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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 21 de outubro de 2023

Origens dos povos atuais do Oriente Médio - Guga Chacra (O Globo)

 Origens dos povos atuais do Oriente Médio

Guga Chacra

O Globo, 20/10/2023


Meu avô nasceu otomano, achava que fosse sírio, disseram que era libanês e, se nascesse alguns quilômetros mais ao Sul, seria palestino. As vilas daquela região do Mediterrâneo Oriental integravam o Império Otomano, com sede na distante Istambul (Constantinopla). Não existiam fronteiras no que hoje é Israel, territórios palestinos, Líbano e Síria. A pessoa se identificava com sua vila, com sua religião e com sua região. Poderia ser um cristão melquita de Zahle, um muçulmano sunita de Nablus, um judeu de Aleppo, um muçulmano xiita de Nabatieh, um cristão armênio de Jerusalém, um druso das Colinas do Golã, um alauíta de Tartus ou um cristão greco-ortodoxo de Haifa. Todos eram súditos otomanos. A noção de Estado nacional era inexistente naquela região até a Primeira Guerra Mundial, quando os otomanos foram derrotados e viram seu império desmoronar. França e Reino Unido, que foram os vencedores da guerra, dividiram entre si essa região do Levante, assim como outras partes do Império Otomano, a não ser pela Turquia. Por exemplo, os britânicos uniram três províncias diferentes na Mesopotâmia e inventaram uma monarquia artificial chamada Iraque. Anos depois, fariam o mesmo no que hoje é a Jordânia. A França ficou com o que hoje é a Síria e o Líbano, que foram criados durante o mandato francês nos anos 1920 e viriam a ficar independentes nos anos 1940. O Reino Unido, por sua vez, ficou com a região da Palestina histórica. Como no restante do Levante, tratava-se de uma região multireligiosa. Basta ver que a cidade antiga de Jerusalém historicamente é dividida em quatro quadriláteros – o cristão, o armênio (que tb é cristão), o islâmico e o judaico. A maioria da população era muçulmana, mas havia expressivas minorias de diferentes denominações cristãs e judaicas. Diferentemente do que ocorreu no Líbano e na Síria com a França, a região onde estava a Palestina histórica teve um status indefinido pelos britânicos. Afinal, além da população que ali vivia (muçulmanos, cristãos e judeus), ocorreu uma enorme imigração de judeus europeus durante o movimento sionista. Diferentemente da população local, eles traziam uma noção de Estado-nacional e, diante das perseguições que sofriam na Europa (pogroms), consideravam o que hoje é Israel como o único lugar onde poderiam estabelecer uma nação judaica dado os laços milenares com região, onde está Jerusalém, berço do judaísmo – essa ideia ganhou ainda mais força ao redor do mundo com o Holocausto. Neste momento, duas identidades passam a se chocar. A dos muçulmanos e cristãos, que não tiveram uma nação para as suas vilas sob o mandato britânico, diferentemente do que ocorreu com os das vilas nas recém-independentes Síria e Líbano com a França – e com o colapso otomano começava a emergir a identidade palestina. E a dos judeus tanto vindos da Europa como os locais, que queriam uma nação judaica. Naquele momento, talvez, até pudessem ter um Estado sectário sem maioria religiosa, como o Líbano. No fim, os palestinos não aceitaram a partilha por avaliar ser injusta porque dava áreas de expressiva maioria árabe para Israel. O fato é que houve a guerra de 1948que resultou na expulsão e saída da maioria dos palestinos do territórios israelenses – a maioria dos habitantes de Gaza descende de palestinos que viviam há gerações no que hoje é Israel. Paralelamente, nos ano seguintes, houve a expulsão ou saída de judeus de países como Síria, Egito, Iraque e, posteriormente, Líbano. Segundo o escritor franco-libanês Amin Maalouf, que preside a Academia Francesa de Letras, estes dois acontecimentos são a tragédia do Levante, como é conhecida esta região. oglobo.globo.com/blogs/guga-cha

A pirotecnia do lulopetismo diplomático - Ciro Nogueira

O artigo é maldoso, como compete a um dos chefes da oposição ao governo do PT, a Lula em especial, mas não se pode negar que a política externa continua sendo petista, em sua essência, e que a diplomacia está sendo inteiramente e novamente mobilizada para servir a todos os desejos e manias de Sua Majestade Lula III. A pirotecnia é inegável, mesmo equivocada, pois o antiamericanismo é contraditório com o fato de que foi Biden, finalmente, que garantiu a vitória e a POSSE de Lula, contra as manobras golpistas do seu antecessor psicopata (ainda bem que mais burro e inepto do que propriamente louco). Lula deveria agradecer a Biden, em lugar de hostilizá-lo com seu pró-putinismo e de fazê-lo rir com essa mania de desdolarização e construção de uma nova ordem global antiocidental. Biden deu o troco ao vetar o projeto do Brasil no CSNU (que também foi por razões de política interna): o próximo projeto de caráter humanitário será de muitos outros países (árabes sobretudo), o que tira um pouco da glória que o lulopetismo diplomático esperava retirar da aprovação do que foi apresentado pelo Brasil. Mas o artigo deve ter sido escrito antes do veto americano.



Imagem do artigo nesta postagem do FB:

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid0jNo7Le2HMCXSpP2tqCzT4XHG8cXA1QSDaVggXwKZ68SgwfJjaKok1kgGniaDR1ajl&id=100001603782224&mibextid=gemnTY 


sexta-feira, 20 de outubro de 2023

O Milei não é nem o Bolsonaro argentino nem ultradireitista’, diz Helio Beltrão (Estadão)

 O Milei não é nem o Bolsonaro argentino nem ultradireitista’, diz Helio Beltrão 


Para o fundador do Instituto Mises Brasil e um dos principais pregadores das ideias libertárias no País, é ‘surpreendente e excitante’ a possibilidade real de o candidato à presidência da Argentina se tornar o primeiro presidente anarcocapitalista do mundo 

 O fundador e presidente do Instituto Mises Brasil, Helio Beltrão, é um dos principais pregadores das ideias libertárias no País. Formado em engenharia elétrica pela PUC do Rio de Janeiro, com MBA em finanças pela Universidade Columbia, nos Estados Unidos, Beltrão, de 56 anos, é um fiel seguidor do pensamento do economista Ludwig von Mises (1881-1973), um dos expoentes da chamada Escola Austríaca, que defende o ultraliberalismo na economia, centrado no poder soberano do mercado na formação dos preços de produtos e serviços. Nesta entrevista ao Estadão, Beltrão analisa a real possibilidade de o economista Javier Milei, candidato do partido Liberdade Avança à presidência da Argentina e também entusiasta das ideias da Escola Austríaca, vencer as eleições no país, cujo primeiro turno ocorre neste domingo. “Para mim, é algo absolutamente surpreendente e excitante que an Argentina tenha um candidato anarcocapitalista como favorito nas eleições”, diz. 

 Ele fala também sobre as principais propostas econômicas e de costumes de Milei, a quem conheceu de passagem num evento realizado na Argentina em meados da década passada, e comenta os rótulos políticos que lhe são atribuídos no Brasil, como “Bolsonaro argentino”, “ultradireitista”, “ultraconservador”, “extrema direita” e “populista”. “O Milei não é nada disso”, afirma. Qualquer pessoa que conhece um pouco de libertarianismo e anarcocapitalismo sabe que não tem nada a ver com ultradireita Como o sr. vê a ascensão de um candidato anarcocapitalista, como o Javier Milei, na Argentina e a possibilidade de ele chegar ao segundo turno das eleições e eventualmente se tornar o próximo presidente do país? Para mim, é algo absolutamente surpreendente e excitante que an Argentina tenha um candidato anarcocapitalista, que defende as ideias da Escola Austríaca de Economia, como favorito nas eleições. Eu não esperava que já houvesse viabilidade política para que um libertário como o Milei – que vai até o extremo na ideia de que é o mercado privado que tem de dar conta de todos os serviços, de toda a governança da sociedade – pudesse disputar as eleições com reais condições de sair vencedor. 

Se ele ganhar, será o primeiro presidente anarcocapitalista da história. Isso para mim será inacreditável. O que explica, em sua opinião, essa receptividade às ideias libertárias defendidas pelo Milei na Argentina? Eu atribuo isso ao caos econômico, ao caos inflacionário argentino. Pela primeira vez na história, os níveis de pobreza na Argentina estão maiores do que os do Brasil. A pobreza na Argentina já atinge mais de 40% da população e o nível de pobreza absoluta está acima dos 10%. No Brasil, a pobreza total atinge cerca de 30% da população e a pobreza absoluta está em torno de 8%. Hoje, an Argentina, que tinha o dobro da renda per capita do Brasil até pouco tempo atrás e já chegou a ter muito mais do que isso, está numa situação dramática. Houve um colapso do poder aquisitivo, da renda, do nível de emprego. 

O país quebrou e teve de recorrer novamente ao FMI (Fundo Monetário Internacional). Foi o oitavo ou nono calote da Argentina na história. Acredito que tudo isso convenceu a população de que eles precisam de soluções novas. Eles viram que não dá mais para seguir com os kirchneristas, os peronistas. Até o (Mauricio) Macri (ex-presidente da Argentina), que prometeu ser um pouco mais liberal, mas não foi, deu com os burros n’água. E quem é o novo? É o Milei. Então, eles resolveram apoiá-lo. Não sei se é tanto pela sua visão doutrinária, mas pela percepção de que ele apresenta uma solução realista para an Argentina. Agora, desde que o Milei venceu as primárias, em agosto, ele tem sido chamado de tudo aqui no Brasil: “Bolsonaro argentino”, “ultradireitista”, “ultraconservador”, “extrema direita”, “populista”. 

Como o sr. analisa isso? Até que ponto esses rótulos têm mesmo a ver com as ideias e as propostas que ele defende? Primeiro, deixe eu pegar o mais chocante, que é chamar o Milei de ultradireitista. Quando começaram a falar o nome dele na mídia, eu estava no ar na CNN e disse: “Pode parar. Ultradireitista nem a pau”. Aí tentei explicar isso, na medida em que eu podia. Acredito que deu certo, porque de repente as pessoas começaram a falar que ele é anarcocapitalista, o que é surpreendente para mim aqui no Brasil, ou ultraliberal, que é mais justo. Qualquer pessoa que conhece um pouco de liberalismo, libertarianismo e anarcocapitalismo sabe que não tem nada a ver com ultradireita.

 O ultradireitista defende o nacional-desenvolvimentismo, com forte interferência do Estado na economia, e neste aspecto é muito parecido com o que a gente vê a esquerda defender no Brasil. O ultradireitista também é contra o casamento gay e a favor da proibição das drogas. O Milei não é nada disso. Em relação a chamá-lo de “Bolsonaro argentino”, qual a sua avaliação? Quanto a “Bolsonaro argentino” até entendo de onde vem a crítica. Ele teve alguns contatos com o Bolsonaro e com o Eduardo (filho do ex-presidente). Falaram-se muito durante o governo Bolsonaro e o Milei tentou navegar nessa onda, mas ele não é Bolsonaro, assim como eu não sou Bolsonaro, mas sei que algumas pessoas acham que eu sou Bolsonaro. Não coloco a minha mão no fogo, mas acredito que ele é muito mais hábil politicamente, menos dogmático e menos radical do que o Bolsonaro. 

Já está construindo alianças, para o caso de vencer as eleições. Também não tem nenhuma identificação com os militares. Aliás, ele conta que, quando tinha 8/9 anos, na época da guerra das Malvinas, tomou uma surra do pai, com quem acabou rompendo, porque falou que a Argentina não tinha de entrar em guerra. Não sei se foi a palavra que ele usou quando falou do assunto, mas ele ficou com um trauma por causa disso e considera que isso representou um aspecto importante da sua formação. O Milei é um cara pacífico. Não é por esse lado de jeito algum. Sobre ele ser chamado de “populista”, qual a sua a visão? Sobre populista também entendo de onde vem, porque o Milei criou essa persona amalucada, que ele não é. É claro que ele não é 100% normal. Não é isso que estou dizendo. Mas é um acadêmico, que criou uma persona, com aquele cabelo despenteado, fazendo quadros histéricos na televisão, para passar a mensagem dele. Isso teve eco na sociedade argentina, porque ele manda bem nessa persona. Embora isso não o caracterize, quando ele faz esse papel, quando usa essa retórica, dá para entender que as pessoas pensem que é um populista. 

Só que ele não está prometendo uma porção de coisas para um monte de gente, que é o que o populista mais faz, sem explicar de onde vem o dinheiro. Ao contrário. Está falando que vai tirar um monte de coisas das pessoas, porque que não tem como pagar, em um debate franco, direto, falando que esse pessoal que tomou conta da política argentina é uma corja, uma casta, como ele diz. Então, neste aspecto, no sentido mais tradicional da esquerda paternalista, que fica prometendo coisas para ganhar apelo popular, o Milei não é um populista. Não acredito que o Milei vai adotar um estilo Bolsonaro de governar Agora, tem uma característica comum entre o Milei e o Bolsonaro que é a postura antipolítica e antissistema. O caso do Milei é um pouco diferente do caso do Bolsonaro, porque o ex-presidente tinha essa retórica, mas estava há 40 anos na política, enquanto ele só se tornou deputado há dois anos. 

Mas isso não contribui para relacioná-lo com Bolsonaro? Você tem toda a razão, mas acho que é uma estratégia de campanha. Como falei há pouco, o Milei já está fazendo coalizões. A forma como ele se coloca em relação aos políticos tradicionais, dizendo que vai varrer os peronistas, os kirchneristas, que são uma vertente peronista, sugere uma semelhança entre os dois, mas não me parece que ele vai passar o rodo como o Bolsonaro quis fazer quando chegou lá, porque tinha recebido 57 milhões de votos. Ele me parece bem diferente do Bolsonaro. Não acredito que queira subverter o sistema nem que vá tentar enfiar suas propostas goela abaixo da população e adotar um estilo Bolsonaro de governar. Acho que ele entende as limitações da política. 

Vai ser tudo negociado e mediado pelo sistema político. Agora, que ele usa a retórica antissistema na campanha para benefício eleitoral não tem dúvida, mas isso faz parte do jogo. Ainda nessa questão do Milei e do Bolsonaro, ele já se disse admirador do ex-presidente e mantém uma relação próxima com seu filho Eduardo. Se o Milei tem mesmo todas essas características diferentes do Bolsonaro que o sr. diz, o que explica isso? Não sei se ele tem expressado isso ultimamente. Ele realmente expressou um ano atrás. Ele já veio para o Fórum da Liberdade, em Porto Alegre, é um economista austríaco, que conhece a Escola de Chicago, e um anarcocapitalista. Essa é a sua essência. Se o Milei conversar mais de meia hora com o Bolsonaro vai descobrir que ele é nacional-desenvolvimentista, militarista, não gosta de privatização, acha que tudo é questão estratégica, essas coisas todas. Vai encher o saco dele rapidinho. Agora, eu acredito que, quando você está numa briga em que o outro lado tem uma cabeça intervencionista, defende pautas de classe marxistas e pautas identitárias, não adianta ficar no seu nichinho liberal, tradicional, falando só de economia. 

Não é meramente um colóquio de economistas discutindo as melhores práticas do Consenso de Washington. É uma briga cultural. Acredito que o Milei entende o componente cultural da briga. Não tem medo de discutir política identitária. Vai no âmago da questão quando joga na cara dos peronistas, dos kirschneristas que eles querem tirar dinheiro de Pedro para dar para Paulo. Neste sentido, consigo até entender que o Milei tenha estado próximo do Bolsonaro. Afinal, o Bolsonaro teve êxito até um certo ponto em fazer essa guerra cultural, embora tenha perdido de goleada depois. Hoje, não sei como eles estão. Acho que, hoje, se o Milei é esperto, não está mais falando essas coisas. O Bolsonaro está cada vez mais radioativo. Em relação às propostas de governo, o Milei defende a realização de uma profunda reforma do Estado, que ele chama de “organização criminosa” e diz ser responsável pelo empobrecimento da Argentina. 

O sr. concorda com ele? Ele tem toda razão. Foram as políticas públicas implementadas pelo kirchneristas e antes pelos peronistas, com um pequeno intervalo de Macri, que não teve muito efeito, porque mesmo ele também foi destrutivo em muitos aspectos, que destruíram an Argentina. O Estado é o grande culpado pelo desastre argentino. O efeito mais óbvio é a inflação, que é um reflexo do nível de impressão de dinheiro que se fez no país, para cobrir gastos para os quais não era possível levantar mais recursos em impostos. No fundo, tudo volta para os tais gastos dos programas sociais que eles estão tentando fazer, porque querem dar uma porção de benefícios para ter curral eleitoral. Foi essa política populista que causou o caos na Argentina. 

 O argentino pensa em dólar. Praticamente todo o dinheiro usado na rua já é em dólar Na economia, além de um ajuste fiscal rigoroso, com corte de gastos e redução de ministérios, das reformas trabalhista e da Previdência e das privatizações, o Milei pretende também promover a dolarização e acabar com o Banco Central. Como o sr. analisa isso? Se não me engano, a plataforma dele não previa acabar com o Banco Central logo na largada, mas os fatos o estão levando a defender a dolarização de imediato. 

Os argentinos já decidiram que politicamente eles precisam resolver a questão da inflação e estão escolhendo o Milei, porque querem uma solução anarcocapitalista para a moeda. Como ele diz, o foco é tirar essa casta política e resolver o problema da inflação. Você tem de tirar o poder de emissão de dinheiro das mãos dos políticos e dos burocratas. Se não resolver o problema da inflação primeiro, você não consegue resolver o problema das contas públicas. Neste aspecto, é um pouco parecido com o Plano Real. Precisava ter o foco para debelar a inflação e depois tratar das outras questões, da diminuição do tamanho do Estado.

 Não precisaria ser anarcocapitalista para defender isso. Já foi feito em El Salvador, no Panamá, no Equador. Alguns economistas estão dizendo que an Argentina precisaria de US$ 40 bilhões para fazer a dolarização da economia. Só que o país não tem dólar nem para pagar a dívida externa nem para bancar importações. Onde o Milei vai buscar esse dinheiro? O grande problema da Argentina hoje são as Leliqs (Letras de Liquidez), que são títulos emitidos pelo Banco Central, carregados pelo sistema bancário, e que representam cerca de 90% do passivo da instituição. 

Todo o problema é como equacionar essa dívida do Banco Central, que no fundo é uma dívida do país com os argentinos, porque o resto é automático. No dia seguinte à dolarização, as contas correntes serão automaticamente convertidas em dólar, pelo câmbio paralelo, óbvio, porque o câmbio oficial de 350 pesos por dólar não representa a realidade do mercado. Hoje, 80% das transações, não em número, mas em valor, já são baseadas em dólar. O argentino pensa em dólar. 

Praticamente todo o dinheiro usado na rua já é em dólar. É quase como se o peso fosse usado só para troco, para transações de baixa monta, pela destruição absoluta que fizeram da moeda. Então, eles já estão acostumados com essa realidade. Agora, como obter os dólares para equacionar a dívida do Banco Central? Nos cálculos dos economistas Emilio Ocampo, que acabou de ser indicado por Milei para presidir o Banco Central se vencer as eleições, e Nicolás Cachanosky, autores do livro Dolarización: uma solución para la Argentina’, publicado no início do ano passado, já seria possível bancar as Leliqs com um câmbio de 750 pesos por dólar. Se for no câmbio de mil pesos, que é mais ou menos a cotação atual do dólar paralelo, o chamado dólar blue, será mais moleza ainda. Então, não é que ele vai precisar de dólares, porque os títulos públicos argentinos que dão lastro ao balanço do Banco Central já serão denominados em dólar. 

A questão é que esses títulos estão cotados hoje a 25% do valor de face e têm prazos mais longos do que os das Leliqs. O problema é como casar o que o Banco Central tem no ativo, que são os títulos públicos argentinos, com o que tem ele tem no passivo, que são basicamente as Leliqs. Pelas contas do Ocampo e do Cachanosky, ao câmbio de mil pesos já haveria lastro suficiente para pagar as Leliqs e não seriam necessários esses US$ 30 bi de que estão falando por aí. O Milei está 100% certo de eliminar as tarifas de importação No passado, na gestão do ex-presidente Carlos Menem (1930-2021) já fizeram a dolarização na Argentina e não deu certo. Por que acreditar que, desta vez, vai funcionar? O que foi feito na pelo Menem não era dolarização. Era um sistema parecido com o de Hong Kong. 

Havia um currency board (fundo de estabilização cambial), pelo qual cada dólar que entrava no país gerava um peso correspondente e cada peso que queria sair era trocado por dólar. Enquanto an Argentina manteve esse sistema, funcionou muito bem. O problema foi quando o Domingo Cavallo (então ministro da Economia) resolveu que eles não precisavam lastrear tudo em dólar e que dava para ter um pedaço da base lastreado em títulos públicos denominados em dólar emitidos pela República Argentina. Aí, a coisa foi para o vinagre. O sistema explodiu, porque os políticos trocaram a Lei de Conversibilidade, que dizia que precisava ter lastro em dólar, em título público americano, por uma nova regra, que abriu o caminho para o descontrole monetário. Numa dolarização real, não há uma taxa de conversão. 

As pessoas usam a moeda que o banco aceita como depósito em conta corrente, no caso o próprio dólar ou outra moeda forte. Então, não tem esse risco. No atual cenário econômico do país, em que é urgente atacar a inflação, essa solução não só é a mais sensata como talvez seja a única possível que eles têm na mesa. Sorte do Milei, que está defendendo essa proposta. Outra proposta polêmica é o corte dos impostos de importação. Faz sentido isso? Estou 100% de acordo com a ideia de zerar as tarifas. Mas, se não me engano, ele colocou na página inicial da plataforma de governo zerar tarifas sobre bens essenciais na partida e não sobre bens finais, como fez o Chile, na década de 1990, que veio baixando gradualmente as taxas até ter uma tarifa de 3% pra tudo. No fundo, 3% e zero é quase a mesma coisa, dado o que o Brasil e an Argentina praticam hoje. Então, o Chile já fez isso e países pequenos fazem isso até por necessidade. 

Hoje, há tarifas de importação para computador, para maquinário, para uma porção de coisas que você precisa para produzir. Você jamais vai conseguir competir com uma China, que não tem tarifa de importação, ou com os Estados Unidos, que têm tarifas mínimas. Você sempre vai ficar fora das cadeias de suprimento, porque nunca vai poder competir com outros países que compram computador e insumos pagando metade do preço. No Brasil, o empresário é competitivo da porta para dentro da fábrica, mas não é competitivo no resto do mundo, porque é obrigado a pagar o “custo Brasil” e dentro disso um dos principais componentes é a tarifa de importação, que deixa tudo muito mais caro aqui. Por isso, a gente é bom em agro lá fora, porque não tem tanto imposto sobre insumos importados, como fertilizantes. Você não transforma os produtos agropecuários aqui e consegue se livrar da “senzala Brasil” de tarifas de importação. Mas industrialmente não tem jeito. A Embraer escapa e é competitiva porque consegue importar sem tarifa de importação desde que exporte o produto final. 

Mas o resto do Brasil, o Brasil real, que não é agro nem Embraer, está ferrado. Então, o Milei está 100% certo de eliminar as tarifas de importação. O Emilio Ocampo, que é o braço direito do Milei na economia, diz que é realista fazer um ajuste fiscal de 3% do PIB Na área social, o Milei defende um corte nos benefícios sociais. Ele diz inclusive que “direitos são ótimos, mas alguém tem de pagar”. Considerando que an Argentina tem hoje mais de 40% da população na linha de pobreza, como o sr. mesmo afirmou, faz sentido cortar benefícios sociais? Isso eles têm falado bastante. Eu não sei os detalhes dos cortes que ele propõe, mas o Emilio Ocampo, que é o seu braço direito na economia e quem mais importa, diz que é realista fazer um ajuste fiscal equivalente a 3% do PIB (Produto Interno Bruto) no primeiro ano, para tornar crível o plano de governo. Então, ele vai precisar encontrar as áreas para fazer esse corte. 

Acredito que não será cortando programa social na porrada, no primeiro ano. Pode ter um pente fino, para reduzir as fraudes, cortar benefícios de gente que recebe o que não deveria receber, essas coisas, aqueles exageros que os kirchneristas fazem, mas acho que não deve ir muito além disso. Agora, ele defende também o fim da educação pública com a distribuição de vouchers e a privatização gradual da saúde. A educação e a saúde estatais não são indispensáveis para a população de baixa renda? Essa privatização da saúde e da educação que ele pretende implementar faz sentido? Ele não fala em privatização da educação. 

Ele fala em começar um programa de distribuição de vouchers. Isso não quer dizer que ele vai vender as escolas públicas e distribuir voucher para todo mundo estudar em escolas privadas imediatamente. Ele não falou isso nem está no programa de governo dele. Na saúde, deve ser feito algo parecido, com mais soluções privadas. Mas ele não pretende acabar com o atendimento público. Na minha opinião, o maior gerador de desigualdade de oportunidade é a educação pública. 

Quem tem acesso à escola privada tem oportunidade maior do que quem tem acesso à educação pública. Isso acontece em boa medida porque quem faz a gestão da escola, a gestão predial, a compra da merenda, essas coisas todas, e define a pedagogia é o governo. Faz sentido, então, pensar em separar o pagamento do serviço da gestão. Você pode fazer todo uma privatização, vamos chamar assim, da infraestrutura, e continuar pagando para todo mundo que precisa da educação e da saúde um determinado valor para a pessoa ter acesso aos serviços privados. Uma prefeitura que, por exemplo, precisa de 10 mil vagas por ano na rede pública poderia contratar esse valor, pagar esse valor para as escolas privadas acomodarem esses alunos. 

O dinheiro sai do orçamento da prefeitura, mas não é o governo que faz a gestão. Vai ser um valor de X por aluno, com metas de desempenho, e isso representará uma revolução. Alguns vão acusar que será uma privatização da educação. Mas o governo não estará deixando de atender quem precisa e isso é o mais importante. A mesma lógica vale para a saúde. O sr. acredita que isso vai melhorar a qualidade da saúde e da educação? Não tenho a menor dúvida. Mas eu não estou dizendo que o Milei vai implementar isso no primeiro ou no segundo ano de governo. Ele está querendo ir nesta direção. Não está dizendo que vai explodir tudo no dia zero. 

Há oito anos, quando discuti esse assunto em Curitiba, a secretária da Educação falou para mim que cada aluno na educação pública custava R$ 850 por mês de custo direto, sem incluir os custos indiretos da máquina pública. e que, se contratasse uma escola privada para o serviço, sairia por R$ 350. Mas, segundo ela, quando quis implementar o novo sistema, ficou tomando porrada do Ministério da Educação, que não a deixou seguir e frente. Mesmo que você fale que quer que todos os professores sejam da rede pública, tudo bem. Mesmo neste caso, que não seria o ideal, daria para converter uma escola pública numa O.S. (Organização Social), que passaria a ter um contrato com a prefeitura. O professor continuaria na folha de pagamento da prefeitura, mas todo o resto seria administrado pela iniciativa privada, como já é feito em alguns casos na área de saúde no Brasil. Existem soluções intermediárias, com as quais imagino que o Milei vai começar seu governo, se ele for eleito. Não há contradição entre ser um libertário e ser contra o aborto Na área de costumes, o Milei parece bem liberal. 

Ele diz, por exemplo, que é favorável ao casamento do pessoas do mesmo sexo e à adoção de crianças por casais homossexuais. Mas ele é contra o aborto. Isso não é uma contradição, para quem é um libertário e deveria defender a liberdade de escolha individual? Não. Não há contradição nenhuma. O liberal defende a liberdade do indivíduo e da propriedade. O que costumo dizer é que não tem resposta certa para isso, porque há o conflito de dois direitos, o direito à vida humana, desde que o embrião é fecundado, e o direito do corpo da mulher. Como o feto consegue sobreviver a partir de cinco meses de idade, se você abortar depois disso vai matá-lo. 

Tem também uma discussão sobre o que acontece antes desse prazo. É uma questão complexa. De um lado, há a liberdade individual da mulher; de outro, a vida do ser humano. Como você resolve esse conflito? Para onde você vai pender? Não tem resposta dentro da doutrina libertária. Tem que resolver fora da doutrina, conforme as suas visões de mundo, visões morais, talvez sua lógica. Então, não tem contradição entre um libertário que permita o aborto no segundo mês e um libertário que diga que isso não deve acontecer. Agora, no quinto mês, acho que é assassinato. Para finalizar, gostaria de saber a sua opinião sobre a liberalização do porte de armas e a legalização do mercado de órgãos, que o Milei defende. Isso estaria dentro também do capítulo das liberdades individuais? Em relação à legalização do mercado de órgãos é uma questão polêmica. Não está no programa dele. Foi uma pergunta feita por um jornalista, que queria saber qual era sua visão sobre isso. 

Ele respondeu que há X mil pessoas precisando de órgãos e não sei quantos potenciais doadores e que, se houvesse um incentivo para a doação, haveria muito mais gente querendo doar. Eu expliquei isso na CNN também, fiz toda a defesa da proposta, dizendo que, no Brasil, também pode haver venda de órgão, só que a custo zero. Agora, se houver um incentivo para quem está doando, possivelmente a fila para recepção de órgãos vai diminuir e você vai beneficiar as pessoas mais simples. Mas, mais uma vez, isso não está no programa dele. Foi uma resposta a uma pergunta de um jornalista, que usaram aqui no Brasil para ferrar o Milei. A questão das armas é complicada, porque ele colocou no programa dele para permitir porte de armas, que é o que um liberal defende, desde que o sujeito tenha passado em testes psicotécnicos e tudo o mais. Mas, quando a Patricia Bullrich (candidata da coalização Juntos por el Cambio, de centro-direita), perguntou ao Milei sobre isso ele deu um escape. 

Disse que havia falado é que o cumprimento da lei atual já seria suficiente para atender o que ele defende. Mas não é isso que está escrito no programa. Então, acho que ele tentou dar um “migué”, para não gerar muita polêmica. Deu uma recuada.  

O resgate do caçador de Bruxas: Vasco Leitão da Cunha - Ana Clara Costa (Piauí)

Correções da História 

O RESGATE DO CAÇADOR DE BRUXAS

Um diplomata quer reescrever a história do chanceler da ditadura

Ana Clara Costa 

PIAUÍ, Edição 205, Outubro 2023


Vasco Leitão da Cunha era considerado um diplomata brilhante quando assumiu interinamente o Ministério da Justiça, em 1942, auge do Estado Novo, e deu voz de prisão ao poderoso chefe da polícia de Vargas, Filinto Müller, que torturava opositores com choque elétrico. Esse ato de coragem marcou a biografia de Leitão da Cunha, mas acabou obscurecido por sua atuação como chanceler do marechal Humberto Castello Branco, cargo que assumiu logo depois do golpe de 1964.

Sob seu comando, o Itamaraty abandonou os preceitos da Política Externa Independente, em vigor desde 1961, para adotar o alinhamento automático com os Estados Unidos. Nos vinte meses em que permaneceu no cargo, Leitão da Cunha removeu de postos-chave dezenas de servidores considerados simpatizantes da esquerda e autorizou a cassação de quatro diplomatas: Antônio Houaiss, Jayme de Azevedo Rodrigues, Jatyr de Almeida Rodrigues e Hugo Gouthier de Oliveira Gondim.

Nas últimas décadas, pouco se falou de Leitão da Cunha. Até que, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro colocou Ernesto Araújo à frente do Ministério das Relações Exteriores, que passou a promover pesquisas e debates sobre temas caros à direita. O diplomata Henri Carrières – genro do ex-astrólogo Olavo de Carvalho, o mentor de Ernesto Araújo – propôs um mergulho na até então pouco conhecida gestão de Leitão da Cunha na ditadura.

Com o apoio da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), entidade de pesquisa ligada ao Itamaraty, Carrières percorreu os arquivos diplomáticos dos anos iniciais do regime. O seu objetivo era mostrar que o legado do diplomata ia além da colaboração com a ditadura. Por isso, a maior parte dos documentos reunidos por ele busca revelar as diretrizes da política externa nas relações com os Estados Unidos, a Europa Ocidental e os países do bloco socialista. Alguns de seus achados, no entanto, confirmam que Leitão da Cunha perseguiu colegas que não marchavam no passo do novo governo.


Carrières organizou A gestão de Vasco Leitão da Cunha no Itamaraty e a política externa brasileira, coleção de documentos diplomáticos inéditos dos anos de 1964 e 1965. Em dois volumes que somam 1 140 páginas, a obra foi publicada pela Funag em 2021. O chanceler de Castello Branco também foi o tema da tese que Carrières desenvolveu no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, defendida neste ano, e para a qual ele teve acesso a escritos pessoais do ex-chanceler.

Na organização e nos comentários do livro, Carrières enaltece o trabalho de Leitão da Cunha na política externa, mas as orientações para o expurgo político que ele promoveu no Itamaraty também se revelam. Um relatório classificado como secreto e sem data, mas atribuído ao período de Leitão da Cunha, descreve o “comunismo no Ministério das Relações Exteriores”.

Segundo Carrières, o documento foi “possivelmente” elaborado pela Comissão de Investigações, um departamento criado pelo chanceler, na esteira do Ato Institucional nº 1, para perseguir opositores do regime. “O problema da esquerdização, no Itamaraty, não é recente. Data de alguns anos o indício da existência de uma célula com nítidos objetivos comunistas. Concretamente, o assunto alcançou grande evidência quando uma carta, de texto suspeito, atribuída ao cônsul João Cabral de Melo Neto […] motivou instauração de rigoroso inquérito.” Essa passagem do relatório referia-se a um grupo de diplomatas de esquerda – entre eles, o poeta João Cabral – conhecido no Itamaraty como “célula Bolívar”. No início dos anos 1950, os membros do grupo foram investigados e temporariamente afastados de seus cargos. Dois deles mais tarde seriam cassados pela ditadura: Houaiss e Almeida Rodrigues.

Outro documento secreto incluído no livro descreve as gestões de Leitão da Cunha sobre o governo uruguaio para controlar as atividades de João Goulart, deposto em 1964, e outros asilados políticos que viviam no país. Num ato mais generoso do chanceler, um telegrama secreto orienta a emissão de um salvo-­conduto a Miguel Arraes, governador cassado de Pernambuco, para que ele pudesse deixar o Brasil com destino à Argélia, na condição de asilado.

Procurado pela piauí para comentar o resgate biográfico de Leitão da Cunha, Carrières não respondeu aos contatos da reportagem. O acesso à sua tese no Curso de Altos Estudos também foi negado. Considerado pelos seus pares como um servidor técnico, qualificado e com passagens bem-sucedidas pela Índia e pelo Reino Unido, Carrières é casado com Maria Inês de Carvalho, filha de Olavo de Carvalho. Trabalhou na assessoria internacional de Michel Temer. Quando todo o gabinete do emedebista foi exonerado na posse de Bolsonaro, Carrières saiu junto. Mas logo foi chamado de volta ao Palácio do Planalto para trabalhar na equipe de Filipe Martins, olavista convicto e assessor internacional de Bolsonaro, que conhecia bem o trabalho do diplomata. Depois, Carrières foi direcionado a um posto na Embaixada do Brasil em Washington, sob a batuta do embaixador Nestor Forster, outro reconhecido admirador de Olavo de Carvalho. Hoje, Carrières dá expediente na embaixada em Assunção, no Paraguai, onde vive com a mulher e os seis filhos. O casal é ultracatólico e educa os filhos em casa.

A trajetória profissional de Leitão da Cunha merece ser mais bem conhecida. Um dos maiores diplomatas de sua geração – nasceu em 1903, no Rio de Janeiro –, ele serviu na Argélia durante a Segunda Guerra Mundial, como delegado brasileiro junto ao Comitê Francês de Libertação Nacional, e lá se tornou próximo do general Charles de Gaulle. Integrou a delegação brasileira na primeira Assembleia Geral das Nações Unidas, em Londres, em 1947. Foi embaixador brasileiro em Cuba durante a revolução, pela qual chegou a ter simpatia – até compreender que Fidel Castro conduziria a ilha para o socialismo. Apesar de seu anticomunismo, Vasco Leitão foi embaixador em Moscou durante o governo João Goulart.

No entanto, a caça às bruxas que Vasco Leitão promoveu no Itamaraty salta aos olhos. Na contramão da releitura de Carrières sobre o personagem, o historiador Rogério de Souza Farias, da Universidade de Brasília, mergulhou em outros arquivos pouco explorados do período da ditadura e descobriu que as quatro cassações realizadas pelo chanceler não foram exigidas pelos militares. (Ele prepara um livro sobre seus achados, ainda sem previsão de lançamento.) Um exemplo: nas cinco oportunidades em que pôde deliberar sobre o caso de Azevedo Rodrigues, Leitão da Cunha defendeu a aplicação da penalidade mais severa. E não havia delito recente para justificar a punição dos outros três diplomatas – Houaiss, Almeida Rodrigues e Gondim –, que foi amparada em fatos antigos.

A pesquisa de Farias aponta que Houaiss foi aposentado por Leitão da Cunha em razão da alegada participação na “célula Bolívar”, já examinada no processo que se encerrara uma década antes. Até a consulta que o Itamaraty fez ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em 1964 para saber se havia fatos desabonadores sobre Houaiss voltou vazia. Mesmo assim, o chanceler enviou a Castello Branco o pedido de cassação, sem que fosse analisada a defesa do diplomata. Farias também descobriu que parte dos depoimentos usados para embasar a cassação de Houaiss foi, na verdade, deturpada, pois eram originalmente em defesa do diplomata.

Em 1983, um ano antes de sua morte, Vasco Leitão da Cunha deu um depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas. Alegou que, longe de perseguir diplomatas de esquerda, sua gestão os salvou de um expurgo ainda mais drástico. “Pude fazer uma proteção em torno do Itamaraty. Uma trincheira”, disse. E, assim, aquilo que o ex-chanceler chamou de “punição revolucionária” teria ficado em “termos aceitáveis”. No mesmo depoimento, Leitão da Cunha elogiou Houaiss: “Ele é generoso. Fala comigo.”

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A novela do submarino nuclear continua, por mais 20 anos (FSP)

Governo Lula faz reunião sigilosa com França para complementar acordo sobre submarino nuclear 

FSP, 20/10/2023

Brasil pede mais transferência de tecnologia e apoio para finalizar projeto, cuja nova fase pode chegar a R$ 25 bilhões O Brasil negocia com a França uma complementação do acordo para a construção do submarino de propulsão nuclear. No dia 22 de setembro, o chefe do Estado-Maior da França, brigadeiro Fabien Mandon, esteve em Brasília e participou de uma reunião com o almirante Petrônio Aguiar, diretor-geral de desenvolvimento nuclear da Marinha, para discutir os termos do contrato e avançar na construção do submarino, que enfrenta atrasos. A reunião, que teve participação de integrantes do Itamaraty, do Planalto e do Secretariado-Geral da Defesa da França, órgão que autoriza a venda de armamentos e tecnologia sensível do país, foi mantida em sigilo. 

O almirante Petrônio viajará à França nos próximos dias para prosseguir com as conversas. França e Brasil negociam dentro do acordo de parceria estratégica assinado em 2008 que inclui o Prosub, o programa brasileiro de submarinos. Estimado em R$ 40 bilhões em valores atuais, o Prosub previa a construção de quatro submarinos convencionais (dois dos quais estão prontos) e um submarino convencional movido a propulsão nuclear, batizado de "Álvaro Alberto". O acordo assinado em 2008 com a França previa "apoio francês, no longo prazo, para a concepção e construção da parte não-nuclear do submarino". 

Na prática, até agora, foi um auxílio para o design do casco do submarino de propulsão nuclear –mas não a tecnologia para acomodar o reator (que o Brasil sabe fabricar) dentro do casco e fazer com que ele conecte e forneça energia até a propulsão. Apesar de o submarino ser prioridade do governo brasileiro, o projeto avança lentamente, porque o Brasil precisa de mais know-how e equipamentos da França e porque há inconstância orçamentária. Nesse acordo complementar, o Brasil negocia comprar dos franceses equipamentos para a turbina e o gerador, que usariam a energia gerada pelo reator, e não são fabricados no país. 

 O país também precisa de transferência de know-how para integrar o reator ao submarino e para finalizar o protótipo do submarino no Laboratório de Geração de Energia Nucleoelétrica, em Iperó, interior de São Paulo. A Marinha também precisa de treinamento para montagem e coordenação, de testes operacionais e racionalização industrial para redução dos custos de construção. Outra demanda do Brasil é ajuda para garantir a segurança do reator dentro do submarino, mas isso enfrenta resistência do lado francês, que não quer se envolver diretamente na parte nuclear. O objetivo seria chegar, nos próximos meses, a uma carta de intenções assinada pelo presidente Lula e pelo líder francês Emmanuel Macron. 

 A Marinha brasileira pretende avançar com as negociações para cumprir seu cronograma interno, que prevê a finalização do reator atômico em 2027 e a conclusão do submarino daqui a dez anos. Os entraves para o acordo com a França e as tratativas com agências internacionais de energia atômica fizeram a Marinha tratar com mais sigilo as negociações do Prosub desde agosto. Estima-se que, para essa nova fase, sejam necessários cerca de R$ 25 bilhões, entre compras de equipamentos da França e investimento brasileiro. Mas o governo brasileiro está negociando valores. "Esta nova negociação vai determinar de que maneira a França vai apoiar na continuação da construção do submarino de propulsão nuclear, quanto isso vai custar e se vão estender o acordo", diz o almirante Antonio Ruy Silva, membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP.

 Autoridades brasileiras e francesas já haviam conversado sobre o assunto em maio, na França, e em junho, em encontro de Lula com Macron, em Paris. A negociação é delicada porque os Estados Unidos se opõem à venda dos equipamentos e transferência de know-how para o Brasil. "Os Estados Unidos não querem que outra potência do hemisfério ocidental tenha essa capacidade bélica", diz Francisco Carlos Teixeira, professor de história contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Hoje, só os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU —Estados Unidos, China, Rússia, França e Reino Unido— e a Índia, que não é signatária do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), detêm essa tecnologia. 

Todos eles têm bombas atômicas. Uma rusga geopolítica pode entrar no cálculo dos franceses na decisão de assinar o novo acordo com o Brasil. Em 2021, a Austrália cancelou um contrato de US$ 66 bilhões com a França para comprar uma frota de submarinos convencionais e anunciou que, em vez disso, iria adquirir submarinos de propulsão nuclear dos Estados Unidos e Reino Unido. O presidente Macron foi surpreendido e ficou enfurecido. 

Em março deste ano, EUA, Reino Unido e Austrália formalizaram o chamado acordo Aukus, com vistas à contenção da China. "Pode ser o momento de a França devolver o golpe que levou dos EUA", diz Teixeira. "Além disso seriam encomendas importantes para a indústria francesa, que sofreu com a perda dos contratos com a Austrália." Relatório do Senado francês em julho afirma que o desenvolvimento do Álvaro Alberto "representa um grande desafio para o Brasil" e que "vários interlocutores indicaram claramente que queriam um maior apoio da França". O relatório recomenda que se estude a possibilidade de "aprofundamento do programa Prosub na área nuclear", tendo em vista que "o acordo Aukus deverá levar à construção e entrega, pelos Estados Unidos, de submarino de propulsão nuclear à Austrália". 

 O interesse dos franceses na venda, além de financeiro, é também se aproximar do Brasil e eventualmente ter o país como um novo fornecedor de urânio. A França, que compra do Níger 20% do urânio que consome, quer diversificar suas fontes, uma vez que o país africano teve um golpe de Estado e está sob grande influência da Rússia. Macron, com a crise no fornecimento de gás por causa da guerra na Ucrânia, anunciou a construção de novas usinas nucleares, o que vai aumentar muito a demanda pelo mineral. 

 O Brasil levaria cerca de três anos para conseguir aumentar a produção, e teria de mudar a legislação –hoje monopólio estatal. Mas já existe um lobby forte para isso. O deputado Júlio Lopes (PP-RJ), presidente da Frente Parlamentar da Tecnologia e Atividades Nucleares do Congresso, é um dos maiores defensores da adoção de pequenos reatores modulares e aumento da produção de urânio no país. "O governo francês está bem interessado no urânio brasileiro", disse. Além dos desafios tecnológicos, o Brasil enfrenta mais um obstáculo para o submarino nuclear: terá de negociar com a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) um acordo de salvaguardas para garantir a segurança do combustível atômico –urânio enriquecido. A agência já manifestou resistência. 

A Austrália também negocia salvaguardas, mas, ao contrário do Brasil, aderiu aos protocolos adicionais do Tratado de Não-Proliferação Nuclear. O governo brasileiro vê os protocolos adicionais como excessivos e interferência sobre soberania. Procurada pela reportagem, a Marinha enviou nota afirmando que "a parceria estratégica com a França tem sido exibida exitosa nos últimos 15 anos" e que a Força "permanece empenhada em sua manutenção e mesmo no seu crescimento, gerando assim maiores sinergia e desenvolvimento para as duas nações".

 A Marinha disse buscar, no âmbito do Prosub, "o incremento da quantidade de equipamentos periféricos para o sistema de propulsão do futuro submarino". "São materiais especiais, que ainda não estão disponíveis no mercado nacional e, portanto, seria interessante a participação de nossos parceiros industriais franceses." Procurada, a Embaixada da França no Brasil não se manifestou.