagrante ruptura de uma das cláusulas basilares das relações internacionais, inclusive inscrita no Artigo 4º da CF-1988. Mais adiante, questionada sobre a questão numa reunião do G20 na Austrália, no final de 2014, Dilma disse que não iria se manifestar sobre um “assunto interno” da Ucrânia, como se a invasão de seu território por uma potência estrangeira pudesse ser assim classificada. A Rússia ficou, obviamente, satisfeita com essa estranha neutralidade da parte do Brasil.

A mesma postura, já no governo Bolsonaro, foi adotada em fevereiro de 2022, quando da invasão maciça deslanchada por forças russas a partir da sua fronteira com a Ucrânia, mas também a partir da vizinha Belarus, causando a mais dramática ruptura na paz e na segurança internacionais desde o término da Segunda Guerra Mundial, superando mesmo os conflitos na ex-Iugoslávia, uma federação de povos e religiões diversas, envolvidos em guerras civis. Ainda que condenando formalmente, mas não nominalmente, a Rússia pela invasão, o Brasil de Bolsonaro evitou cuidadosamente responsabilizar diretamente a Rússia pela inaceitável violação dos principais artigos da Carta da ONU. Pouco tempo antes do início da guerra de agressão – já anunciada muitas semanas antes pelo presidente americano Joe Biden – o presidente brasileiro, contra recomendações contrárias insistentes da diplomacia profissional, fez questão de visitar Putin e, na sua presença, declarar-se “solidário” à Rússia. No retorno ao Brasil, declarou que tinha afastado o perigo da guerra: uma semana depois teve início a maior operação de guerra desde os grandes combates da Segunda Guerra, eufemisticamente apelidada por Putin de “operação militar especial”. 

A despeito de formalmente seguir a maioria dos membros da ONU, no CSNU, na AGNU e no Conselho de Direitos Humanos, nas resoluções que denunciaram a Rússia por violar dispositivos da Carta, o Brasil evitou acusar diretamente o país agressor: falou em favor de uma “solução pacífica das controvérsias”; recomendou a “cessação de hostilidades” entre as partes, como se estas fossem recíprocas; considerou que se deveria contemplar as “preocupações de segurança das partes”, como se, mais uma vez, estas fossem equivalentes; sobretudo, opôs-se à adoção de sanções – sob a escusa de que elas seriam “unilaterais”, como se o direito de veto estivesse sendo utilizado legitimamente, ou alegando que sanções não contribuiriam para uma “solução ao conflito”; também opôs-se ao fornecimento de armas e outros meios de defesa ao país atacado, para não “provocar maior número de vítimas”, como se a Ucrânia devesse se render ao agressor mais poderoso. Estas foram, basicamente, as posições adotadas pela diplomacia sob o comando de Bolsonaro desde o início do conflito; mas cabe registrar que elas não mudaram fundamentalmente, ou em nada, no governo Lula.

Ao contrário, o candidato Lula chegou a demonstrar uma postura ainda pior, ao acatar velhas e conhecidas posições da maioria da esquerda antiamericana do seu partido, no sentido de proclamar a culpa da Otan no conflito, assim como, de maneira ainda mais inaceitável, a responsabilidade pessoal do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky pela deflagração da guerra. Eleito presidente, ele evitou de tomar posição de maneira explícita sobre essas questões, mas começou a agitar a ideia de um “clube da paz”, que seria proposto por ele ao assumir a presidência. Também reincidiu na esquisitice folclórica ao afirmar uma “sabedoria” de senso comum: “quando um não quer, dois não brigam”. A mesma arenga foi repetida, quando já presidente, ao receber a visita em Brasília do chanceler alemão Olaf Scholz, numa frase que deve ter sido acolhida com estranheza ao redor do mundo. A proposta do “clube da paz” mostrou-se naturalmente natimorta, antes mesmo de sua visita ao presidente Joe Biden. Contudo, o Brasil de Lula continuou opondo-se, como no governo anterior de Bolsonaro, à adoção de sanções ou ao fornecimento de equipamentos bélicos à Ucrânia, na justificativa canhestra que tampouco o fazia em direção da Rússia (como se esta tivesse pedido, como fez, ao contrário, a Ucrânia, recebendo uma negativa de Bolsonaro, mantida sob Lula).

Nessas condições, o que pode pretender Lavrov em sua visita ao Brasil, depois de já ter visitado a África do Sul e de ter combinado com a presidência do país alguns temas da agenda do BRICS em sua próxima cúpula, e que chegou até a incluir uma fantástica moeda comum do bloco para os seus intercâmbios comerciais? Certamente vai querer a continuidade da política de “neutralidade” ou de “imparcialidade” do Brasil, no tocante à guerra de agressão que seu país leva adiante de forma criminosa na Ucrânia. O chanceler russo já havia saudado uma inexistente proposta de paz do Brasil para a “solução” do conflito (que nunca chegou a ser apresentada), bem como os 12 pontos apresentados pela China como base para uma discussão a respeito, plano já considerado inconsistente pelos países ocidentais. 

Ambas as iniciativas pecam pela absoluta falta de exigência da retirada das tropas russas do território ucraniano, sendo que uma resolução adotada na AGNU – portanto, nada mais do que simbólica – requerendo essa mesma premissa, recebeu um pequeno adendo do Brasil pedindo a “cessação de hostilidades”, o que representaria, de fato, o virtual congelamento da ocupação ilegal conduzida pelas tropas russas em 20% do território ucraniano. Não se sabe se os diplomatas brasileiros que apresentaram esse acréscimo coraram de vergonha pela contradição explícita da demanda em relação ao teor da resolução.

Existe a dúvida se Putin comparecerá à cúpula do BRICS na África do Sul, pois existe uma ordem de detenção do presidente russo por “crimes de guerra”, feita pelo Tribunal Penal Internacional, de cujo Estatuto de Roma o país africano é membro, o que o obrigaria a deter o dirigente russo e enviá-lo à Haia. Não parece haver esse risco, como não ocorreu quando o antigo ditador sudanês Omar al-Bashir ali compareceu numa reunião africana de cúpula. Mas, certamente, seria um enorme constrangimento pelo menos para o Brasil, para a África do Sul, e, talvez, para a Índia (embora esta não seja parte do TPI). Diplomatas brasileiros ouvidos em off pela imprensa minimizaram a importância do pedido de detenção de Putin pelo TPI, o que pode ser um reconhecimento realista quanto às limitações do TPI (e da CIJ, que não possuem os “dentes” do CSNU), mas também já pode significar uma adesão submissa à presumida postura do presidente Lula de evitar causar embaraços ao grande aliado original na formação do BRICS, uma das iniciativas das quais parecer orgulhar-se o presidente brasileiro, ao lado do IBAS (bloco político integrando a Índia, o Brasil e a África do Sul) e da Unasul. 

Tal postura parece ser exatamente o que Putin gostaria de ter da parte de Lula: uma “neutralidade” que, no plano objetivo, é inteiramente favorável à Rússia. Vai conseguir? Muito provavelmente, pois que o Brasil parece aderir, ainda que discretamente ou não assumidamente, ao tal de “Não Alinhamento Ativo”, inventado por alguns partidários de um “desalinhamento passivo e inativo” em relação à mais grave questão afetando a paz e a segurança internacionais desde décadas. Tal postura, supostamente identificada a um fantasmagórico “Sul Global” – que se considera ser neutro ou indiferente em face dessa cruel guerra de agressão –, reproduz, em diferentes circunstâncias e em outra dimensão, a falácia do pacifismo dos anos 1930, ou seja, a inação de importantes membros da comunidade internacional em resposta ao ativismo dos expansionistas, o que levou quase toda o planeta ao maior desastre humanitário e civilizatório de toda a história humana. 

Seria uma outra maneira, não confessada, de limitar essa cruel guerra de agressão ao contexto exclusivamente europeu, como se a violação da Carta da ONU e das normas mais elementares do Direito Internacional, e como se as transgressões dos tratados humanitários e das próprias leis da guerra fossem um assunto exclusivamente europeu, não universal. A diplomacia brasileira enfrenta aqui o seu mais relevante desafio das últimas décadas, talvez desde sempre: permanecer nessa “neutralidade” hipócrita, de indiferença, que só serve ao agressor, sob risco de negar seus mais solenes compromissos com o Estado de Direito no plano internacional, como já haviam peremptoriamente defendido o Barão do Rio Branco e o delegado Rui Barbosa na segunda conferência da paz da Haia, em 1907. Cem anos depois da morte do grande jurisconsulto baiano, aliás convidado para integrar a Corte Internacional de Justiça em 1923, a abstenção nessa causa representaria mais uma derrota do grande civilista e campeão da Justiça no plano internacional, em sua luta por uma verdadeira postura dos “neutros” em caso de crimes de guerra. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4344: 25 março 2023, 6 p.

 

domingo, 17 de setembro de 2023

O G20 (doravante G21) NÃO É o grupo mais importante - Jim O’Neill, Paulo Roberto de Almeida (Project Syndicate)

 O criador do acrônimo BRIC em 2001 (como mera carteira de investimentos para fundos institucionais), já deformado para BRICS em 2011, e agora totalmente desfigurado para BRICS+, com a inclusão de seis novos membros muito pouco representativos, acha que nem esse “grupo” (a serviço da China), nem o G7, a coalizão formada nos anos 1970 com as economias então dominantes, representam a base de um entendimento global. Ele está totalmente enganado: a declaração final do G20 de Nova Delhi — a partir de agora G21, com a inclusão da União Africana — não reflete nenhum consenso global, nem sobre os desafios comuns (meio ambiente e problemas sociais e desequilibrios entre regiões), nem sobre o mais importante desafio à paz e segurança internacionais: a guerra de agressão contra a Ucrânia pela Rússia de Putin (sequer mencionados na Declaração). Adicionalmente, a UA não é, nem nunca será o equivalente da UE, na economia  mundiais. Jim O’Neill equivocou-se na sua análise: o mumdo está tão fragmentado atualmente como esteve na primeira Guerra Fria.

Paulo Roberto de Almeida

The G20 Wins the Group Battle

Jim O’Neill
Project Syndicate, September 16, 2023

The joint declaration that emerged from last week’s summit in New Delhi offered further confirmation that the G20 is the only body with the scope and legitimacy to offer truly global solutions to global problems. Alternative groupings such as the G7 and the new expanded BRICS look like sideshows in comparison.

London - NDON – Following the recent summit of the BRICS (Brazil, Russia, India, China, and South Africa), where the group agreed to add six new  members I argued 


that neither it nor the G7 (Canada, France, Germany, Italy, Japan, the United Kingdom, and the United States – plus the European Union) has the credibility or the capacity to tackle global challenges. That leaves the G20 (comprising 19 of the world’s largest economies, plus the EU) as the only grouping with the legitimacy to offer truly global solutions to global problems.

The joint declaration that emerged from last week’s G20 summit in New Delhi provides further confirmation of this. Member states reached a consensus to address a wide range of issues. Despite obvious challenges – such as the considerable differences in how member states operate – they managed to reassert the G20’s relevance after a lengthy period in which its role had been called into question.


We should applaud those who played the biggest roles – presumably India and the US – in pushing through the final communiqué. The New Delhi declaration could be the first step in a stronger concerted effort to address global issues like climate change, the need for a revamped World Bank, infectious disease control, economic stability, the war in Ukraine, and other matters. Though this agenda was agreed in the absence of Russian President Vladimir Putin and Chinese President Xi Jinping, the Russian and Chinese representatives who did attend would not have signed on to anything without having cleared it with their respective governments.

Many speculate that Xi skipped the summit in order to snub India – one of China’s longstanding rivals – and Indian Prime Minister Narendra Modi. Whatever the motive, his decision had the effect of undermining the significance of the recent BRICS meeting, which many saw as a victory for China.

As I argued last month, the lack of Indo-Chinese solidarity will be a major stumbling block for the new BRICS. Now, Xi’s absence from the G20 summit has deepened the divide between the two countries. If Xi wants to convince us otherwise, he will need to reach out to Modi. As matters stand, the success of the G20 meeting makes Modi the clear winner in this season of summitry. Perceptions matter, and right now he looks more like a visionary statesman than Xi does.

Moreover, the G20 achieved another subtle, but important, step by agreeing to expand its ranks to include the African Union – making it a G21. This breakthrough gives Modi a clear diplomatic victory, allowing him to burnish his image as a champion of the Global South. It also further underscores the seemingly random nature of the BRICS’ own expansion, which includes Egypt and Ethiopia, but not other, more important African countries, such as Nigeria. The big question now is whether a permanent seat at the table will make the African Union itself a more effective body.

sábado, 16 de setembro de 2023

Negacionista Silencioso, o ministro dos Direitos Humanos seletivos - Demétrio Magnoli (FSP)

 NEGACIONISTA SILENCIOSO

Lula e Silvio Almeida negam direitos humanos por motivos geopolíticos e ideológicos

Demétrio Magnoli

Folha de São Paulo (15/09/2023)

No 16 de novembro de 1998, o então ex-ditador Pinochet foi preso em Londres por solicitação do juiz Baltasar Garzón. A prisão no Reino Unido de um chileno indiciado por um espanhol representou uma aplicação inédita do princípio da universalidade dos direitos humanos. Meses antes, o Estatuto de Roma estabelecera o Tribunal Penal Internacional (TPI), que entrou em vigor em 2002. Nos 50 anos do golpe de Pinochet, quando Lula investiu contra o TPI, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, alinhou-se ao presidente por meio de um silêncio cúmplice.

Lula e Almeida são negacionistas dos direitos humanos, mas o primeiro os despreza por motivos geopolíticos enquanto o segundo os renega por motivos ideológicos. As razões do presidente, embora abjetas, inscrevem-se na esfera superficial do oportunismo. Já as razões do ministro têm raízes profundas e, por isso, ferem o núcleo da cultura dos direitos humanos.

Meses antes de assumir o ministério, Almeida publicou um artigo esclarecedor. Consagrado à invasão da Ucrânia, o texto conseguiu a proeza de, ao longo de 613 palavras, evitar a responsabilização de Putin. Nele, invoca-se a "complexidade do evento" para, afastando "reflexões maniqueístas", atribuir o "conflito" ao "expansionismo capitalista" e à "lógica destrutiva da mercadoria" (leia-se: EUA). Culpa coletiva, difusa, espalhada: "todos os governos estão cientes do horror que estão promovendo".

O substrato ideológico do artigo encontra-se, contudo, em outro lugar: uma citação de 1950 do martinicano Aimé Cesaire, que ainda militava no Partido Comunista Francês e admirava Stalin. Segundo Cesaire, a indignação diante do nazismo, fonte da Declaração Universal de 1948, não decorria do "crime contra o homem, mas contra o homem branco" pois inexistiria diferença fundamental entre a máquina de extermínio hitlerista e os "processos colonialistas" europeus.

Cesaire escreveu durante 66 anos. Almeida escolheu o voo mais baixo do martinicano. A passagem pertence à extensa tradição do antissemitismo soft contemporâneo que, no lugar da negação factual do Holocausto, opera pela sua relativização. Mas a cuidadosa seleção faz sentido: o objetivo do ministro é exibir a cultura dos direitos humanos como pura hipocrisia de brancos ocidentais.

A narrativa identitária de Cesaire e Almeida tem mil e uma utilidades, inclusive a proteção de Stalin, no caso do primeiro, e a de Putin, no do segundo. Sobretudo, porém, trata-se de contestar a natureza universal dos direitos humanos para sustentar uma doutrina assentada na cisão "brancos/não-brancos". Daí, a hostilidade tanto à Declaração Universal quanto ao TPI, seu principal fruto.

"Todos os seres humanos podem invocar os direitos e liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião...". O artigo 2º da Declaração Universal, aprovada antes da queda dos impérios coloniais, indica o alcance da reação civilizatória ao Holocausto.

O Estatuto de Roma nasceu do repúdio ao genocídio de Ruanda (1994) e ao massacre de Srebrenica (1995), eventos incompreensíveis nos termos da doutrina identitária. A "purificação racial" foi a mola propulsora de ambos. Na antiga Iugoslávia, militares sérvios eliminaram milhares de civis muçulmanos bósnios. No país africano, a ditadura hutu comandou o extermínio de mais de meio milhão de tutsis. "Brancos contra brancos" e "negros contra negros"? O exterminismo racista não precisa de diferenças de cor de pele.

O crime de Putin que provocou a ordem de prisão do TPI é do mesmo tipo. A deportação de dezenas de milhares de crianças ucranianas para a Rússia destina-se a russificá-las, um passo no projeto de eliminar a Ucrânia como nação. O negacionista Almeida não vê escândalo nisso: "brancos contra brancos", tudo bem.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

O abraço dos párias - Editorial, O Estado de S. Paulo

O abraço dos párias

Editorial, O Estado de S. Paulo (15/09/2023)

O apelo de Putin ao lunático Kim mostra que suas cartas estão acabando, mas pressagia riscos para a Ucrânia, para as democracias, a estabilidade na Ásia e para a segurança global

Depois da primeira invasão da Ucrânia, em 2014, a Rússia foi expulsa do G-8. Após a segunda invasão, Vladimir Putin faltou às duas cúpulas do G-20 e foi “desconvidado” da última cúpula do Brics pela África do Sul, que se veria obrigada a cumprir uma ordem de prisão expedida pelo Tribunal Penal Internacional. Com efeito, sua única visita internacional (sem contar os antigos satélites soviéticos que hoje integram o Tratado de Tasquente, a Otan russa) foi ao Irã. Agora, Putin estendeu o tapete vermelho para Kim Jong-un, o neto do tirano fantoche imposto por Stalin à Coreia do Norte, o Estado mais fechado e totalitário do mundo – uma versão em miniatura, mas com esteroides, do que a Rússia está se transformando sob Putin.

O conclave na base espacial de Vostochny foi celebrado com pompa e circunstância pelas mídias dos dois regimes, e Kim prometeu “apoio pleno e incondicional” à Rússia em sua “luta sagrada contra o Ocidente”. Mas não houve comunicados oficiais. É certo, no entanto, um acordo para o fornecimento de armas à Rússia.

Isso representa um risco iminente para a Ucrânia. Após o fracasso fragoroso de seu Plano A, uma blitzkrieg contra a Ucrânia, Putin aposta numa guerra de atrito, na expectativa de que o tempo exaurirá as forças ucranianas e a solidariedade ocidental. Mas Kiev tem realizado avanços, ainda que modestos, em sua contraofensiva. O Kremlin está com dificuldades de repor sua munição, e os recrutamentos compulsórios têm gerado desgosto na população. A Coreia do Norte tem amplos estoques e fábricas de bombas e foguetes, a maioria baseada em tecnologias soviéticas compatíveis com o arsenal russo. O acordo pode envolver ainda mísseis balísticos de curto alcance, blindados, drones e até mesmo tropas.

Em troca, a Rússia pode oferecer óleo cru e grãos a um país famélico e falido. O principal interesse de Kim, contudo, está na transferência de tecnologia para modernizar seu arsenal. Isso intensificaria as tensões na Ásia. Vizinhos apreensivos com um Estado errático e agressivo poderiam responder escalando sua corrida por arsenais.

A China, que exerce um poder tutelar sobre os dois países, não tem interesse nessa instabilidade e pode interferir para limitar esse escambo sinistro. Mas só em parte. Pequim não vê nenhum problema em uma guerra prolongada na Europa e certamente se compraz com a tal “luta sagrada” contra o “imperialismo” ocidental.

O pacto pode ainda intensificar a degradação do controle global de armas nucleares, já no seu ponto mais periclitante desde a guerra fria. Nem à Rússia nem à China interessa robustecer as capacidades nucleares de Kim. Mas, a depender da barganha, Moscou pode violar seus compromissos com as sanções da ONU à Coreia do Norte e cooperar com o desenvolvimento não só de satélites de espionagem, como de mísseis e submarinos nucleares.

O conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, advertiu que os países “pagarão um preço”. Mas anos de sanções unilaterais e mesmo multilaterais tiveram impacto limitado sobre a Coreia do Norte, e a Rússia tem engendrado meios de contornar essas barreiras para financiar sua guerra. No G-20, as potências ocidentais se viram obrigadas a aliviar as pressões pela condenação da Rússia para garantir uma declaração conjunta e impedir o malogro da presidência rotativa da Índia, com quem contam para reequilibrar as relações de poder na Ásia. O presidente americano, Joe Biden, legitimamente preocupado com uma escalada, tem hesitado em enviar mísseis de longo alcance para a Ucrânia, apesar do apoio bipartidário do Congresso. A hesitação pode se transformar em franca recusa se Donald Trump for eleito no ano que vem, algo com que Putin conta.

Nada de bom pode sair desse abraço sombrio dos párias. Ele pressagia ameaças para a Ucrânia, para a estabilidade na Ásia, para o eixo democrático e para a segurança global. Se há um aspecto positivo, é o fato de que ele revela que as cartas de Putin estão se esgotando. Mas mesmo esse consolo é ambivalente. Déspotas desesperados são mais, não menos, perigosos.